Oficiais indiciados por tentativa de golpe fazem parte de ‘família militar’; entenda


Levantamento identificou ao menos nove integrantes das Forças Armadas, incluindo Walter Braga Netto, Mário Fernandes, Augusto Heleno e Mauro Cid, com relações militares por gerações

Por Hugo Henud
Atualização:

Pelo menos nove dos militares indiciados pela Polícia Federal (PF) sob suspeita de envolvimento na tentativa de golpe de Estado fazem parte de famílias que, geração após geração, estão vinculadas às Forças Armadas. Alguns dos oficiais hoje sob investigação têm parentes que ocuparam postos de comando durante a ditadura militar. É o que aponta o levantamento realizado para o Estadão por pesquisador da Universidade Federal do Paraná.

Essa relação geracional com as Forças tem mais destaque entre os militares de alta patente, incluindo Walter Braga Netto, Mário Fernandes, Augusto Heleno e Mauro Cid. Ao todo, 24 militares foram indiciados pela PF, e quatro permanecem presos preventivamente.

Para historiadores e cientistas políticos ouvidos pelo jornal, essas conexões, embora façam parte de um processo natural nas trajetórias militares, evidenciam a manutenção de um ideário intervencionista reforçado durante o período da ditadura.

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O então presidente da República Jair Bolsonaro é condecorado com a Ordem do Mérito Militar Grão Mestre pelo comandante do Exercito, Edson Leal Pujol, em 2021 Foto: Dida Sampaio/ Estadão

Segundo o pesquisador e professor Ricardo Costa de Oliveira, decano do Departamento de Sociologia da Universidade Federal do Paraná e autor do estudo realizado com exclusividade para o Estadão, os vínculos familiares demonstram como redes genealógicas, frequentemente reforçadas por casamentos, perpetuam uma “bolha” social e política que sustenta a hegemonia da chamada ‘família militar’.

Entre os casos destacados está o de Mauro Cid, ex-ajudante de ordens da Presidência e tenente-coronel afastado do Exército, considerado peça central na trama golpista. Cid é filho do General Mauro César Lourena Cid e neto do coronel Antônio Carlos Cid, que, durante a ditadura militar, atuou na Casa Militar – órgão responsável por assessorar a Presidência da República em questões de segurança e articulação com as Forças Armadas.

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Outro exemplo é o general da reserva Mário Fernandes, ex-secretário-executivo da Secretaria-Geral da Presidência no governo Bolsonaro, acusado de ser um dos articuladores do plano denominado “Punhal Verde e Amarelo”, cujo objetivo seria assassinar o ministro do Supremo Tribunal Federal Alexandre de Moraes, o presidente Luiz Inácio Lula da Silva e o vice-presidente Geraldo Alckmin. Fernandes é filho do sargento do Exército José Hermeudo Monteiro Fernandes, que serviu em Brasília durante o período da ditadura.

Já o ex-ministro da Defesa e candidato a vice-presidente na chapa de Jair Bolsonaro em 2022, o general da reserva Walter Braga Netto, exemplifica a influência das relações familiares e do casamento nas Forças Armadas. Braga Netto, acusado de incitar outros militares a aderirem ao plano golpista, é genro do general de Exército Armando de Moraes Ancora Filho, que atuou durante a regime militar.

O ex-ministro do Gabinete de Segurança Institucional (GSI) no governo Bolsonaro e general da reserva do Exército, Augusto Heleno, que estaria à frente do “gabinete de gestão de crise” previsto para ser instaurado após a execução do golpe, é filho do Coronel Ari de Oliveira Pereira, que lecionou no Colégio Militar, e neto do Almirante Augusto Heleno Pereira, ex-comandante da Escola Naval. Durante a ditadura militar, o ex-ministro de Bolsonaro serviu como capitão do Exército e atuou como ajudante de ordens do então Ministro do Exército, Sylvio Frota.

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Há também os casos do comandante do Comando de Operações Terrestres (Coter), Estevam Cals Theophilo Gaspar de Oliveira, filho do general de Brigada Manoel Theophilo Gaspar de Oliveira Neto, que assumiu o comando do 10º Grupo de Obuses em 1967; o economista Paulo Renato de Oliveira Figueiredo Filho, neto do ex-presidente João Baptista Figueiredo; o coronel de Infantaria do Exército Cleverson Ney Magalhães, filho de Orestes Leque Magalhães, que alcançou o posto de capitão antes de ser transferido para a reserva em 1981; e o tenente-coronel Sérgio Ricardo Cavaliere de Medeiros, filho do Subtenente Rubem de Medeiros, que foi para a reserva com a patente de segundo-tenente.

Para Oliveira, as relações familiares destacadas entre os indiciados revelam não apenas hereditariedade militar, mas também a continuidade de ideologias e práticas associadas ao período da ditadura. “Chama atenção como muitos dos investigados de maior patente possuem esses vínculos, algo que deve ser investigado sociologicamente”, pontua.

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Perpetuação de ideias de intervencionismo militar nas Forças Armadas

Na avaliação do historiador e pesquisador da UFRJ, Carlos Fico, um dos principais fatores que sustentam as ideias de intervencionismo militar nas Forças Armadas é o ambiente da caserna, onde valores, culturas e ideologias são continuamente reproduzidos entre comandantes e comandados, sustentados por vínculos de solidariedade e pelos princípios de hierarquia e disciplina.

O historiador ressalta que o modelo de transição da ditadura para a democracia no Brasil foi “inconcluso”, uma vez que não houve uma ruptura simbólica e efetiva — como o julgamento e a punição dos crimes cometidos durante o regime militar —, cenário que, em sua avaliação, contribuiu para a construção de uma “memória benevolente” sobre aquele período, tanto entre militares quanto entre civis.

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“A transição da ditadura para a democracia não foi marcada por uma verdadeira ruptura, como no caso da Argentina. Não houve o julgamento de crimes cometidos pelos militares, nem sequer o reconhecimento do erro pelas Forças Armadas. Durante a ditadura, havia a censura e a propaganda política, que também favoreceram a construção de uma ‘memória benevolente’ sobre aquele período”, pontua.

Os áudios entre militares revelados pela PF, nos quais afirmam a necessidade de “tomar as rédeas” para evitar uma “guerra civil”, também integram, na avaliação de Carlos Fico, padrões recorrentes nas tentativas de golpe no Brasil, em que militares interpretam a garantia dos poderes constitucionais como um direito de intervir na política, assumindo o papel de tutores da República.

“Muitos militares entendem que a atribuição constitucional de garantia dos poderes constitucionais lhes dá o direito de intervir na política. Isso existe desde a Constituição de 1891″, completa.

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Reformas institucionais, punição aos envolvidos e extinção dos kids pretos

Para o historiador e professor da UFRJ, Francisco Carlos Teixeira, a interpretação equivocada de alguns grupos de militares sobre os poderes constitucionais decorre de uma leitura heterodoxa do artigo 142 da Constituição, que atribui às Forças Armadas a função de garantir os poderes constitucionais. Teixeira defende a necessidade de revisar a redação do dispositivo, dado que o texto tem sido utilizado por determinados grupos como subterfúgio para justificar um suposto Poder Moderador, legitimando intervenções em crises políticas sob o pretexto de “garantir os poderes constitucionais”. “Essa mudança teria um efeito prático muito forte, já que o corpo militar é bastante sensível a simbolismos legais”, afirma.

O historiador também destaca a importância de reformar e atualizar as instituições responsáveis pela formação dos militares, com o objetivo de fortalecer a estabilidade institucional e o respeito ao estado de direito. “Essas escolas ainda se baseiam em valores e princípios que remontam ao período de instabilidade política e militar da República”, conclui.

Teixeira defende ainda a necessidade de extinguir ou reformular os chamados “kids pretos”, militares do Exército especializados em operações especiais, que, segundo a PF, participaram de diversas ações clandestinas voltadas à implementação do golpe de Estado, incluindo o plano Punhal Verde e Amarelo. O professor argumenta que essa unidade especial perpetua um ethos autoritário, sustentando uma cultura militarista e conspiracionista que a afasta do papel esperado em uma democracia.

Além da reforma institucional, o pesquisador e professor da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), Rodrigo Patto Sá Motta, destaca que o julgamento de todos os militares envolvidos e o cumprimento integral das sentenças são medidas essenciais para evitar a repetição de episódios como os revelados pela PF.

Assim como Carlos Fico, Patto Sá Motta ressalta que a Lei da Anistia, sancionada pelo presidente João Baptista Figueiredo em 1979, não apenas concedeu perdão aos crimes cometidos durante o regime militar, impedindo o julgamento de militares, mas também contribuiu para que a transição para a democracia permanecesse incompleta – permitindo que os militares continuassem a cultivar “1964″ como algo positivo, sem culpa ou temor de serem responsabilizados.

“Anistia até hoje ajuda a lançar um manto de silêncio, de esquecimento sobre esse passado. Nenhum militar golpista foi punido na história brasileira. Sempre houve anistia. Isso é fundamental para que houvesse diversas tentativas de golpe no Brasil”, explica.

A articulação no Congresso Nacional para aprovar um projeto que conceda perdão aos envolvidos nos atos de 8 de Janeiro, incluindo os militares indiciados na trama golpista, representa, na visão do cientista político e professor da Universidade Federal de São Carlos, João Roberto Martins Filho, uma tentativa de replicar os efeitos da Lei da Anistia. Em sua avaliação, iniciativas como essa não deveriam prosperar entre os políticos e precisam ser acompanhadas de perto pela sociedade.

“A impunidade que caracterizou o processo brasileiro, diferente do Uruguai, da Argentina, do Chile, alimentou a noção de que, ‘olha, nós podemos ir até onde quisermos, porque nunca nenhum foi punido’. Não punindo, o que aconteceu? Não há nenhum país aqui, no Cone Sul, onde os militares voltaram a ter o poder que retomaram com o Bolsonaro. Então, não podemos adotar novamente esse caminho”, completa.

Pelo menos nove dos militares indiciados pela Polícia Federal (PF) sob suspeita de envolvimento na tentativa de golpe de Estado fazem parte de famílias que, geração após geração, estão vinculadas às Forças Armadas. Alguns dos oficiais hoje sob investigação têm parentes que ocuparam postos de comando durante a ditadura militar. É o que aponta o levantamento realizado para o Estadão por pesquisador da Universidade Federal do Paraná.

Essa relação geracional com as Forças tem mais destaque entre os militares de alta patente, incluindo Walter Braga Netto, Mário Fernandes, Augusto Heleno e Mauro Cid. Ao todo, 24 militares foram indiciados pela PF, e quatro permanecem presos preventivamente.

Para historiadores e cientistas políticos ouvidos pelo jornal, essas conexões, embora façam parte de um processo natural nas trajetórias militares, evidenciam a manutenção de um ideário intervencionista reforçado durante o período da ditadura.

O então presidente da República Jair Bolsonaro é condecorado com a Ordem do Mérito Militar Grão Mestre pelo comandante do Exercito, Edson Leal Pujol, em 2021 Foto: Dida Sampaio/ Estadão

Segundo o pesquisador e professor Ricardo Costa de Oliveira, decano do Departamento de Sociologia da Universidade Federal do Paraná e autor do estudo realizado com exclusividade para o Estadão, os vínculos familiares demonstram como redes genealógicas, frequentemente reforçadas por casamentos, perpetuam uma “bolha” social e política que sustenta a hegemonia da chamada ‘família militar’.

Entre os casos destacados está o de Mauro Cid, ex-ajudante de ordens da Presidência e tenente-coronel afastado do Exército, considerado peça central na trama golpista. Cid é filho do General Mauro César Lourena Cid e neto do coronel Antônio Carlos Cid, que, durante a ditadura militar, atuou na Casa Militar – órgão responsável por assessorar a Presidência da República em questões de segurança e articulação com as Forças Armadas.

Outro exemplo é o general da reserva Mário Fernandes, ex-secretário-executivo da Secretaria-Geral da Presidência no governo Bolsonaro, acusado de ser um dos articuladores do plano denominado “Punhal Verde e Amarelo”, cujo objetivo seria assassinar o ministro do Supremo Tribunal Federal Alexandre de Moraes, o presidente Luiz Inácio Lula da Silva e o vice-presidente Geraldo Alckmin. Fernandes é filho do sargento do Exército José Hermeudo Monteiro Fernandes, que serviu em Brasília durante o período da ditadura.

Já o ex-ministro da Defesa e candidato a vice-presidente na chapa de Jair Bolsonaro em 2022, o general da reserva Walter Braga Netto, exemplifica a influência das relações familiares e do casamento nas Forças Armadas. Braga Netto, acusado de incitar outros militares a aderirem ao plano golpista, é genro do general de Exército Armando de Moraes Ancora Filho, que atuou durante a regime militar.

O ex-ministro do Gabinete de Segurança Institucional (GSI) no governo Bolsonaro e general da reserva do Exército, Augusto Heleno, que estaria à frente do “gabinete de gestão de crise” previsto para ser instaurado após a execução do golpe, é filho do Coronel Ari de Oliveira Pereira, que lecionou no Colégio Militar, e neto do Almirante Augusto Heleno Pereira, ex-comandante da Escola Naval. Durante a ditadura militar, o ex-ministro de Bolsonaro serviu como capitão do Exército e atuou como ajudante de ordens do então Ministro do Exército, Sylvio Frota.

Há também os casos do comandante do Comando de Operações Terrestres (Coter), Estevam Cals Theophilo Gaspar de Oliveira, filho do general de Brigada Manoel Theophilo Gaspar de Oliveira Neto, que assumiu o comando do 10º Grupo de Obuses em 1967; o economista Paulo Renato de Oliveira Figueiredo Filho, neto do ex-presidente João Baptista Figueiredo; o coronel de Infantaria do Exército Cleverson Ney Magalhães, filho de Orestes Leque Magalhães, que alcançou o posto de capitão antes de ser transferido para a reserva em 1981; e o tenente-coronel Sérgio Ricardo Cavaliere de Medeiros, filho do Subtenente Rubem de Medeiros, que foi para a reserva com a patente de segundo-tenente.

Para Oliveira, as relações familiares destacadas entre os indiciados revelam não apenas hereditariedade militar, mas também a continuidade de ideologias e práticas associadas ao período da ditadura. “Chama atenção como muitos dos investigados de maior patente possuem esses vínculos, algo que deve ser investigado sociologicamente”, pontua.

Perpetuação de ideias de intervencionismo militar nas Forças Armadas

Na avaliação do historiador e pesquisador da UFRJ, Carlos Fico, um dos principais fatores que sustentam as ideias de intervencionismo militar nas Forças Armadas é o ambiente da caserna, onde valores, culturas e ideologias são continuamente reproduzidos entre comandantes e comandados, sustentados por vínculos de solidariedade e pelos princípios de hierarquia e disciplina.

O historiador ressalta que o modelo de transição da ditadura para a democracia no Brasil foi “inconcluso”, uma vez que não houve uma ruptura simbólica e efetiva — como o julgamento e a punição dos crimes cometidos durante o regime militar —, cenário que, em sua avaliação, contribuiu para a construção de uma “memória benevolente” sobre aquele período, tanto entre militares quanto entre civis.

“A transição da ditadura para a democracia não foi marcada por uma verdadeira ruptura, como no caso da Argentina. Não houve o julgamento de crimes cometidos pelos militares, nem sequer o reconhecimento do erro pelas Forças Armadas. Durante a ditadura, havia a censura e a propaganda política, que também favoreceram a construção de uma ‘memória benevolente’ sobre aquele período”, pontua.

Os áudios entre militares revelados pela PF, nos quais afirmam a necessidade de “tomar as rédeas” para evitar uma “guerra civil”, também integram, na avaliação de Carlos Fico, padrões recorrentes nas tentativas de golpe no Brasil, em que militares interpretam a garantia dos poderes constitucionais como um direito de intervir na política, assumindo o papel de tutores da República.

“Muitos militares entendem que a atribuição constitucional de garantia dos poderes constitucionais lhes dá o direito de intervir na política. Isso existe desde a Constituição de 1891″, completa.

Reformas institucionais, punição aos envolvidos e extinção dos kids pretos

Para o historiador e professor da UFRJ, Francisco Carlos Teixeira, a interpretação equivocada de alguns grupos de militares sobre os poderes constitucionais decorre de uma leitura heterodoxa do artigo 142 da Constituição, que atribui às Forças Armadas a função de garantir os poderes constitucionais. Teixeira defende a necessidade de revisar a redação do dispositivo, dado que o texto tem sido utilizado por determinados grupos como subterfúgio para justificar um suposto Poder Moderador, legitimando intervenções em crises políticas sob o pretexto de “garantir os poderes constitucionais”. “Essa mudança teria um efeito prático muito forte, já que o corpo militar é bastante sensível a simbolismos legais”, afirma.

O historiador também destaca a importância de reformar e atualizar as instituições responsáveis pela formação dos militares, com o objetivo de fortalecer a estabilidade institucional e o respeito ao estado de direito. “Essas escolas ainda se baseiam em valores e princípios que remontam ao período de instabilidade política e militar da República”, conclui.

Teixeira defende ainda a necessidade de extinguir ou reformular os chamados “kids pretos”, militares do Exército especializados em operações especiais, que, segundo a PF, participaram de diversas ações clandestinas voltadas à implementação do golpe de Estado, incluindo o plano Punhal Verde e Amarelo. O professor argumenta que essa unidade especial perpetua um ethos autoritário, sustentando uma cultura militarista e conspiracionista que a afasta do papel esperado em uma democracia.

Além da reforma institucional, o pesquisador e professor da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), Rodrigo Patto Sá Motta, destaca que o julgamento de todos os militares envolvidos e o cumprimento integral das sentenças são medidas essenciais para evitar a repetição de episódios como os revelados pela PF.

Assim como Carlos Fico, Patto Sá Motta ressalta que a Lei da Anistia, sancionada pelo presidente João Baptista Figueiredo em 1979, não apenas concedeu perdão aos crimes cometidos durante o regime militar, impedindo o julgamento de militares, mas também contribuiu para que a transição para a democracia permanecesse incompleta – permitindo que os militares continuassem a cultivar “1964″ como algo positivo, sem culpa ou temor de serem responsabilizados.

“Anistia até hoje ajuda a lançar um manto de silêncio, de esquecimento sobre esse passado. Nenhum militar golpista foi punido na história brasileira. Sempre houve anistia. Isso é fundamental para que houvesse diversas tentativas de golpe no Brasil”, explica.

A articulação no Congresso Nacional para aprovar um projeto que conceda perdão aos envolvidos nos atos de 8 de Janeiro, incluindo os militares indiciados na trama golpista, representa, na visão do cientista político e professor da Universidade Federal de São Carlos, João Roberto Martins Filho, uma tentativa de replicar os efeitos da Lei da Anistia. Em sua avaliação, iniciativas como essa não deveriam prosperar entre os políticos e precisam ser acompanhadas de perto pela sociedade.

“A impunidade que caracterizou o processo brasileiro, diferente do Uruguai, da Argentina, do Chile, alimentou a noção de que, ‘olha, nós podemos ir até onde quisermos, porque nunca nenhum foi punido’. Não punindo, o que aconteceu? Não há nenhum país aqui, no Cone Sul, onde os militares voltaram a ter o poder que retomaram com o Bolsonaro. Então, não podemos adotar novamente esse caminho”, completa.

Pelo menos nove dos militares indiciados pela Polícia Federal (PF) sob suspeita de envolvimento na tentativa de golpe de Estado fazem parte de famílias que, geração após geração, estão vinculadas às Forças Armadas. Alguns dos oficiais hoje sob investigação têm parentes que ocuparam postos de comando durante a ditadura militar. É o que aponta o levantamento realizado para o Estadão por pesquisador da Universidade Federal do Paraná.

Essa relação geracional com as Forças tem mais destaque entre os militares de alta patente, incluindo Walter Braga Netto, Mário Fernandes, Augusto Heleno e Mauro Cid. Ao todo, 24 militares foram indiciados pela PF, e quatro permanecem presos preventivamente.

Para historiadores e cientistas políticos ouvidos pelo jornal, essas conexões, embora façam parte de um processo natural nas trajetórias militares, evidenciam a manutenção de um ideário intervencionista reforçado durante o período da ditadura.

O então presidente da República Jair Bolsonaro é condecorado com a Ordem do Mérito Militar Grão Mestre pelo comandante do Exercito, Edson Leal Pujol, em 2021 Foto: Dida Sampaio/ Estadão

Segundo o pesquisador e professor Ricardo Costa de Oliveira, decano do Departamento de Sociologia da Universidade Federal do Paraná e autor do estudo realizado com exclusividade para o Estadão, os vínculos familiares demonstram como redes genealógicas, frequentemente reforçadas por casamentos, perpetuam uma “bolha” social e política que sustenta a hegemonia da chamada ‘família militar’.

Entre os casos destacados está o de Mauro Cid, ex-ajudante de ordens da Presidência e tenente-coronel afastado do Exército, considerado peça central na trama golpista. Cid é filho do General Mauro César Lourena Cid e neto do coronel Antônio Carlos Cid, que, durante a ditadura militar, atuou na Casa Militar – órgão responsável por assessorar a Presidência da República em questões de segurança e articulação com as Forças Armadas.

Outro exemplo é o general da reserva Mário Fernandes, ex-secretário-executivo da Secretaria-Geral da Presidência no governo Bolsonaro, acusado de ser um dos articuladores do plano denominado “Punhal Verde e Amarelo”, cujo objetivo seria assassinar o ministro do Supremo Tribunal Federal Alexandre de Moraes, o presidente Luiz Inácio Lula da Silva e o vice-presidente Geraldo Alckmin. Fernandes é filho do sargento do Exército José Hermeudo Monteiro Fernandes, que serviu em Brasília durante o período da ditadura.

Já o ex-ministro da Defesa e candidato a vice-presidente na chapa de Jair Bolsonaro em 2022, o general da reserva Walter Braga Netto, exemplifica a influência das relações familiares e do casamento nas Forças Armadas. Braga Netto, acusado de incitar outros militares a aderirem ao plano golpista, é genro do general de Exército Armando de Moraes Ancora Filho, que atuou durante a regime militar.

O ex-ministro do Gabinete de Segurança Institucional (GSI) no governo Bolsonaro e general da reserva do Exército, Augusto Heleno, que estaria à frente do “gabinete de gestão de crise” previsto para ser instaurado após a execução do golpe, é filho do Coronel Ari de Oliveira Pereira, que lecionou no Colégio Militar, e neto do Almirante Augusto Heleno Pereira, ex-comandante da Escola Naval. Durante a ditadura militar, o ex-ministro de Bolsonaro serviu como capitão do Exército e atuou como ajudante de ordens do então Ministro do Exército, Sylvio Frota.

Há também os casos do comandante do Comando de Operações Terrestres (Coter), Estevam Cals Theophilo Gaspar de Oliveira, filho do general de Brigada Manoel Theophilo Gaspar de Oliveira Neto, que assumiu o comando do 10º Grupo de Obuses em 1967; o economista Paulo Renato de Oliveira Figueiredo Filho, neto do ex-presidente João Baptista Figueiredo; o coronel de Infantaria do Exército Cleverson Ney Magalhães, filho de Orestes Leque Magalhães, que alcançou o posto de capitão antes de ser transferido para a reserva em 1981; e o tenente-coronel Sérgio Ricardo Cavaliere de Medeiros, filho do Subtenente Rubem de Medeiros, que foi para a reserva com a patente de segundo-tenente.

Para Oliveira, as relações familiares destacadas entre os indiciados revelam não apenas hereditariedade militar, mas também a continuidade de ideologias e práticas associadas ao período da ditadura. “Chama atenção como muitos dos investigados de maior patente possuem esses vínculos, algo que deve ser investigado sociologicamente”, pontua.

Perpetuação de ideias de intervencionismo militar nas Forças Armadas

Na avaliação do historiador e pesquisador da UFRJ, Carlos Fico, um dos principais fatores que sustentam as ideias de intervencionismo militar nas Forças Armadas é o ambiente da caserna, onde valores, culturas e ideologias são continuamente reproduzidos entre comandantes e comandados, sustentados por vínculos de solidariedade e pelos princípios de hierarquia e disciplina.

O historiador ressalta que o modelo de transição da ditadura para a democracia no Brasil foi “inconcluso”, uma vez que não houve uma ruptura simbólica e efetiva — como o julgamento e a punição dos crimes cometidos durante o regime militar —, cenário que, em sua avaliação, contribuiu para a construção de uma “memória benevolente” sobre aquele período, tanto entre militares quanto entre civis.

“A transição da ditadura para a democracia não foi marcada por uma verdadeira ruptura, como no caso da Argentina. Não houve o julgamento de crimes cometidos pelos militares, nem sequer o reconhecimento do erro pelas Forças Armadas. Durante a ditadura, havia a censura e a propaganda política, que também favoreceram a construção de uma ‘memória benevolente’ sobre aquele período”, pontua.

Os áudios entre militares revelados pela PF, nos quais afirmam a necessidade de “tomar as rédeas” para evitar uma “guerra civil”, também integram, na avaliação de Carlos Fico, padrões recorrentes nas tentativas de golpe no Brasil, em que militares interpretam a garantia dos poderes constitucionais como um direito de intervir na política, assumindo o papel de tutores da República.

“Muitos militares entendem que a atribuição constitucional de garantia dos poderes constitucionais lhes dá o direito de intervir na política. Isso existe desde a Constituição de 1891″, completa.

Reformas institucionais, punição aos envolvidos e extinção dos kids pretos

Para o historiador e professor da UFRJ, Francisco Carlos Teixeira, a interpretação equivocada de alguns grupos de militares sobre os poderes constitucionais decorre de uma leitura heterodoxa do artigo 142 da Constituição, que atribui às Forças Armadas a função de garantir os poderes constitucionais. Teixeira defende a necessidade de revisar a redação do dispositivo, dado que o texto tem sido utilizado por determinados grupos como subterfúgio para justificar um suposto Poder Moderador, legitimando intervenções em crises políticas sob o pretexto de “garantir os poderes constitucionais”. “Essa mudança teria um efeito prático muito forte, já que o corpo militar é bastante sensível a simbolismos legais”, afirma.

O historiador também destaca a importância de reformar e atualizar as instituições responsáveis pela formação dos militares, com o objetivo de fortalecer a estabilidade institucional e o respeito ao estado de direito. “Essas escolas ainda se baseiam em valores e princípios que remontam ao período de instabilidade política e militar da República”, conclui.

Teixeira defende ainda a necessidade de extinguir ou reformular os chamados “kids pretos”, militares do Exército especializados em operações especiais, que, segundo a PF, participaram de diversas ações clandestinas voltadas à implementação do golpe de Estado, incluindo o plano Punhal Verde e Amarelo. O professor argumenta que essa unidade especial perpetua um ethos autoritário, sustentando uma cultura militarista e conspiracionista que a afasta do papel esperado em uma democracia.

Além da reforma institucional, o pesquisador e professor da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), Rodrigo Patto Sá Motta, destaca que o julgamento de todos os militares envolvidos e o cumprimento integral das sentenças são medidas essenciais para evitar a repetição de episódios como os revelados pela PF.

Assim como Carlos Fico, Patto Sá Motta ressalta que a Lei da Anistia, sancionada pelo presidente João Baptista Figueiredo em 1979, não apenas concedeu perdão aos crimes cometidos durante o regime militar, impedindo o julgamento de militares, mas também contribuiu para que a transição para a democracia permanecesse incompleta – permitindo que os militares continuassem a cultivar “1964″ como algo positivo, sem culpa ou temor de serem responsabilizados.

“Anistia até hoje ajuda a lançar um manto de silêncio, de esquecimento sobre esse passado. Nenhum militar golpista foi punido na história brasileira. Sempre houve anistia. Isso é fundamental para que houvesse diversas tentativas de golpe no Brasil”, explica.

A articulação no Congresso Nacional para aprovar um projeto que conceda perdão aos envolvidos nos atos de 8 de Janeiro, incluindo os militares indiciados na trama golpista, representa, na visão do cientista político e professor da Universidade Federal de São Carlos, João Roberto Martins Filho, uma tentativa de replicar os efeitos da Lei da Anistia. Em sua avaliação, iniciativas como essa não deveriam prosperar entre os políticos e precisam ser acompanhadas de perto pela sociedade.

“A impunidade que caracterizou o processo brasileiro, diferente do Uruguai, da Argentina, do Chile, alimentou a noção de que, ‘olha, nós podemos ir até onde quisermos, porque nunca nenhum foi punido’. Não punindo, o que aconteceu? Não há nenhum país aqui, no Cone Sul, onde os militares voltaram a ter o poder que retomaram com o Bolsonaro. Então, não podemos adotar novamente esse caminho”, completa.

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