GENEBRA - Telegramas secretos da Organização das Nações Unidas (ONU) do final dos anos 70 revelam como funcionários de alto escalão da entidade ridicularizaram internamente os militares brasileiros. Um dos alvos das críticas explícitas era o Capitão Ubirajara, que chegou a ser chamado nos documentos de "dançarino de flamenco" por seu estilo.
Desde domingo, o jornal O Estado de S. Paulo e o Portal Estadão vêm publicando uma série de reportagens baseadas nas revelações contidas em arquivos mantidos pela ONU em Genebra, justamente sobre a situação de direitos humanos e dos refugiados no Cone Sul.
O encontro entre um funcionário de alto escalão da ONU e Ubirajara ocorreu por conta de um opositor argentino, Miguel Guagnini, que estaria vivendo no Brasil e sendo ameaçado, apesar de o governo ter prometido que o dissidente seria protegido até poder deixar São Paulo.
A ONU foi então procurar o responsável brasileiro para entender qual era o motivo de sua prisão no final de julho de 1978. Alguns dias depois, Guy Prin, representante regional do Acnur no Rio de Janeiro, escreveria para Kevin Lyonette, representante regional para a América Latina Meridional, em Genebra, relatando a situação e seu encontro com o suspeito de comandar torturas em São Paulo. Ubirajara era delegado da polícia civil de São Paulo e seu verdadeiro nome seria Aparecido Laertes Calandra.
A reunião escancarou um encontro entre dois mundos radicalmente diferentes. Prin notou que, no escritório de Ubirajara, um cartaz com a Declaração Universal dos Direitos Humanos estava colada na parede. O que chamaria a atenção da ONU foi o fato de que o cartaz era novo e "parecia ter sido colocado na parede" por ocasião da visita.
O telegrama de 2 de outubro de 1978 revela que, em festas diplomáticas de embaixadas estrangeiras no Brasil, o tema da repressão era corrente entre os embaixadores. Longe das autoridades brasileiras, os estrangeiros teciam duras críticas contra as violações de direitos humanos pelo regime. Numa dessas festas, no dia 20 de julho num consulado europeu em São Paulo, a atitude de Ubirajara seria alvo de comentários que Prin acabaria reproduzindo em seu telegrama.
"Alguns diplomatas dizem que esse nome (Ubirajara) na verdade serve para cobrir o ato de vários torturadores, entre eles o Dr. Fleury, outros estimavam que ele não existia. Já outros alertam que ele é o autor da morte na prisão do jornalista Vladimir Herzog em 1975", aponta Prin em sua carta destinada à Genebra.
Mas o encontro entre a ONU e Ubirajara serviria para a entidade internacional constatar que o personagem de fato existia, mas "não se qualificaria" para nenhum prêmio de Direitos Humanos. A descrição que ele traça do coronel não apenas o ridiculariza perante o restante dos funcionários da ONU, mas traça um perfil debochado do próprio regime militar brasileiro.
Segundo o telegrama, o encontro ocorreu nas escadarias de uma casa na Rua Piauí, em São Paulo. O brasileiro teria aparecido para o encontro com um ar de "dançarino de flamenco", barba negra feita em seu mínimo detalhe e um terno cor mostarda. "Era um personagem que você hesitaria em dar carona e tê-lo ao seu lado", descreveu Prin.
Ubirajara acabaria confessando porque Guagnini teria sido preso: ele repartia no Brasil uma revista produzida em Paris e com conteúdo trotskista. Mas o brasileiro insistiria que não o torturou. "Pode perguntar a ele", declarou Ubirajara.
A ONU não deixou de ridicularizar uma vez mais o serviço secreto brasileiro, incluindo no telegrama o desenho que o regime teria produzido do esquema montado pelo argentino. O material chegaria de Paris para São Paulo e, de lá, repartido para México, Venezuela e Equador. "O desenho do Serviço Nacional de Informações merece ser reproduzido", escreveu a ONU, em tom de ironia.
O deboche não se limita a isso. Para o funcionário, grande parte do serviço dos policiais vestidos a paisana era sentar em suas mesas "e ler os jornais do dia".