O que é ser de direita ou de esquerda?


Entenda a origem dos termos e o que eles significam no atual contexto político

Por Marina Cardoso
Atualização:

Imagine a cena. Dois grupos se reúnem em uma assembleia para debater uma proposta. Enquanto as discussões acontecem, cada grupo se posiciona, fisicamente, em lados opostos. Quem estava mais à direita, acabou decidindo lutar para manter a situação atual. E quem estava do lado esquerdo, acabou definindo ser favorável às mudanças. Foi dessa forma que, em 1789, durante a Assembleia Nacional convocada durante a Revolução Francesa, os termos direita e esquerda passaram a classificar posicionamentos políticos contrários.

Na época, girondinos (mais conservadores) e jacobinos (mais revolucionários) tinham como objetivo principal escrever uma nova constituição. Nas discussões que se seguiam,  como explica Aldo Fornazieri, professor da Escola de Sociologia e Política, os que eram favoráveis à monarquia se sentaram à direita e os que eram partidários da revolução ficaram à esquerda. Desde então, os termos foram adaptados a contextos diferentes em várias regiões do mundo. 

Primeiro turno das eleições 2020 está marcado para 15 de novembro. Foto: Fabio Pozzebom/Agência Brasil
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No Brasil, em 2018, as pesquisas no Google para entender o significado do que é ser de direita ou de esquerda atingiram um pico nunca antes visto, durante o período eleitoral que terminou com a eleição presidencial de Jair Bolsonaro

Para entender o significado atual dos termos históricos, o Estadão conversou com cinco especialistas: Lucas Caiado (advogado e mestre em Direito pelas Universidades de Cambridge e Columbia), Tatiana Roque (professora de pós-graduação de Filosofia na UFRJ), João Victor Pinto (consultor político do Poder do Voto). Carlos Melo (cientista político e professor no Insper) e Aldo Fornazieri (professor da Escola de Sociologia e Política e autor do livro A crise das esquerdas). Confira: 

O que é ser de esquerda ou de direita atualmente? 

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Lucas Caiado: Não é uma pergunta fácil, porque ao longo da história essas percepções foram sendo moldadas. Porém, existe um fio condutor que permite entender que a direita preza pelo valor da liberdade e a esquerda pelo valor da igualdade. Ou seja, a direita tende a aceitar que a igualdade entre as pessoas não é natural e que, por isso, deve-se garantir a liberdade para que possam, de acordo com as suas capacidades naturais, atingir os seus potenciais máximos. Já a esquerda, tende a sacrificar a liberdade dos indivíduos para garantir que o valor igualdade seja contemplado em sua plenitude, ainda que eventualmente a eficiência seja comprometida. Em outras palavras, você aceita que a sociedade não atingirá tudo o que poderia para garantir que todos os indivíduos sejam iguais ou que tenham um mínimo de igualdade garantido. Mas isso não quer dizer que isso é o que significa hoje. Pela forma como a política se desenvolveu, estamos acostumados a caracterizar o outro lado não como o lado quer que ser caracterizado, mas como seus oponentes costumam caracterizar. E aí, nesse ponto, temos uma situação onde os dois sistemas são ruins, porque se olharmos sempre pela ótica do adversário, não conseguimos ver qualidades em nenhum desses posicionamentos. 

Tatiana Roque: De fato, a ideia original sofreu transformações e tem diferentes significados. Mas, atualmente, podemos dizer que a esquerda seria uma proposta mais voltada para o coletivo, para o social e que enxerga os problemas como sendo do coletivo e não do indivíduo. E a direita foca mais no indivíduo e, por isso, acaba naturalizando questões como a desigualdade social e de renda.

 Aldo Fornazieri: Com o advento das ideologias marxistas e socialistas, os seus partidários assumiram a designação de esquerda, enquanto que os defensores do capitalismo e das ideologias conservadoras ficaram designados como direita. Mas dentro disso tudo tem várias gradações que continuam mudando com o tempo e de lugar para lugar. 

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João Victor Pinto: Em suma, acredito que a esquerda tenha como principal valor o igualitarismo. Ou seja, a igualdade é o maior valor que a sociedade precisa buscar e a desigualdade é o maior vilão a ser combatido. Enquanto que a direita tem como a liberdade individual o seu valor primordial e vê como um desafio tudo o que pode impedir essa liberdade. 

O que significa ser de centro? 

Carlos Melo: Em tese, o centro atua com um posicionamento mais moderado, que aceita um determinado grau de transformação e de conservação. Ou seja, aquilo que precisa mudar, muda e o que precisa continuar, continua. Mas essa é uma perspectiva positiva. Atualmente, acredito que o centro se define muito mais pelo que não é e isso abre portas para um certo oportunismo, que permite tirar vantagens dos dois lados, justamente por não se posicionar nem com um ou outro. 

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Tatiana Roque: Essa definição é muito mais uma dificuldade de assumir uma proposta mais definida ideologicamente em um momento de polarização. Ou seja, é mais uma ausência de definição do que uma definição propriamente. 

Lucas Caiado: Muitos opositores dos grupos centrais acabam definindo os grupos de centro como indecisos, que estão em cima do muro ou os que não têm pauta. Mas, se pensarmos na essência de que a esquerda está associada à busca por igualdade e a direita por liberdade, o centro seria marcado por uma maior flexibilidade para transitar por esses dois eixos. O que se entende como centro ou que deveriam ser buscadas pelo centro são ações pautadas não necessariamente para que se mantenha a estrutura política ao redor de um ou outro eixo, mas em torno de projetos específicos para sociedade que por vezes podem se alinhar ao conceito de liberdade ou igualdade, dependendo do que for melhor naquele momento. 

Aldo Fornazieri: O centro expressa posições intermediárias entre as duas posições mais polares e extremadas. Mas aqui também existem várias gradações e intersecções. Por exemplo: uma pessoa pode ser mais próxima da direita no que tange à presença do Estado na economia e mais próxima da esquerda no que diz respeito à necessidade da justiça social e de uma igualdade maior. Um ambientalista pode ser de centro e outro pode ser de esquerda. Então, esses conceitos não têm uma rigidez e variam tanto de pessoa para pessoa, quanto de partido para partido.

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Existem outras formas de classificar o posicionamento político de alguém? 

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Aldo Fornazieri: Penso que outras formas também são válidas, sem que se anule a polaridade esquerda/direita. Por exemplo, pessoas e partidos podem se definir como ambientalista, ecologista, liberal, conservador, socialista, republicano, democrata etc. Hoje em dia a ideia de um novo republicanismo está em alta, ao menos no campo teórico, a partir de uma revalorização do pensamento do florentino Nicolau Maquiavel e do republicanismo de Roma antiga, além de outras contribuições. O novo republicanismo valoriza tanto a igualdade, quanto a liberdade, mas também a frugalidade, a simplicidade, a solidariedade, a participação democrática e comunitária e formas de uma democracia mais direta, exercida pelos cidadãos.

Existe conservador de esquerda? Liberal de direita? Liberalismo e conservadorismo estão associados aos termos? 

Tatiana Roque

: A popularização desses termos surgiu no momento em que os valores ganharam muito espaço na vida política, quando observamos movimentos que desafiam os

valores tradicionais

e outros que são

mais conservadores

. Antigamente, os valores não entravam tanto no

debate político

. Era algo mais privado. Mas é possível que uma pessoa de esquerda, por exemplo, que acredita mais na sociedade, que tem como ideal a igualdade, tenha costumes mais conservadores.

Aldo Fornazieri: Dependendo do lugar e da situação pode existir sim. Por exemplo, as cúpulas dos partidos comunistas da China e de Cuba, que na tipologia geral são de esquerda, são também conservadores do ponto de vista daqueles que querem mudanças dentro de cada um desses países. Também existe o liberal de direita. Hoje em dia o ultraliberalismo, o chamado neoliberalismo, é de direita, quando não de extrema-direita. Liberalismo e conservadorismo podem ou não ser  associados aos termos esquerda e direita. Por exemplo, nos Estados Unidos, os setores mais liberais do Partido Democrata são tidos como de esquerda e os setores mais conservadores do Partido Republicano são tidos como de direita.

Lucas Caiado: Essa associação de liberalismo à esquerda e conservadorismo à direita só se sustenta se voltamos à origem dos termos, quando de um lado tínhamos os conservadores e do outro os mais progressistas. Porém, o próprio fato de que essa simplificação da realidade não faz mais sentido sugere que essa associação deve ser abandonada. No nível de complexidade da sociedade atual, com as diferentes correntes ideológicas, não dá pra aceitar essa associação simples. Acaba sendo vazio. Existe conservador de esquerda e liberal de direita? Sim. Porque podem ser vistas em diferentes camadas e eixos. De um lado, política e do outro costumes. O século XX está cheio de movimentos que são por essência de esquerda, mas são conservadores de costumes. Da mesma forma que é possível definir liberais de direita, se pensarmos do ponto de vista econômico. 

João Victor Pinto: Acredito que esses dois termos podem estar associados tanto à esquerda como à direita, sim. Existem pessoas que são de direita e são a favor das liberdades econômicas e individuais. Da mesma forma que, nos dois eixos, vão existir pessoas que prezam por valores mais conservadores.   

 

Por que é importante existir posicionamentos políticos diferentes? 

João Victor Pinto: Isso é um valor democrático. Dentro da democracia, as políticas públicas são construídas com base no diálogo, na votação e na interação das ideias que permeiam a sociedade. É a partir disso que evitamos ter uma visão única, totalitária, vinda de cima pra baixo. De uma pessoa para o povo e não emergindo do povo para o poder. A divergência de posicionamentos é uma condição essencial para a democracia existir, porque permite ponderarmos essas diferenças naturais e construirmos políticas públicas que levem em consideração ideias divergentes

 Tatiana Roque: A diferença é importante dentro dos limites da democracia. Propostas de extrema-direita, que ferem a democracia, por exemplo, não devem existir. Da mesma forma, o centro é importante para balancear quando o jogo está pendendo para algum lado. 

Carlos Melo: Essa diferença é natural e sempre vai existir. O que é ruim é o radicalismo e a utilização de expressões confusas e desprovidas de sentido histórico. Inclusive, se voltarmos à definição da Revolução Francesa onde direita é quem é a favor da manutenção do status quo (da realidade atual) e quem é de esquerda é a favor da transformação, qualquer pessoa de bom senso ao longo da vida vai transitar e buscar se localizar de acordo com a necessidade. É natural. Algumas coisas precisam ser mantidas, outras não. Em alguns momentos, por exemplo, a proteção do Estado será necessária, em outros não. Em algumas situações, estatizar vai fazer sentido mais do que em outras. Acho que a questão passa por uma análise da realidade sem se prender a rótulos. 

Lucas Caiado:  É importante para que não se tenha só um ponto de vista como verdadeiro e que isso seja utilizado para justificar as mais extremas consequências. Historicamente, temos visto que isso não é adequado. Se uma sociedade preza a igualdade ao extremo e quer garantir que todas as pessoas sejam absolutamente iguais, correrá o risco de produzir experiências como na União Soviética, por exemplo. Da mesma forma, prezar pela liberdade num nível máximo é correr o risco de abrir mão completamente da igualdade e a achar que naturalmente algumas pessoas são melhores que outras, o que pode acabar criando associações com doutrinas de supremacia, como o nazismo. A existência de posicionamentos políticos é importante para justamente fornecer essa contraposição de ideias necessárias para o desenvolvimento e equilíbrio da sociedade. Se tem algo que aprendemos com o desenvolvimento da ciência é que a premissa do desenvolvimento racional e científico é estar aberto a possibilidade de estar errado. Se tem certeza de que você está certo e já tem todas as respostas, a única forma de alcançar o desenvolvimento é por sorte. Se você está aberto a noção de que pode estar errado e não tem todas as respostas, você dialoga e busca conjuntamente soluções possíveis para problemas comuns. 

Imagine a cena. Dois grupos se reúnem em uma assembleia para debater uma proposta. Enquanto as discussões acontecem, cada grupo se posiciona, fisicamente, em lados opostos. Quem estava mais à direita, acabou decidindo lutar para manter a situação atual. E quem estava do lado esquerdo, acabou definindo ser favorável às mudanças. Foi dessa forma que, em 1789, durante a Assembleia Nacional convocada durante a Revolução Francesa, os termos direita e esquerda passaram a classificar posicionamentos políticos contrários.

Na época, girondinos (mais conservadores) e jacobinos (mais revolucionários) tinham como objetivo principal escrever uma nova constituição. Nas discussões que se seguiam,  como explica Aldo Fornazieri, professor da Escola de Sociologia e Política, os que eram favoráveis à monarquia se sentaram à direita e os que eram partidários da revolução ficaram à esquerda. Desde então, os termos foram adaptados a contextos diferentes em várias regiões do mundo. 

Primeiro turno das eleições 2020 está marcado para 15 de novembro. Foto: Fabio Pozzebom/Agência Brasil

No Brasil, em 2018, as pesquisas no Google para entender o significado do que é ser de direita ou de esquerda atingiram um pico nunca antes visto, durante o período eleitoral que terminou com a eleição presidencial de Jair Bolsonaro

Para entender o significado atual dos termos históricos, o Estadão conversou com cinco especialistas: Lucas Caiado (advogado e mestre em Direito pelas Universidades de Cambridge e Columbia), Tatiana Roque (professora de pós-graduação de Filosofia na UFRJ), João Victor Pinto (consultor político do Poder do Voto). Carlos Melo (cientista político e professor no Insper) e Aldo Fornazieri (professor da Escola de Sociologia e Política e autor do livro A crise das esquerdas). Confira: 

O que é ser de esquerda ou de direita atualmente? 

Lucas Caiado: Não é uma pergunta fácil, porque ao longo da história essas percepções foram sendo moldadas. Porém, existe um fio condutor que permite entender que a direita preza pelo valor da liberdade e a esquerda pelo valor da igualdade. Ou seja, a direita tende a aceitar que a igualdade entre as pessoas não é natural e que, por isso, deve-se garantir a liberdade para que possam, de acordo com as suas capacidades naturais, atingir os seus potenciais máximos. Já a esquerda, tende a sacrificar a liberdade dos indivíduos para garantir que o valor igualdade seja contemplado em sua plenitude, ainda que eventualmente a eficiência seja comprometida. Em outras palavras, você aceita que a sociedade não atingirá tudo o que poderia para garantir que todos os indivíduos sejam iguais ou que tenham um mínimo de igualdade garantido. Mas isso não quer dizer que isso é o que significa hoje. Pela forma como a política se desenvolveu, estamos acostumados a caracterizar o outro lado não como o lado quer que ser caracterizado, mas como seus oponentes costumam caracterizar. E aí, nesse ponto, temos uma situação onde os dois sistemas são ruins, porque se olharmos sempre pela ótica do adversário, não conseguimos ver qualidades em nenhum desses posicionamentos. 

Tatiana Roque: De fato, a ideia original sofreu transformações e tem diferentes significados. Mas, atualmente, podemos dizer que a esquerda seria uma proposta mais voltada para o coletivo, para o social e que enxerga os problemas como sendo do coletivo e não do indivíduo. E a direita foca mais no indivíduo e, por isso, acaba naturalizando questões como a desigualdade social e de renda.

 Aldo Fornazieri: Com o advento das ideologias marxistas e socialistas, os seus partidários assumiram a designação de esquerda, enquanto que os defensores do capitalismo e das ideologias conservadoras ficaram designados como direita. Mas dentro disso tudo tem várias gradações que continuam mudando com o tempo e de lugar para lugar. 

João Victor Pinto: Em suma, acredito que a esquerda tenha como principal valor o igualitarismo. Ou seja, a igualdade é o maior valor que a sociedade precisa buscar e a desigualdade é o maior vilão a ser combatido. Enquanto que a direita tem como a liberdade individual o seu valor primordial e vê como um desafio tudo o que pode impedir essa liberdade. 

O que significa ser de centro? 

Carlos Melo: Em tese, o centro atua com um posicionamento mais moderado, que aceita um determinado grau de transformação e de conservação. Ou seja, aquilo que precisa mudar, muda e o que precisa continuar, continua. Mas essa é uma perspectiva positiva. Atualmente, acredito que o centro se define muito mais pelo que não é e isso abre portas para um certo oportunismo, que permite tirar vantagens dos dois lados, justamente por não se posicionar nem com um ou outro. 

Tatiana Roque: Essa definição é muito mais uma dificuldade de assumir uma proposta mais definida ideologicamente em um momento de polarização. Ou seja, é mais uma ausência de definição do que uma definição propriamente. 

Lucas Caiado: Muitos opositores dos grupos centrais acabam definindo os grupos de centro como indecisos, que estão em cima do muro ou os que não têm pauta. Mas, se pensarmos na essência de que a esquerda está associada à busca por igualdade e a direita por liberdade, o centro seria marcado por uma maior flexibilidade para transitar por esses dois eixos. O que se entende como centro ou que deveriam ser buscadas pelo centro são ações pautadas não necessariamente para que se mantenha a estrutura política ao redor de um ou outro eixo, mas em torno de projetos específicos para sociedade que por vezes podem se alinhar ao conceito de liberdade ou igualdade, dependendo do que for melhor naquele momento. 

Aldo Fornazieri: O centro expressa posições intermediárias entre as duas posições mais polares e extremadas. Mas aqui também existem várias gradações e intersecções. Por exemplo: uma pessoa pode ser mais próxima da direita no que tange à presença do Estado na economia e mais próxima da esquerda no que diz respeito à necessidade da justiça social e de uma igualdade maior. Um ambientalista pode ser de centro e outro pode ser de esquerda. Então, esses conceitos não têm uma rigidez e variam tanto de pessoa para pessoa, quanto de partido para partido.

Existem outras formas de classificar o posicionamento político de alguém? 

Aldo Fornazieri: Penso que outras formas também são válidas, sem que se anule a polaridade esquerda/direita. Por exemplo, pessoas e partidos podem se definir como ambientalista, ecologista, liberal, conservador, socialista, republicano, democrata etc. Hoje em dia a ideia de um novo republicanismo está em alta, ao menos no campo teórico, a partir de uma revalorização do pensamento do florentino Nicolau Maquiavel e do republicanismo de Roma antiga, além de outras contribuições. O novo republicanismo valoriza tanto a igualdade, quanto a liberdade, mas também a frugalidade, a simplicidade, a solidariedade, a participação democrática e comunitária e formas de uma democracia mais direta, exercida pelos cidadãos.

Existe conservador de esquerda? Liberal de direita? Liberalismo e conservadorismo estão associados aos termos? 

Tatiana Roque

: A popularização desses termos surgiu no momento em que os valores ganharam muito espaço na vida política, quando observamos movimentos que desafiam os

valores tradicionais

e outros que são

mais conservadores

. Antigamente, os valores não entravam tanto no

debate político

. Era algo mais privado. Mas é possível que uma pessoa de esquerda, por exemplo, que acredita mais na sociedade, que tem como ideal a igualdade, tenha costumes mais conservadores.

Aldo Fornazieri: Dependendo do lugar e da situação pode existir sim. Por exemplo, as cúpulas dos partidos comunistas da China e de Cuba, que na tipologia geral são de esquerda, são também conservadores do ponto de vista daqueles que querem mudanças dentro de cada um desses países. Também existe o liberal de direita. Hoje em dia o ultraliberalismo, o chamado neoliberalismo, é de direita, quando não de extrema-direita. Liberalismo e conservadorismo podem ou não ser  associados aos termos esquerda e direita. Por exemplo, nos Estados Unidos, os setores mais liberais do Partido Democrata são tidos como de esquerda e os setores mais conservadores do Partido Republicano são tidos como de direita.

Lucas Caiado: Essa associação de liberalismo à esquerda e conservadorismo à direita só se sustenta se voltamos à origem dos termos, quando de um lado tínhamos os conservadores e do outro os mais progressistas. Porém, o próprio fato de que essa simplificação da realidade não faz mais sentido sugere que essa associação deve ser abandonada. No nível de complexidade da sociedade atual, com as diferentes correntes ideológicas, não dá pra aceitar essa associação simples. Acaba sendo vazio. Existe conservador de esquerda e liberal de direita? Sim. Porque podem ser vistas em diferentes camadas e eixos. De um lado, política e do outro costumes. O século XX está cheio de movimentos que são por essência de esquerda, mas são conservadores de costumes. Da mesma forma que é possível definir liberais de direita, se pensarmos do ponto de vista econômico. 

João Victor Pinto: Acredito que esses dois termos podem estar associados tanto à esquerda como à direita, sim. Existem pessoas que são de direita e são a favor das liberdades econômicas e individuais. Da mesma forma que, nos dois eixos, vão existir pessoas que prezam por valores mais conservadores.   

 

Por que é importante existir posicionamentos políticos diferentes? 

João Victor Pinto: Isso é um valor democrático. Dentro da democracia, as políticas públicas são construídas com base no diálogo, na votação e na interação das ideias que permeiam a sociedade. É a partir disso que evitamos ter uma visão única, totalitária, vinda de cima pra baixo. De uma pessoa para o povo e não emergindo do povo para o poder. A divergência de posicionamentos é uma condição essencial para a democracia existir, porque permite ponderarmos essas diferenças naturais e construirmos políticas públicas que levem em consideração ideias divergentes

 Tatiana Roque: A diferença é importante dentro dos limites da democracia. Propostas de extrema-direita, que ferem a democracia, por exemplo, não devem existir. Da mesma forma, o centro é importante para balancear quando o jogo está pendendo para algum lado. 

Carlos Melo: Essa diferença é natural e sempre vai existir. O que é ruim é o radicalismo e a utilização de expressões confusas e desprovidas de sentido histórico. Inclusive, se voltarmos à definição da Revolução Francesa onde direita é quem é a favor da manutenção do status quo (da realidade atual) e quem é de esquerda é a favor da transformação, qualquer pessoa de bom senso ao longo da vida vai transitar e buscar se localizar de acordo com a necessidade. É natural. Algumas coisas precisam ser mantidas, outras não. Em alguns momentos, por exemplo, a proteção do Estado será necessária, em outros não. Em algumas situações, estatizar vai fazer sentido mais do que em outras. Acho que a questão passa por uma análise da realidade sem se prender a rótulos. 

Lucas Caiado:  É importante para que não se tenha só um ponto de vista como verdadeiro e que isso seja utilizado para justificar as mais extremas consequências. Historicamente, temos visto que isso não é adequado. Se uma sociedade preza a igualdade ao extremo e quer garantir que todas as pessoas sejam absolutamente iguais, correrá o risco de produzir experiências como na União Soviética, por exemplo. Da mesma forma, prezar pela liberdade num nível máximo é correr o risco de abrir mão completamente da igualdade e a achar que naturalmente algumas pessoas são melhores que outras, o que pode acabar criando associações com doutrinas de supremacia, como o nazismo. A existência de posicionamentos políticos é importante para justamente fornecer essa contraposição de ideias necessárias para o desenvolvimento e equilíbrio da sociedade. Se tem algo que aprendemos com o desenvolvimento da ciência é que a premissa do desenvolvimento racional e científico é estar aberto a possibilidade de estar errado. Se tem certeza de que você está certo e já tem todas as respostas, a única forma de alcançar o desenvolvimento é por sorte. Se você está aberto a noção de que pode estar errado e não tem todas as respostas, você dialoga e busca conjuntamente soluções possíveis para problemas comuns. 

Imagine a cena. Dois grupos se reúnem em uma assembleia para debater uma proposta. Enquanto as discussões acontecem, cada grupo se posiciona, fisicamente, em lados opostos. Quem estava mais à direita, acabou decidindo lutar para manter a situação atual. E quem estava do lado esquerdo, acabou definindo ser favorável às mudanças. Foi dessa forma que, em 1789, durante a Assembleia Nacional convocada durante a Revolução Francesa, os termos direita e esquerda passaram a classificar posicionamentos políticos contrários.

Na época, girondinos (mais conservadores) e jacobinos (mais revolucionários) tinham como objetivo principal escrever uma nova constituição. Nas discussões que se seguiam,  como explica Aldo Fornazieri, professor da Escola de Sociologia e Política, os que eram favoráveis à monarquia se sentaram à direita e os que eram partidários da revolução ficaram à esquerda. Desde então, os termos foram adaptados a contextos diferentes em várias regiões do mundo. 

Primeiro turno das eleições 2020 está marcado para 15 de novembro. Foto: Fabio Pozzebom/Agência Brasil

No Brasil, em 2018, as pesquisas no Google para entender o significado do que é ser de direita ou de esquerda atingiram um pico nunca antes visto, durante o período eleitoral que terminou com a eleição presidencial de Jair Bolsonaro

Para entender o significado atual dos termos históricos, o Estadão conversou com cinco especialistas: Lucas Caiado (advogado e mestre em Direito pelas Universidades de Cambridge e Columbia), Tatiana Roque (professora de pós-graduação de Filosofia na UFRJ), João Victor Pinto (consultor político do Poder do Voto). Carlos Melo (cientista político e professor no Insper) e Aldo Fornazieri (professor da Escola de Sociologia e Política e autor do livro A crise das esquerdas). Confira: 

O que é ser de esquerda ou de direita atualmente? 

Lucas Caiado: Não é uma pergunta fácil, porque ao longo da história essas percepções foram sendo moldadas. Porém, existe um fio condutor que permite entender que a direita preza pelo valor da liberdade e a esquerda pelo valor da igualdade. Ou seja, a direita tende a aceitar que a igualdade entre as pessoas não é natural e que, por isso, deve-se garantir a liberdade para que possam, de acordo com as suas capacidades naturais, atingir os seus potenciais máximos. Já a esquerda, tende a sacrificar a liberdade dos indivíduos para garantir que o valor igualdade seja contemplado em sua plenitude, ainda que eventualmente a eficiência seja comprometida. Em outras palavras, você aceita que a sociedade não atingirá tudo o que poderia para garantir que todos os indivíduos sejam iguais ou que tenham um mínimo de igualdade garantido. Mas isso não quer dizer que isso é o que significa hoje. Pela forma como a política se desenvolveu, estamos acostumados a caracterizar o outro lado não como o lado quer que ser caracterizado, mas como seus oponentes costumam caracterizar. E aí, nesse ponto, temos uma situação onde os dois sistemas são ruins, porque se olharmos sempre pela ótica do adversário, não conseguimos ver qualidades em nenhum desses posicionamentos. 

Tatiana Roque: De fato, a ideia original sofreu transformações e tem diferentes significados. Mas, atualmente, podemos dizer que a esquerda seria uma proposta mais voltada para o coletivo, para o social e que enxerga os problemas como sendo do coletivo e não do indivíduo. E a direita foca mais no indivíduo e, por isso, acaba naturalizando questões como a desigualdade social e de renda.

 Aldo Fornazieri: Com o advento das ideologias marxistas e socialistas, os seus partidários assumiram a designação de esquerda, enquanto que os defensores do capitalismo e das ideologias conservadoras ficaram designados como direita. Mas dentro disso tudo tem várias gradações que continuam mudando com o tempo e de lugar para lugar. 

João Victor Pinto: Em suma, acredito que a esquerda tenha como principal valor o igualitarismo. Ou seja, a igualdade é o maior valor que a sociedade precisa buscar e a desigualdade é o maior vilão a ser combatido. Enquanto que a direita tem como a liberdade individual o seu valor primordial e vê como um desafio tudo o que pode impedir essa liberdade. 

O que significa ser de centro? 

Carlos Melo: Em tese, o centro atua com um posicionamento mais moderado, que aceita um determinado grau de transformação e de conservação. Ou seja, aquilo que precisa mudar, muda e o que precisa continuar, continua. Mas essa é uma perspectiva positiva. Atualmente, acredito que o centro se define muito mais pelo que não é e isso abre portas para um certo oportunismo, que permite tirar vantagens dos dois lados, justamente por não se posicionar nem com um ou outro. 

Tatiana Roque: Essa definição é muito mais uma dificuldade de assumir uma proposta mais definida ideologicamente em um momento de polarização. Ou seja, é mais uma ausência de definição do que uma definição propriamente. 

Lucas Caiado: Muitos opositores dos grupos centrais acabam definindo os grupos de centro como indecisos, que estão em cima do muro ou os que não têm pauta. Mas, se pensarmos na essência de que a esquerda está associada à busca por igualdade e a direita por liberdade, o centro seria marcado por uma maior flexibilidade para transitar por esses dois eixos. O que se entende como centro ou que deveriam ser buscadas pelo centro são ações pautadas não necessariamente para que se mantenha a estrutura política ao redor de um ou outro eixo, mas em torno de projetos específicos para sociedade que por vezes podem se alinhar ao conceito de liberdade ou igualdade, dependendo do que for melhor naquele momento. 

Aldo Fornazieri: O centro expressa posições intermediárias entre as duas posições mais polares e extremadas. Mas aqui também existem várias gradações e intersecções. Por exemplo: uma pessoa pode ser mais próxima da direita no que tange à presença do Estado na economia e mais próxima da esquerda no que diz respeito à necessidade da justiça social e de uma igualdade maior. Um ambientalista pode ser de centro e outro pode ser de esquerda. Então, esses conceitos não têm uma rigidez e variam tanto de pessoa para pessoa, quanto de partido para partido.

Existem outras formas de classificar o posicionamento político de alguém? 

Aldo Fornazieri: Penso que outras formas também são válidas, sem que se anule a polaridade esquerda/direita. Por exemplo, pessoas e partidos podem se definir como ambientalista, ecologista, liberal, conservador, socialista, republicano, democrata etc. Hoje em dia a ideia de um novo republicanismo está em alta, ao menos no campo teórico, a partir de uma revalorização do pensamento do florentino Nicolau Maquiavel e do republicanismo de Roma antiga, além de outras contribuições. O novo republicanismo valoriza tanto a igualdade, quanto a liberdade, mas também a frugalidade, a simplicidade, a solidariedade, a participação democrática e comunitária e formas de uma democracia mais direta, exercida pelos cidadãos.

Existe conservador de esquerda? Liberal de direita? Liberalismo e conservadorismo estão associados aos termos? 

Tatiana Roque

: A popularização desses termos surgiu no momento em que os valores ganharam muito espaço na vida política, quando observamos movimentos que desafiam os

valores tradicionais

e outros que são

mais conservadores

. Antigamente, os valores não entravam tanto no

debate político

. Era algo mais privado. Mas é possível que uma pessoa de esquerda, por exemplo, que acredita mais na sociedade, que tem como ideal a igualdade, tenha costumes mais conservadores.

Aldo Fornazieri: Dependendo do lugar e da situação pode existir sim. Por exemplo, as cúpulas dos partidos comunistas da China e de Cuba, que na tipologia geral são de esquerda, são também conservadores do ponto de vista daqueles que querem mudanças dentro de cada um desses países. Também existe o liberal de direita. Hoje em dia o ultraliberalismo, o chamado neoliberalismo, é de direita, quando não de extrema-direita. Liberalismo e conservadorismo podem ou não ser  associados aos termos esquerda e direita. Por exemplo, nos Estados Unidos, os setores mais liberais do Partido Democrata são tidos como de esquerda e os setores mais conservadores do Partido Republicano são tidos como de direita.

Lucas Caiado: Essa associação de liberalismo à esquerda e conservadorismo à direita só se sustenta se voltamos à origem dos termos, quando de um lado tínhamos os conservadores e do outro os mais progressistas. Porém, o próprio fato de que essa simplificação da realidade não faz mais sentido sugere que essa associação deve ser abandonada. No nível de complexidade da sociedade atual, com as diferentes correntes ideológicas, não dá pra aceitar essa associação simples. Acaba sendo vazio. Existe conservador de esquerda e liberal de direita? Sim. Porque podem ser vistas em diferentes camadas e eixos. De um lado, política e do outro costumes. O século XX está cheio de movimentos que são por essência de esquerda, mas são conservadores de costumes. Da mesma forma que é possível definir liberais de direita, se pensarmos do ponto de vista econômico. 

João Victor Pinto: Acredito que esses dois termos podem estar associados tanto à esquerda como à direita, sim. Existem pessoas que são de direita e são a favor das liberdades econômicas e individuais. Da mesma forma que, nos dois eixos, vão existir pessoas que prezam por valores mais conservadores.   

 

Por que é importante existir posicionamentos políticos diferentes? 

João Victor Pinto: Isso é um valor democrático. Dentro da democracia, as políticas públicas são construídas com base no diálogo, na votação e na interação das ideias que permeiam a sociedade. É a partir disso que evitamos ter uma visão única, totalitária, vinda de cima pra baixo. De uma pessoa para o povo e não emergindo do povo para o poder. A divergência de posicionamentos é uma condição essencial para a democracia existir, porque permite ponderarmos essas diferenças naturais e construirmos políticas públicas que levem em consideração ideias divergentes

 Tatiana Roque: A diferença é importante dentro dos limites da democracia. Propostas de extrema-direita, que ferem a democracia, por exemplo, não devem existir. Da mesma forma, o centro é importante para balancear quando o jogo está pendendo para algum lado. 

Carlos Melo: Essa diferença é natural e sempre vai existir. O que é ruim é o radicalismo e a utilização de expressões confusas e desprovidas de sentido histórico. Inclusive, se voltarmos à definição da Revolução Francesa onde direita é quem é a favor da manutenção do status quo (da realidade atual) e quem é de esquerda é a favor da transformação, qualquer pessoa de bom senso ao longo da vida vai transitar e buscar se localizar de acordo com a necessidade. É natural. Algumas coisas precisam ser mantidas, outras não. Em alguns momentos, por exemplo, a proteção do Estado será necessária, em outros não. Em algumas situações, estatizar vai fazer sentido mais do que em outras. Acho que a questão passa por uma análise da realidade sem se prender a rótulos. 

Lucas Caiado:  É importante para que não se tenha só um ponto de vista como verdadeiro e que isso seja utilizado para justificar as mais extremas consequências. Historicamente, temos visto que isso não é adequado. Se uma sociedade preza a igualdade ao extremo e quer garantir que todas as pessoas sejam absolutamente iguais, correrá o risco de produzir experiências como na União Soviética, por exemplo. Da mesma forma, prezar pela liberdade num nível máximo é correr o risco de abrir mão completamente da igualdade e a achar que naturalmente algumas pessoas são melhores que outras, o que pode acabar criando associações com doutrinas de supremacia, como o nazismo. A existência de posicionamentos políticos é importante para justamente fornecer essa contraposição de ideias necessárias para o desenvolvimento e equilíbrio da sociedade. Se tem algo que aprendemos com o desenvolvimento da ciência é que a premissa do desenvolvimento racional e científico é estar aberto a possibilidade de estar errado. Se tem certeza de que você está certo e já tem todas as respostas, a única forma de alcançar o desenvolvimento é por sorte. Se você está aberto a noção de que pode estar errado e não tem todas as respostas, você dialoga e busca conjuntamente soluções possíveis para problemas comuns. 

Imagine a cena. Dois grupos se reúnem em uma assembleia para debater uma proposta. Enquanto as discussões acontecem, cada grupo se posiciona, fisicamente, em lados opostos. Quem estava mais à direita, acabou decidindo lutar para manter a situação atual. E quem estava do lado esquerdo, acabou definindo ser favorável às mudanças. Foi dessa forma que, em 1789, durante a Assembleia Nacional convocada durante a Revolução Francesa, os termos direita e esquerda passaram a classificar posicionamentos políticos contrários.

Na época, girondinos (mais conservadores) e jacobinos (mais revolucionários) tinham como objetivo principal escrever uma nova constituição. Nas discussões que se seguiam,  como explica Aldo Fornazieri, professor da Escola de Sociologia e Política, os que eram favoráveis à monarquia se sentaram à direita e os que eram partidários da revolução ficaram à esquerda. Desde então, os termos foram adaptados a contextos diferentes em várias regiões do mundo. 

Primeiro turno das eleições 2020 está marcado para 15 de novembro. Foto: Fabio Pozzebom/Agência Brasil

No Brasil, em 2018, as pesquisas no Google para entender o significado do que é ser de direita ou de esquerda atingiram um pico nunca antes visto, durante o período eleitoral que terminou com a eleição presidencial de Jair Bolsonaro

Para entender o significado atual dos termos históricos, o Estadão conversou com cinco especialistas: Lucas Caiado (advogado e mestre em Direito pelas Universidades de Cambridge e Columbia), Tatiana Roque (professora de pós-graduação de Filosofia na UFRJ), João Victor Pinto (consultor político do Poder do Voto). Carlos Melo (cientista político e professor no Insper) e Aldo Fornazieri (professor da Escola de Sociologia e Política e autor do livro A crise das esquerdas). Confira: 

O que é ser de esquerda ou de direita atualmente? 

Lucas Caiado: Não é uma pergunta fácil, porque ao longo da história essas percepções foram sendo moldadas. Porém, existe um fio condutor que permite entender que a direita preza pelo valor da liberdade e a esquerda pelo valor da igualdade. Ou seja, a direita tende a aceitar que a igualdade entre as pessoas não é natural e que, por isso, deve-se garantir a liberdade para que possam, de acordo com as suas capacidades naturais, atingir os seus potenciais máximos. Já a esquerda, tende a sacrificar a liberdade dos indivíduos para garantir que o valor igualdade seja contemplado em sua plenitude, ainda que eventualmente a eficiência seja comprometida. Em outras palavras, você aceita que a sociedade não atingirá tudo o que poderia para garantir que todos os indivíduos sejam iguais ou que tenham um mínimo de igualdade garantido. Mas isso não quer dizer que isso é o que significa hoje. Pela forma como a política se desenvolveu, estamos acostumados a caracterizar o outro lado não como o lado quer que ser caracterizado, mas como seus oponentes costumam caracterizar. E aí, nesse ponto, temos uma situação onde os dois sistemas são ruins, porque se olharmos sempre pela ótica do adversário, não conseguimos ver qualidades em nenhum desses posicionamentos. 

Tatiana Roque: De fato, a ideia original sofreu transformações e tem diferentes significados. Mas, atualmente, podemos dizer que a esquerda seria uma proposta mais voltada para o coletivo, para o social e que enxerga os problemas como sendo do coletivo e não do indivíduo. E a direita foca mais no indivíduo e, por isso, acaba naturalizando questões como a desigualdade social e de renda.

 Aldo Fornazieri: Com o advento das ideologias marxistas e socialistas, os seus partidários assumiram a designação de esquerda, enquanto que os defensores do capitalismo e das ideologias conservadoras ficaram designados como direita. Mas dentro disso tudo tem várias gradações que continuam mudando com o tempo e de lugar para lugar. 

João Victor Pinto: Em suma, acredito que a esquerda tenha como principal valor o igualitarismo. Ou seja, a igualdade é o maior valor que a sociedade precisa buscar e a desigualdade é o maior vilão a ser combatido. Enquanto que a direita tem como a liberdade individual o seu valor primordial e vê como um desafio tudo o que pode impedir essa liberdade. 

O que significa ser de centro? 

Carlos Melo: Em tese, o centro atua com um posicionamento mais moderado, que aceita um determinado grau de transformação e de conservação. Ou seja, aquilo que precisa mudar, muda e o que precisa continuar, continua. Mas essa é uma perspectiva positiva. Atualmente, acredito que o centro se define muito mais pelo que não é e isso abre portas para um certo oportunismo, que permite tirar vantagens dos dois lados, justamente por não se posicionar nem com um ou outro. 

Tatiana Roque: Essa definição é muito mais uma dificuldade de assumir uma proposta mais definida ideologicamente em um momento de polarização. Ou seja, é mais uma ausência de definição do que uma definição propriamente. 

Lucas Caiado: Muitos opositores dos grupos centrais acabam definindo os grupos de centro como indecisos, que estão em cima do muro ou os que não têm pauta. Mas, se pensarmos na essência de que a esquerda está associada à busca por igualdade e a direita por liberdade, o centro seria marcado por uma maior flexibilidade para transitar por esses dois eixos. O que se entende como centro ou que deveriam ser buscadas pelo centro são ações pautadas não necessariamente para que se mantenha a estrutura política ao redor de um ou outro eixo, mas em torno de projetos específicos para sociedade que por vezes podem se alinhar ao conceito de liberdade ou igualdade, dependendo do que for melhor naquele momento. 

Aldo Fornazieri: O centro expressa posições intermediárias entre as duas posições mais polares e extremadas. Mas aqui também existem várias gradações e intersecções. Por exemplo: uma pessoa pode ser mais próxima da direita no que tange à presença do Estado na economia e mais próxima da esquerda no que diz respeito à necessidade da justiça social e de uma igualdade maior. Um ambientalista pode ser de centro e outro pode ser de esquerda. Então, esses conceitos não têm uma rigidez e variam tanto de pessoa para pessoa, quanto de partido para partido.

Existem outras formas de classificar o posicionamento político de alguém? 

Aldo Fornazieri: Penso que outras formas também são válidas, sem que se anule a polaridade esquerda/direita. Por exemplo, pessoas e partidos podem se definir como ambientalista, ecologista, liberal, conservador, socialista, republicano, democrata etc. Hoje em dia a ideia de um novo republicanismo está em alta, ao menos no campo teórico, a partir de uma revalorização do pensamento do florentino Nicolau Maquiavel e do republicanismo de Roma antiga, além de outras contribuições. O novo republicanismo valoriza tanto a igualdade, quanto a liberdade, mas também a frugalidade, a simplicidade, a solidariedade, a participação democrática e comunitária e formas de uma democracia mais direta, exercida pelos cidadãos.

Existe conservador de esquerda? Liberal de direita? Liberalismo e conservadorismo estão associados aos termos? 

Tatiana Roque

: A popularização desses termos surgiu no momento em que os valores ganharam muito espaço na vida política, quando observamos movimentos que desafiam os

valores tradicionais

e outros que são

mais conservadores

. Antigamente, os valores não entravam tanto no

debate político

. Era algo mais privado. Mas é possível que uma pessoa de esquerda, por exemplo, que acredita mais na sociedade, que tem como ideal a igualdade, tenha costumes mais conservadores.

Aldo Fornazieri: Dependendo do lugar e da situação pode existir sim. Por exemplo, as cúpulas dos partidos comunistas da China e de Cuba, que na tipologia geral são de esquerda, são também conservadores do ponto de vista daqueles que querem mudanças dentro de cada um desses países. Também existe o liberal de direita. Hoje em dia o ultraliberalismo, o chamado neoliberalismo, é de direita, quando não de extrema-direita. Liberalismo e conservadorismo podem ou não ser  associados aos termos esquerda e direita. Por exemplo, nos Estados Unidos, os setores mais liberais do Partido Democrata são tidos como de esquerda e os setores mais conservadores do Partido Republicano são tidos como de direita.

Lucas Caiado: Essa associação de liberalismo à esquerda e conservadorismo à direita só se sustenta se voltamos à origem dos termos, quando de um lado tínhamos os conservadores e do outro os mais progressistas. Porém, o próprio fato de que essa simplificação da realidade não faz mais sentido sugere que essa associação deve ser abandonada. No nível de complexidade da sociedade atual, com as diferentes correntes ideológicas, não dá pra aceitar essa associação simples. Acaba sendo vazio. Existe conservador de esquerda e liberal de direita? Sim. Porque podem ser vistas em diferentes camadas e eixos. De um lado, política e do outro costumes. O século XX está cheio de movimentos que são por essência de esquerda, mas são conservadores de costumes. Da mesma forma que é possível definir liberais de direita, se pensarmos do ponto de vista econômico. 

João Victor Pinto: Acredito que esses dois termos podem estar associados tanto à esquerda como à direita, sim. Existem pessoas que são de direita e são a favor das liberdades econômicas e individuais. Da mesma forma que, nos dois eixos, vão existir pessoas que prezam por valores mais conservadores.   

 

Por que é importante existir posicionamentos políticos diferentes? 

João Victor Pinto: Isso é um valor democrático. Dentro da democracia, as políticas públicas são construídas com base no diálogo, na votação e na interação das ideias que permeiam a sociedade. É a partir disso que evitamos ter uma visão única, totalitária, vinda de cima pra baixo. De uma pessoa para o povo e não emergindo do povo para o poder. A divergência de posicionamentos é uma condição essencial para a democracia existir, porque permite ponderarmos essas diferenças naturais e construirmos políticas públicas que levem em consideração ideias divergentes

 Tatiana Roque: A diferença é importante dentro dos limites da democracia. Propostas de extrema-direita, que ferem a democracia, por exemplo, não devem existir. Da mesma forma, o centro é importante para balancear quando o jogo está pendendo para algum lado. 

Carlos Melo: Essa diferença é natural e sempre vai existir. O que é ruim é o radicalismo e a utilização de expressões confusas e desprovidas de sentido histórico. Inclusive, se voltarmos à definição da Revolução Francesa onde direita é quem é a favor da manutenção do status quo (da realidade atual) e quem é de esquerda é a favor da transformação, qualquer pessoa de bom senso ao longo da vida vai transitar e buscar se localizar de acordo com a necessidade. É natural. Algumas coisas precisam ser mantidas, outras não. Em alguns momentos, por exemplo, a proteção do Estado será necessária, em outros não. Em algumas situações, estatizar vai fazer sentido mais do que em outras. Acho que a questão passa por uma análise da realidade sem se prender a rótulos. 

Lucas Caiado:  É importante para que não se tenha só um ponto de vista como verdadeiro e que isso seja utilizado para justificar as mais extremas consequências. Historicamente, temos visto que isso não é adequado. Se uma sociedade preza a igualdade ao extremo e quer garantir que todas as pessoas sejam absolutamente iguais, correrá o risco de produzir experiências como na União Soviética, por exemplo. Da mesma forma, prezar pela liberdade num nível máximo é correr o risco de abrir mão completamente da igualdade e a achar que naturalmente algumas pessoas são melhores que outras, o que pode acabar criando associações com doutrinas de supremacia, como o nazismo. A existência de posicionamentos políticos é importante para justamente fornecer essa contraposição de ideias necessárias para o desenvolvimento e equilíbrio da sociedade. Se tem algo que aprendemos com o desenvolvimento da ciência é que a premissa do desenvolvimento racional e científico é estar aberto a possibilidade de estar errado. Se tem certeza de que você está certo e já tem todas as respostas, a única forma de alcançar o desenvolvimento é por sorte. Se você está aberto a noção de que pode estar errado e não tem todas as respostas, você dialoga e busca conjuntamente soluções possíveis para problemas comuns. 

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