BRASÍLIA – Com R$ 11,2 bilhões no Orçamento de 2024, as emendas de bancadas estaduais surgiram para financiar grandes obras, definidas em comum acordo entre os congressistas de cada Estado. Mas não é o que vem ocorrendo nos últimos anos: em várias bancadas, deputados e senadores passaram a dividir as emendas em pequenos montantes, a serem enviados para prefeituras e entidades, tratando-as, na prática, como emendas individuais. Ofícios obtidos pela reportagem do Estadão por meio da Lei de Acesso à Informação (LAI) mostram o “racha” do dinheiro entre os congressistas, com nomes e valores da “cota” de cada um.
Em Brasília, esse tipo de divisão é conhecida como “rachadinha orçamentária”, e, apesar de naturalizada, é irregular: a prática é vedada pela Resolução nº 1 de 2006 do Congresso, que determina que as emendas de bancada sejam destinadas a projetos “de grande vulto” ou “estruturantes”. A reportagem procurou congressistas que assinam os ofícios, mas não obteve resposta.
Informações como as reveladas pelos ofícios não são públicas em fontes abertas. Não é possível rastrear a “cota” de cada congressista no rateio das emendas de bancada usando ferramentas como o Siga Brasil ou o Portal da Transparência. Trata-se de um arranjo informal dentro das bancadas.
Em ofício do dia 26 de março deste ano, o deputado federal Murilo Galdino (Republicanos-PB) explica ao ministro da Integração e Desenvolvimento Regional, Waldez Góes, como devem ser divididos os R$ 81,7 milhões de uma emenda da bancada da Paraíba. A verba será executada pela Companhia de Desenvolvimento do Vale do São Francisco (Codevasf), empresa estatal ligada ao ministério de Góes.
Pelo rateio, o próprio Galdino tem direito a indicar R$ 6,5 milhões nessa emenda. Já o senador Efraim Filho (União Brasil-PB) faz jus a R$ 10 milhões, e o deputado Gervásio Maia (PSB-PB) poderá destinar R$ 6 milhões. Todos alocaram os recursos na rubrica genérica da Codevasf, indicada pelo código 00SX. “Em breve informaremos os beneficiários de cada parlamentar”, conclui Galdino, no ofício.
Em outro documento similar, no dia 20 de março, a coordenadora da bancada da Bahia, a deputada Lídice da Mata (PSB) informa o ministro da Secretaria de Relações Institucionais (SRI), Alexandre Padilha, sobre a divisão de uma emenda da bancada baiana. “Senhor ministro, cumprimentando-o cordialmente, encaminho indicação de parte dos beneficiários já definidos pelos senhores parlamentares”, diz a congressista.
O ofício acompanha uma tabela com as destinações de alguns deputados: Daniel Almeida (PCdoB), por exemplo, dividiu os recursos entre 15 associações e sindicatos rurais, com valores que variam de R$ 7,5 mil a R$ 113 mil.
Para o cientista político e professor da Fundação Getulio Vargas (FGV) Sérgio Praça, o “rateio” das emendas de bancada responde a incentivos eleitorais. “O nosso sistema eleitoral proporcional de lista aberta implica numa competição muito acirrada entre parlamentares, inclusive do mesmo partido ou federação (...). E aí, vai ser extremamente difícil me fazer cooperar com quem está disputando contra mim, ou seja, os parlamentares do meu Estado”, afirma.
Vice-presidente da empresa de consultoria política Arko Advice, Cristiano Noronha lembra que muitos municípios brasileiros – principalmente os menores – dependem de verbas federais. Atender os prefeitos dessas cidades é fundamental para congressistas cujos votos estão espalhados por todo o Estado, diz ele.
“É muito mais interessante, para o parlamentar, fazer a aplicação dos recursos de forma pulverizada, de forma a beneficiar vários municípios (...). Dessa forma, o congressista pode atender vários prefeitos aliados simultaneamente”, diz Noronha. Projetos estruturantes que atendam apenas uma localidade não têm o mesmo resultado eleitoral, explica.
Na bancada pernambucana, os ofícios são assinados pelos dois coordenadores – Augusto Coutinho (Republicanos) e Carlos Veras (PT) – e encaminhados a Alexandre Padilha. Em um deles, a dupla informa Padilha de que o senador Fernando Dueire (MDB) decidiu destinar sua “cota” na emenda de bancada à aquisição de uma retroescavadeira hidráulica, para a Associação de Moradores e Trabalhadores Rurais de Frei Miguelinho (PE), município de 15,1 mil habitantes a 114 quilômetros de Recife.
Em outro despacho, a dupla informa sobre a destinação de uma retroescavadeira para a Associação Terras do Bitury, no município de Belo Jardim (PE), a 187 quilômetros da capital estadual. A compra seria financiada pela “indicação da cota individual do deputado federal Luciano Bivar”, do União Brasil.
No jargão do Orçamento, as emendas de bancadas estaduais estão identificadas de duas formas: a maior parte (R$ 8,5 bilhões) recebem o marcador “RP 7″ – são as emendas de bancada oficiais. Outra parte (R$ 2,7 bilhões) recebe o marcador RP 2. Pela Constituição, as emendas de bancada são impositivas, ou seja, o Executivo é obrigado a pagá-las.
No entanto, nem a Constituição nem a Resolução do Congresso que trata do assunto, de 2006, definem os critérios para a divisão do bolo entre os Estados. Usualmente, o dinheiro é dividido igualmente entre todos os Estados, após o desconto de uma parcela que vai para o Fundão eleitoral.
Neste ano, o valor total destinado a cada Estado é de R$ 316,9 milhões. Pela Constituição, o valor das emendas de bancada estadual equivale a 1% da Receita Corrente Líquida (RCL). A RCL corresponde à arrecadação corrente total da União, descontados os valores das transferências constitucionais devidas aos Estados e municípios.
Dos R$ 11,2 bilhões reservados para as emendas de bancada neste ano, R$ 5,76 bilhões já foram empenhados, isto é, reservados para pagamento. O auge dos empenhos ocorreu em abril, com R$ 3,3 bilhões – em junho, foram R$ 975 milhões. Do total empenhado, pouco mais de R$ 1 bilhão já foram efetivamente pagos. A maioria das bancadas decidiu pulverizar as emendas entre vários beneficiários: na bancada da Paraíba, há empenhos para 253 beneficiários diferentes; na Bahia, 139, e em Pernambuco, 113. Já na bancada de São Paulo, são apenas 38 beneficiários com dinheiro empenhado até agora.
No fim de 2023, um estudo da Consultoria de Orçamento da Câmara já notava a mudança no uso das emendas de bancada estadual, com a prevalência cada vez menor de obras de caráter estruturante. Naquele ano, apenas 9% do valor das emendas de bancada foram usadas para esse tipo de obra: o restante foi pulverizado em pequenos investimentos ou no custeio da máquina pública.
Segundo os consultores, a bancada que mais destinou verbas para obras estruturantes foi a do Mato Grosso do Sul (43%). Sete bancadas – Paraná, Minas Gerais, Roraima, São Paulo, Tocantins e Distrito Federal não comprometeram nada de suas emendas com grandes obras, na avaliação dos consultores.