Os 200 anos de história do voto no Brasil independente


Luta contra fraudes e pela ampliação do eleitorado deixou marcas na vida política do País

Por Marcelo Godoy
Atualização:

Quando Jair Bolsonaro voltar a digitar seu voto na urna eletrônica em 2 de outubro, o Brasil terá completado 200 anos de eleições nacionais. A primeira vez que isso ocorreu foi em 1822. Os homens com mais de 20 anos e casados de cada freguesia designaram os eleitores de paróquia, que nomearam os deputados que fariam a primeira Constituição do Reino do Brasil.

A ordem de convocação do pleito foi assinada por José Bonifácio de Andrada e Silva e pelo príncipe regente, d. Pedro, e publicada em 3 de junho de 1822, três meses antes do Grito do Ipiranga. Os deputados escolhidos naquele ano se reuniram no Rio em 3 de maio de 1823 para elaborar a Carta para o Império, uma assembleia que seria dissolvida em 12 de novembro de 1823.

Documento do decreto de 3 de junho de 1822. Foto: Reprodução
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Começava a história da paulatina inclusão no direito ao voto e das forças políticas que buscavam mantê-lo sob controle por meio de fraudes, exclusões e restrições. “Com a Constituição de 1824, exclui-se a maioria da população: mulheres, escravos e pobres”, disse o cientista político José Alvaro Moisés.

Para Moisés, o tema é indissociável da história da representação no País. “Institui-se a representação em 1824, mas ela é limitada. É a de uma elite e não a do conjunto da sociedade. Era um voto que excluía e, ao mesmo tempo, limitava a representação.” O País conviveu com a luta pela idoneidade das eleições, que levou ao voto secreto, à Justiça Eleitoral e à urna eletrônica.

“O voto ganhou um lugar central na cultura política. Os brasileiros gostam de votar e interpretam o voto como a única maneira de intervir no sistema político e nas políticas públicas que lhes interessam”, afirmou Moisés. Durante 200 anos sucederam-se leis, códigos e constituições do Império e da República, conforme mostra o Dicionário do Voto, de Walter Costa Porto.

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“Ao longo do século 19 o Brasil caminhava pari passu a tudo o que se discutia em termos filosóficos no mundo”, observou o cientista político Humberto Dantas. É o caso da inclusão no direito de votar. “O Brasil não era uma jabuticaba, não estava aquém de seu tempo, participava da discussão sobre o voto.”

A primeira lei eleitoral legislativa é de 1846. “Ela monta juntas de qualificação dos municípios, presididas por juiz de paz, e listas de cidadãos com direito ao voto”, disse o ex-ministro do Tribunal Superior Eleitoral Henrique Neves. O voto era indireto e o eleitor devia ter renda de 100 mil contos de réis. “Em 1865 surge o título eleitoral e o juiz de direito passa a presidir as juntas municipais.”

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O voto direto surgiu com a Lei Saraiva, de 1881. Ela permitiu aos não católicos participarem das eleições, mas proibiu o voto de analfabetos e aumentou a exigência de renda comprovada dos eleitores para 200 mil réis. O número de votantes do País caiu de 1,1 milhão (10% da população) para 142.856 (1%). “E dispensou que as eleições fossem precedidas de cerimônias religiosas, separando o Estado da Igreja”, disse Neves.

O critério censitário do voto era característico do século 19. “Quando a Inglaterra tira isso, naquilo que Thomas Marshall (sociólogo inglês) chama de grande revolução do século 19, você muda a história”, destacou Dantas. A democracia se transforma. “Deixa de ser a do votar e ser votado quem tem algo a perder do ponto de vista econômico e vira a democracia do um homem, um voto e um valor, desde que esse homem esteja minimamente preparado.”

Assim, a primeira Constituição da República, em 1891, manteve a exclusão de analfabetos e mulheres, mas acabou com o voto censitário. Em 1910 começou a discussão do voto feminino. Em 1927, 16 eleitoras conseguiram se registrar em Mossoró (RN), mas depois foram cassadas. “No pensamento autoritário havia o argumento de que pobres não tinham como votar por falta de compreensão da realidade, assim como analfabetos. No caso das mulheres, elas seriam influenciadas pelos pais e maridos”, disse a cientista política Vera Chaia. Pensava-se que o Estado devia educar a população em larga escala. “A noção de bem-estar da sociedade é do século 20. E é o voto que conquista isso”, afirmou Dantas.

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A grande inclusão começa com a Revolução de 1930, com o fim da República oligárquica. Em 1932, o Código Eleitoral instituiu a Justiça Eleitoral, o voto secreto e das mulheres e a representação proporcional. “Esse foi o grande passo da República para a ampliação do direito ao voto e para a luta pela idoneidade das eleições”, observou Vera Chaia.

Para ela, a centralização do processo, tirando a votação das mãos das mesas eleitorais locais e a colocando nos tribunais regionais eleitorais, foi fundamental para eleições nacionais fidedignas, golpeando as oligarquias. “Está implícita a ideia de que, para garantir a soberania popular, era necessário que o voto fosse limpo, sem fraude ou controle”, disse Moisés. A lei de 1932 autorizava a Justiça a usar máquinas de votar. “É uma referencia pré-histórica à urna eletrônica”, afirmou Neves.

Em 1934, manteve-se a proibição do voto a analfabetos e mendigos. “Em 1945 surge a Lei Agamenon, que restabelece a Justiça Eleitoral”, disse o ex-ministro do TSE. Exigiu-se que os partidos fossem nacionais. A partir de então, só filiados podiam concorrer. Trata-se do momento em que os cientistas políticos veem como o da consolidação da entrada das massas populares na política. “Isso ocorre no contexto da crise da oligarquia, promovida pelo populismo de Getúlio Vargas”, afirmou Moisés.

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A próxima mudança ficou para os anos 1950: a adoção da cédula eleitoral oficial, em 1955, para a eleição presidencial e, em 1962, a cédula única e oficial para todas as eleições. Até então, eram os partidos que forneciam as cédulas aos eleitores.

Com o regime militar, parlamentares foram cassados. O Ato Institucional 2 extinguiu, em 1965, os partidos, suprimiu direitos e instituiu o voto indireto para presidente. A medida foi depois estendida a governadores e prefeitos de capitais. Com o fim do regime, houve os dois últimos movimentos para a ampliação do direito ao voto: o fim da exclusão dos analfabetos e a admissão do votos dos jovens de 16 anos. Ambos na Constituição de 1988. “Demorou um século para o sistema político rever a restrição da Lei Saraiva e reconhecer que a cidadania incluía os analfabetos”, disse Moisés. Para ele, se a democracia significa a igualdade de direitos, a construção da cidadania brasileira só se completou em 1988.

Ao mesmo tempo, o País percorreu o caminho da luta pela idoneidade do voto. Nele, a adoção do cadastro único de eleitores, da cédula oficial e da urna eletrônica foi um processo de modernização do voto. “Primeiro se fez o cadastro eleitoral único, que permitiu a existência da urna eletrônica. Eliminou-se a duplicidade de inscrição e, com a biometria, a duplicidade da falsificação”, disse Neves. Para ele, antes das urnas, as cédulas criavam dificuldades. “Levavam-se quatro, cinco dias para apurar e depois tinha a recontagem, que sempre dava número diferente.”

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Pior era na República Velha, quando a fraude era a do bico de pena. Pouco importava quantos votos eram apurados, o que valia era o que se escrevia a bico de pena no boletim de urna. Havia ainda o “voto formiguinha”. O primeiro eleitor a votar depositava uma carta na urna e levava a cédula em branco ao coronel, que a preenchia e a entregava ao próximo eleitor, que votava e trazia nova cédula em branco ao coronel. “No Amazonas justificou-se a presença da mesma caligrafia em várias cédulas pelo fato de os eleitores terem estudado com a mesma professora”, afirmou Neves.

'Primeiro se fez o cadastro eleitoral único, que permitiu a existência da urna eletrônica', disse o ex-ministro do Tribunal Superior Eleitoral Henrique Neves Foto: Antonio Augusto/TSE

Outra fraude comum envolvia cédulas em branco. Antes de contar os votos, era preciso separar essas cédulas e carimbá-las para impedir que fossem preenchidas. “Havia um mercado de voto em branco na Assembleia Legislativa de São Paulo”, disse Dantas. Com a urna eletrônica, essa prática acabou, mas surgiram novas fraudes. O uso do celular foi proibido na hora de votar. Milícias no Rio passaram a obrigar moradores a filmar a urna pra comprovar em quem haviam votado. Também se proibiu que crianças votassem pelos pais. “Descobriu uma criança que votou 18 vezes.” Ela se dizia sobrinha dos eleitores. “As pessoas venderam o voto e a criança ia lá para garantir que o voto fosse dado a um candidato”, relatou Dantas.

É nesse contexto que surgem as dúvidas – sem provas – de Bolsonaro sobre a urna eletrônica. Mas, desta vez, nenhum dos analistas acredita que o problema seja a garantia da idoneidade. “É só um pretexto, cuja raiz está no não reconhecimento democrático do ato de votar. É uma recusa da soberania popular”, concluiu Moisés.

E por que isso ocorre? Para Dantas, falta educação para o voto. “O Norberto Bobbio dizia que a educação política é uma das promessas não cumpridas da democracia moderna.” O voto foi massificado, mas se esqueceu de explicar a todos o significado dessa revolução. “O Brasil é um país que entrega o voto, mas não entrega o manual de instrução. Se tivéssemos isso, fake news seriam piada.”

Quando Jair Bolsonaro voltar a digitar seu voto na urna eletrônica em 2 de outubro, o Brasil terá completado 200 anos de eleições nacionais. A primeira vez que isso ocorreu foi em 1822. Os homens com mais de 20 anos e casados de cada freguesia designaram os eleitores de paróquia, que nomearam os deputados que fariam a primeira Constituição do Reino do Brasil.

A ordem de convocação do pleito foi assinada por José Bonifácio de Andrada e Silva e pelo príncipe regente, d. Pedro, e publicada em 3 de junho de 1822, três meses antes do Grito do Ipiranga. Os deputados escolhidos naquele ano se reuniram no Rio em 3 de maio de 1823 para elaborar a Carta para o Império, uma assembleia que seria dissolvida em 12 de novembro de 1823.

Documento do decreto de 3 de junho de 1822. Foto: Reprodução

Começava a história da paulatina inclusão no direito ao voto e das forças políticas que buscavam mantê-lo sob controle por meio de fraudes, exclusões e restrições. “Com a Constituição de 1824, exclui-se a maioria da população: mulheres, escravos e pobres”, disse o cientista político José Alvaro Moisés.

Para Moisés, o tema é indissociável da história da representação no País. “Institui-se a representação em 1824, mas ela é limitada. É a de uma elite e não a do conjunto da sociedade. Era um voto que excluía e, ao mesmo tempo, limitava a representação.” O País conviveu com a luta pela idoneidade das eleições, que levou ao voto secreto, à Justiça Eleitoral e à urna eletrônica.

“O voto ganhou um lugar central na cultura política. Os brasileiros gostam de votar e interpretam o voto como a única maneira de intervir no sistema político e nas políticas públicas que lhes interessam”, afirmou Moisés. Durante 200 anos sucederam-se leis, códigos e constituições do Império e da República, conforme mostra o Dicionário do Voto, de Walter Costa Porto.

“Ao longo do século 19 o Brasil caminhava pari passu a tudo o que se discutia em termos filosóficos no mundo”, observou o cientista político Humberto Dantas. É o caso da inclusão no direito de votar. “O Brasil não era uma jabuticaba, não estava aquém de seu tempo, participava da discussão sobre o voto.”

A primeira lei eleitoral legislativa é de 1846. “Ela monta juntas de qualificação dos municípios, presididas por juiz de paz, e listas de cidadãos com direito ao voto”, disse o ex-ministro do Tribunal Superior Eleitoral Henrique Neves. O voto era indireto e o eleitor devia ter renda de 100 mil contos de réis. “Em 1865 surge o título eleitoral e o juiz de direito passa a presidir as juntas municipais.”

O voto direto surgiu com a Lei Saraiva, de 1881. Ela permitiu aos não católicos participarem das eleições, mas proibiu o voto de analfabetos e aumentou a exigência de renda comprovada dos eleitores para 200 mil réis. O número de votantes do País caiu de 1,1 milhão (10% da população) para 142.856 (1%). “E dispensou que as eleições fossem precedidas de cerimônias religiosas, separando o Estado da Igreja”, disse Neves.

O critério censitário do voto era característico do século 19. “Quando a Inglaterra tira isso, naquilo que Thomas Marshall (sociólogo inglês) chama de grande revolução do século 19, você muda a história”, destacou Dantas. A democracia se transforma. “Deixa de ser a do votar e ser votado quem tem algo a perder do ponto de vista econômico e vira a democracia do um homem, um voto e um valor, desde que esse homem esteja minimamente preparado.”

Assim, a primeira Constituição da República, em 1891, manteve a exclusão de analfabetos e mulheres, mas acabou com o voto censitário. Em 1910 começou a discussão do voto feminino. Em 1927, 16 eleitoras conseguiram se registrar em Mossoró (RN), mas depois foram cassadas. “No pensamento autoritário havia o argumento de que pobres não tinham como votar por falta de compreensão da realidade, assim como analfabetos. No caso das mulheres, elas seriam influenciadas pelos pais e maridos”, disse a cientista política Vera Chaia. Pensava-se que o Estado devia educar a população em larga escala. “A noção de bem-estar da sociedade é do século 20. E é o voto que conquista isso”, afirmou Dantas.

A grande inclusão começa com a Revolução de 1930, com o fim da República oligárquica. Em 1932, o Código Eleitoral instituiu a Justiça Eleitoral, o voto secreto e das mulheres e a representação proporcional. “Esse foi o grande passo da República para a ampliação do direito ao voto e para a luta pela idoneidade das eleições”, observou Vera Chaia.

Para ela, a centralização do processo, tirando a votação das mãos das mesas eleitorais locais e a colocando nos tribunais regionais eleitorais, foi fundamental para eleições nacionais fidedignas, golpeando as oligarquias. “Está implícita a ideia de que, para garantir a soberania popular, era necessário que o voto fosse limpo, sem fraude ou controle”, disse Moisés. A lei de 1932 autorizava a Justiça a usar máquinas de votar. “É uma referencia pré-histórica à urna eletrônica”, afirmou Neves.

Em 1934, manteve-se a proibição do voto a analfabetos e mendigos. “Em 1945 surge a Lei Agamenon, que restabelece a Justiça Eleitoral”, disse o ex-ministro do TSE. Exigiu-se que os partidos fossem nacionais. A partir de então, só filiados podiam concorrer. Trata-se do momento em que os cientistas políticos veem como o da consolidação da entrada das massas populares na política. “Isso ocorre no contexto da crise da oligarquia, promovida pelo populismo de Getúlio Vargas”, afirmou Moisés.

A próxima mudança ficou para os anos 1950: a adoção da cédula eleitoral oficial, em 1955, para a eleição presidencial e, em 1962, a cédula única e oficial para todas as eleições. Até então, eram os partidos que forneciam as cédulas aos eleitores.

Com o regime militar, parlamentares foram cassados. O Ato Institucional 2 extinguiu, em 1965, os partidos, suprimiu direitos e instituiu o voto indireto para presidente. A medida foi depois estendida a governadores e prefeitos de capitais. Com o fim do regime, houve os dois últimos movimentos para a ampliação do direito ao voto: o fim da exclusão dos analfabetos e a admissão do votos dos jovens de 16 anos. Ambos na Constituição de 1988. “Demorou um século para o sistema político rever a restrição da Lei Saraiva e reconhecer que a cidadania incluía os analfabetos”, disse Moisés. Para ele, se a democracia significa a igualdade de direitos, a construção da cidadania brasileira só se completou em 1988.

Ao mesmo tempo, o País percorreu o caminho da luta pela idoneidade do voto. Nele, a adoção do cadastro único de eleitores, da cédula oficial e da urna eletrônica foi um processo de modernização do voto. “Primeiro se fez o cadastro eleitoral único, que permitiu a existência da urna eletrônica. Eliminou-se a duplicidade de inscrição e, com a biometria, a duplicidade da falsificação”, disse Neves. Para ele, antes das urnas, as cédulas criavam dificuldades. “Levavam-se quatro, cinco dias para apurar e depois tinha a recontagem, que sempre dava número diferente.”

Pior era na República Velha, quando a fraude era a do bico de pena. Pouco importava quantos votos eram apurados, o que valia era o que se escrevia a bico de pena no boletim de urna. Havia ainda o “voto formiguinha”. O primeiro eleitor a votar depositava uma carta na urna e levava a cédula em branco ao coronel, que a preenchia e a entregava ao próximo eleitor, que votava e trazia nova cédula em branco ao coronel. “No Amazonas justificou-se a presença da mesma caligrafia em várias cédulas pelo fato de os eleitores terem estudado com a mesma professora”, afirmou Neves.

'Primeiro se fez o cadastro eleitoral único, que permitiu a existência da urna eletrônica', disse o ex-ministro do Tribunal Superior Eleitoral Henrique Neves Foto: Antonio Augusto/TSE

Outra fraude comum envolvia cédulas em branco. Antes de contar os votos, era preciso separar essas cédulas e carimbá-las para impedir que fossem preenchidas. “Havia um mercado de voto em branco na Assembleia Legislativa de São Paulo”, disse Dantas. Com a urna eletrônica, essa prática acabou, mas surgiram novas fraudes. O uso do celular foi proibido na hora de votar. Milícias no Rio passaram a obrigar moradores a filmar a urna pra comprovar em quem haviam votado. Também se proibiu que crianças votassem pelos pais. “Descobriu uma criança que votou 18 vezes.” Ela se dizia sobrinha dos eleitores. “As pessoas venderam o voto e a criança ia lá para garantir que o voto fosse dado a um candidato”, relatou Dantas.

É nesse contexto que surgem as dúvidas – sem provas – de Bolsonaro sobre a urna eletrônica. Mas, desta vez, nenhum dos analistas acredita que o problema seja a garantia da idoneidade. “É só um pretexto, cuja raiz está no não reconhecimento democrático do ato de votar. É uma recusa da soberania popular”, concluiu Moisés.

E por que isso ocorre? Para Dantas, falta educação para o voto. “O Norberto Bobbio dizia que a educação política é uma das promessas não cumpridas da democracia moderna.” O voto foi massificado, mas se esqueceu de explicar a todos o significado dessa revolução. “O Brasil é um país que entrega o voto, mas não entrega o manual de instrução. Se tivéssemos isso, fake news seriam piada.”

Quando Jair Bolsonaro voltar a digitar seu voto na urna eletrônica em 2 de outubro, o Brasil terá completado 200 anos de eleições nacionais. A primeira vez que isso ocorreu foi em 1822. Os homens com mais de 20 anos e casados de cada freguesia designaram os eleitores de paróquia, que nomearam os deputados que fariam a primeira Constituição do Reino do Brasil.

A ordem de convocação do pleito foi assinada por José Bonifácio de Andrada e Silva e pelo príncipe regente, d. Pedro, e publicada em 3 de junho de 1822, três meses antes do Grito do Ipiranga. Os deputados escolhidos naquele ano se reuniram no Rio em 3 de maio de 1823 para elaborar a Carta para o Império, uma assembleia que seria dissolvida em 12 de novembro de 1823.

Documento do decreto de 3 de junho de 1822. Foto: Reprodução

Começava a história da paulatina inclusão no direito ao voto e das forças políticas que buscavam mantê-lo sob controle por meio de fraudes, exclusões e restrições. “Com a Constituição de 1824, exclui-se a maioria da população: mulheres, escravos e pobres”, disse o cientista político José Alvaro Moisés.

Para Moisés, o tema é indissociável da história da representação no País. “Institui-se a representação em 1824, mas ela é limitada. É a de uma elite e não a do conjunto da sociedade. Era um voto que excluía e, ao mesmo tempo, limitava a representação.” O País conviveu com a luta pela idoneidade das eleições, que levou ao voto secreto, à Justiça Eleitoral e à urna eletrônica.

“O voto ganhou um lugar central na cultura política. Os brasileiros gostam de votar e interpretam o voto como a única maneira de intervir no sistema político e nas políticas públicas que lhes interessam”, afirmou Moisés. Durante 200 anos sucederam-se leis, códigos e constituições do Império e da República, conforme mostra o Dicionário do Voto, de Walter Costa Porto.

“Ao longo do século 19 o Brasil caminhava pari passu a tudo o que se discutia em termos filosóficos no mundo”, observou o cientista político Humberto Dantas. É o caso da inclusão no direito de votar. “O Brasil não era uma jabuticaba, não estava aquém de seu tempo, participava da discussão sobre o voto.”

A primeira lei eleitoral legislativa é de 1846. “Ela monta juntas de qualificação dos municípios, presididas por juiz de paz, e listas de cidadãos com direito ao voto”, disse o ex-ministro do Tribunal Superior Eleitoral Henrique Neves. O voto era indireto e o eleitor devia ter renda de 100 mil contos de réis. “Em 1865 surge o título eleitoral e o juiz de direito passa a presidir as juntas municipais.”

O voto direto surgiu com a Lei Saraiva, de 1881. Ela permitiu aos não católicos participarem das eleições, mas proibiu o voto de analfabetos e aumentou a exigência de renda comprovada dos eleitores para 200 mil réis. O número de votantes do País caiu de 1,1 milhão (10% da população) para 142.856 (1%). “E dispensou que as eleições fossem precedidas de cerimônias religiosas, separando o Estado da Igreja”, disse Neves.

O critério censitário do voto era característico do século 19. “Quando a Inglaterra tira isso, naquilo que Thomas Marshall (sociólogo inglês) chama de grande revolução do século 19, você muda a história”, destacou Dantas. A democracia se transforma. “Deixa de ser a do votar e ser votado quem tem algo a perder do ponto de vista econômico e vira a democracia do um homem, um voto e um valor, desde que esse homem esteja minimamente preparado.”

Assim, a primeira Constituição da República, em 1891, manteve a exclusão de analfabetos e mulheres, mas acabou com o voto censitário. Em 1910 começou a discussão do voto feminino. Em 1927, 16 eleitoras conseguiram se registrar em Mossoró (RN), mas depois foram cassadas. “No pensamento autoritário havia o argumento de que pobres não tinham como votar por falta de compreensão da realidade, assim como analfabetos. No caso das mulheres, elas seriam influenciadas pelos pais e maridos”, disse a cientista política Vera Chaia. Pensava-se que o Estado devia educar a população em larga escala. “A noção de bem-estar da sociedade é do século 20. E é o voto que conquista isso”, afirmou Dantas.

A grande inclusão começa com a Revolução de 1930, com o fim da República oligárquica. Em 1932, o Código Eleitoral instituiu a Justiça Eleitoral, o voto secreto e das mulheres e a representação proporcional. “Esse foi o grande passo da República para a ampliação do direito ao voto e para a luta pela idoneidade das eleições”, observou Vera Chaia.

Para ela, a centralização do processo, tirando a votação das mãos das mesas eleitorais locais e a colocando nos tribunais regionais eleitorais, foi fundamental para eleições nacionais fidedignas, golpeando as oligarquias. “Está implícita a ideia de que, para garantir a soberania popular, era necessário que o voto fosse limpo, sem fraude ou controle”, disse Moisés. A lei de 1932 autorizava a Justiça a usar máquinas de votar. “É uma referencia pré-histórica à urna eletrônica”, afirmou Neves.

Em 1934, manteve-se a proibição do voto a analfabetos e mendigos. “Em 1945 surge a Lei Agamenon, que restabelece a Justiça Eleitoral”, disse o ex-ministro do TSE. Exigiu-se que os partidos fossem nacionais. A partir de então, só filiados podiam concorrer. Trata-se do momento em que os cientistas políticos veem como o da consolidação da entrada das massas populares na política. “Isso ocorre no contexto da crise da oligarquia, promovida pelo populismo de Getúlio Vargas”, afirmou Moisés.

A próxima mudança ficou para os anos 1950: a adoção da cédula eleitoral oficial, em 1955, para a eleição presidencial e, em 1962, a cédula única e oficial para todas as eleições. Até então, eram os partidos que forneciam as cédulas aos eleitores.

Com o regime militar, parlamentares foram cassados. O Ato Institucional 2 extinguiu, em 1965, os partidos, suprimiu direitos e instituiu o voto indireto para presidente. A medida foi depois estendida a governadores e prefeitos de capitais. Com o fim do regime, houve os dois últimos movimentos para a ampliação do direito ao voto: o fim da exclusão dos analfabetos e a admissão do votos dos jovens de 16 anos. Ambos na Constituição de 1988. “Demorou um século para o sistema político rever a restrição da Lei Saraiva e reconhecer que a cidadania incluía os analfabetos”, disse Moisés. Para ele, se a democracia significa a igualdade de direitos, a construção da cidadania brasileira só se completou em 1988.

Ao mesmo tempo, o País percorreu o caminho da luta pela idoneidade do voto. Nele, a adoção do cadastro único de eleitores, da cédula oficial e da urna eletrônica foi um processo de modernização do voto. “Primeiro se fez o cadastro eleitoral único, que permitiu a existência da urna eletrônica. Eliminou-se a duplicidade de inscrição e, com a biometria, a duplicidade da falsificação”, disse Neves. Para ele, antes das urnas, as cédulas criavam dificuldades. “Levavam-se quatro, cinco dias para apurar e depois tinha a recontagem, que sempre dava número diferente.”

Pior era na República Velha, quando a fraude era a do bico de pena. Pouco importava quantos votos eram apurados, o que valia era o que se escrevia a bico de pena no boletim de urna. Havia ainda o “voto formiguinha”. O primeiro eleitor a votar depositava uma carta na urna e levava a cédula em branco ao coronel, que a preenchia e a entregava ao próximo eleitor, que votava e trazia nova cédula em branco ao coronel. “No Amazonas justificou-se a presença da mesma caligrafia em várias cédulas pelo fato de os eleitores terem estudado com a mesma professora”, afirmou Neves.

'Primeiro se fez o cadastro eleitoral único, que permitiu a existência da urna eletrônica', disse o ex-ministro do Tribunal Superior Eleitoral Henrique Neves Foto: Antonio Augusto/TSE

Outra fraude comum envolvia cédulas em branco. Antes de contar os votos, era preciso separar essas cédulas e carimbá-las para impedir que fossem preenchidas. “Havia um mercado de voto em branco na Assembleia Legislativa de São Paulo”, disse Dantas. Com a urna eletrônica, essa prática acabou, mas surgiram novas fraudes. O uso do celular foi proibido na hora de votar. Milícias no Rio passaram a obrigar moradores a filmar a urna pra comprovar em quem haviam votado. Também se proibiu que crianças votassem pelos pais. “Descobriu uma criança que votou 18 vezes.” Ela se dizia sobrinha dos eleitores. “As pessoas venderam o voto e a criança ia lá para garantir que o voto fosse dado a um candidato”, relatou Dantas.

É nesse contexto que surgem as dúvidas – sem provas – de Bolsonaro sobre a urna eletrônica. Mas, desta vez, nenhum dos analistas acredita que o problema seja a garantia da idoneidade. “É só um pretexto, cuja raiz está no não reconhecimento democrático do ato de votar. É uma recusa da soberania popular”, concluiu Moisés.

E por que isso ocorre? Para Dantas, falta educação para o voto. “O Norberto Bobbio dizia que a educação política é uma das promessas não cumpridas da democracia moderna.” O voto foi massificado, mas se esqueceu de explicar a todos o significado dessa revolução. “O Brasil é um país que entrega o voto, mas não entrega o manual de instrução. Se tivéssemos isso, fake news seriam piada.”

Quando Jair Bolsonaro voltar a digitar seu voto na urna eletrônica em 2 de outubro, o Brasil terá completado 200 anos de eleições nacionais. A primeira vez que isso ocorreu foi em 1822. Os homens com mais de 20 anos e casados de cada freguesia designaram os eleitores de paróquia, que nomearam os deputados que fariam a primeira Constituição do Reino do Brasil.

A ordem de convocação do pleito foi assinada por José Bonifácio de Andrada e Silva e pelo príncipe regente, d. Pedro, e publicada em 3 de junho de 1822, três meses antes do Grito do Ipiranga. Os deputados escolhidos naquele ano se reuniram no Rio em 3 de maio de 1823 para elaborar a Carta para o Império, uma assembleia que seria dissolvida em 12 de novembro de 1823.

Documento do decreto de 3 de junho de 1822. Foto: Reprodução

Começava a história da paulatina inclusão no direito ao voto e das forças políticas que buscavam mantê-lo sob controle por meio de fraudes, exclusões e restrições. “Com a Constituição de 1824, exclui-se a maioria da população: mulheres, escravos e pobres”, disse o cientista político José Alvaro Moisés.

Para Moisés, o tema é indissociável da história da representação no País. “Institui-se a representação em 1824, mas ela é limitada. É a de uma elite e não a do conjunto da sociedade. Era um voto que excluía e, ao mesmo tempo, limitava a representação.” O País conviveu com a luta pela idoneidade das eleições, que levou ao voto secreto, à Justiça Eleitoral e à urna eletrônica.

“O voto ganhou um lugar central na cultura política. Os brasileiros gostam de votar e interpretam o voto como a única maneira de intervir no sistema político e nas políticas públicas que lhes interessam”, afirmou Moisés. Durante 200 anos sucederam-se leis, códigos e constituições do Império e da República, conforme mostra o Dicionário do Voto, de Walter Costa Porto.

“Ao longo do século 19 o Brasil caminhava pari passu a tudo o que se discutia em termos filosóficos no mundo”, observou o cientista político Humberto Dantas. É o caso da inclusão no direito de votar. “O Brasil não era uma jabuticaba, não estava aquém de seu tempo, participava da discussão sobre o voto.”

A primeira lei eleitoral legislativa é de 1846. “Ela monta juntas de qualificação dos municípios, presididas por juiz de paz, e listas de cidadãos com direito ao voto”, disse o ex-ministro do Tribunal Superior Eleitoral Henrique Neves. O voto era indireto e o eleitor devia ter renda de 100 mil contos de réis. “Em 1865 surge o título eleitoral e o juiz de direito passa a presidir as juntas municipais.”

O voto direto surgiu com a Lei Saraiva, de 1881. Ela permitiu aos não católicos participarem das eleições, mas proibiu o voto de analfabetos e aumentou a exigência de renda comprovada dos eleitores para 200 mil réis. O número de votantes do País caiu de 1,1 milhão (10% da população) para 142.856 (1%). “E dispensou que as eleições fossem precedidas de cerimônias religiosas, separando o Estado da Igreja”, disse Neves.

O critério censitário do voto era característico do século 19. “Quando a Inglaterra tira isso, naquilo que Thomas Marshall (sociólogo inglês) chama de grande revolução do século 19, você muda a história”, destacou Dantas. A democracia se transforma. “Deixa de ser a do votar e ser votado quem tem algo a perder do ponto de vista econômico e vira a democracia do um homem, um voto e um valor, desde que esse homem esteja minimamente preparado.”

Assim, a primeira Constituição da República, em 1891, manteve a exclusão de analfabetos e mulheres, mas acabou com o voto censitário. Em 1910 começou a discussão do voto feminino. Em 1927, 16 eleitoras conseguiram se registrar em Mossoró (RN), mas depois foram cassadas. “No pensamento autoritário havia o argumento de que pobres não tinham como votar por falta de compreensão da realidade, assim como analfabetos. No caso das mulheres, elas seriam influenciadas pelos pais e maridos”, disse a cientista política Vera Chaia. Pensava-se que o Estado devia educar a população em larga escala. “A noção de bem-estar da sociedade é do século 20. E é o voto que conquista isso”, afirmou Dantas.

A grande inclusão começa com a Revolução de 1930, com o fim da República oligárquica. Em 1932, o Código Eleitoral instituiu a Justiça Eleitoral, o voto secreto e das mulheres e a representação proporcional. “Esse foi o grande passo da República para a ampliação do direito ao voto e para a luta pela idoneidade das eleições”, observou Vera Chaia.

Para ela, a centralização do processo, tirando a votação das mãos das mesas eleitorais locais e a colocando nos tribunais regionais eleitorais, foi fundamental para eleições nacionais fidedignas, golpeando as oligarquias. “Está implícita a ideia de que, para garantir a soberania popular, era necessário que o voto fosse limpo, sem fraude ou controle”, disse Moisés. A lei de 1932 autorizava a Justiça a usar máquinas de votar. “É uma referencia pré-histórica à urna eletrônica”, afirmou Neves.

Em 1934, manteve-se a proibição do voto a analfabetos e mendigos. “Em 1945 surge a Lei Agamenon, que restabelece a Justiça Eleitoral”, disse o ex-ministro do TSE. Exigiu-se que os partidos fossem nacionais. A partir de então, só filiados podiam concorrer. Trata-se do momento em que os cientistas políticos veem como o da consolidação da entrada das massas populares na política. “Isso ocorre no contexto da crise da oligarquia, promovida pelo populismo de Getúlio Vargas”, afirmou Moisés.

A próxima mudança ficou para os anos 1950: a adoção da cédula eleitoral oficial, em 1955, para a eleição presidencial e, em 1962, a cédula única e oficial para todas as eleições. Até então, eram os partidos que forneciam as cédulas aos eleitores.

Com o regime militar, parlamentares foram cassados. O Ato Institucional 2 extinguiu, em 1965, os partidos, suprimiu direitos e instituiu o voto indireto para presidente. A medida foi depois estendida a governadores e prefeitos de capitais. Com o fim do regime, houve os dois últimos movimentos para a ampliação do direito ao voto: o fim da exclusão dos analfabetos e a admissão do votos dos jovens de 16 anos. Ambos na Constituição de 1988. “Demorou um século para o sistema político rever a restrição da Lei Saraiva e reconhecer que a cidadania incluía os analfabetos”, disse Moisés. Para ele, se a democracia significa a igualdade de direitos, a construção da cidadania brasileira só se completou em 1988.

Ao mesmo tempo, o País percorreu o caminho da luta pela idoneidade do voto. Nele, a adoção do cadastro único de eleitores, da cédula oficial e da urna eletrônica foi um processo de modernização do voto. “Primeiro se fez o cadastro eleitoral único, que permitiu a existência da urna eletrônica. Eliminou-se a duplicidade de inscrição e, com a biometria, a duplicidade da falsificação”, disse Neves. Para ele, antes das urnas, as cédulas criavam dificuldades. “Levavam-se quatro, cinco dias para apurar e depois tinha a recontagem, que sempre dava número diferente.”

Pior era na República Velha, quando a fraude era a do bico de pena. Pouco importava quantos votos eram apurados, o que valia era o que se escrevia a bico de pena no boletim de urna. Havia ainda o “voto formiguinha”. O primeiro eleitor a votar depositava uma carta na urna e levava a cédula em branco ao coronel, que a preenchia e a entregava ao próximo eleitor, que votava e trazia nova cédula em branco ao coronel. “No Amazonas justificou-se a presença da mesma caligrafia em várias cédulas pelo fato de os eleitores terem estudado com a mesma professora”, afirmou Neves.

'Primeiro se fez o cadastro eleitoral único, que permitiu a existência da urna eletrônica', disse o ex-ministro do Tribunal Superior Eleitoral Henrique Neves Foto: Antonio Augusto/TSE

Outra fraude comum envolvia cédulas em branco. Antes de contar os votos, era preciso separar essas cédulas e carimbá-las para impedir que fossem preenchidas. “Havia um mercado de voto em branco na Assembleia Legislativa de São Paulo”, disse Dantas. Com a urna eletrônica, essa prática acabou, mas surgiram novas fraudes. O uso do celular foi proibido na hora de votar. Milícias no Rio passaram a obrigar moradores a filmar a urna pra comprovar em quem haviam votado. Também se proibiu que crianças votassem pelos pais. “Descobriu uma criança que votou 18 vezes.” Ela se dizia sobrinha dos eleitores. “As pessoas venderam o voto e a criança ia lá para garantir que o voto fosse dado a um candidato”, relatou Dantas.

É nesse contexto que surgem as dúvidas – sem provas – de Bolsonaro sobre a urna eletrônica. Mas, desta vez, nenhum dos analistas acredita que o problema seja a garantia da idoneidade. “É só um pretexto, cuja raiz está no não reconhecimento democrático do ato de votar. É uma recusa da soberania popular”, concluiu Moisés.

E por que isso ocorre? Para Dantas, falta educação para o voto. “O Norberto Bobbio dizia que a educação política é uma das promessas não cumpridas da democracia moderna.” O voto foi massificado, mas se esqueceu de explicar a todos o significado dessa revolução. “O Brasil é um país que entrega o voto, mas não entrega o manual de instrução. Se tivéssemos isso, fake news seriam piada.”

Quando Jair Bolsonaro voltar a digitar seu voto na urna eletrônica em 2 de outubro, o Brasil terá completado 200 anos de eleições nacionais. A primeira vez que isso ocorreu foi em 1822. Os homens com mais de 20 anos e casados de cada freguesia designaram os eleitores de paróquia, que nomearam os deputados que fariam a primeira Constituição do Reino do Brasil.

A ordem de convocação do pleito foi assinada por José Bonifácio de Andrada e Silva e pelo príncipe regente, d. Pedro, e publicada em 3 de junho de 1822, três meses antes do Grito do Ipiranga. Os deputados escolhidos naquele ano se reuniram no Rio em 3 de maio de 1823 para elaborar a Carta para o Império, uma assembleia que seria dissolvida em 12 de novembro de 1823.

Documento do decreto de 3 de junho de 1822. Foto: Reprodução

Começava a história da paulatina inclusão no direito ao voto e das forças políticas que buscavam mantê-lo sob controle por meio de fraudes, exclusões e restrições. “Com a Constituição de 1824, exclui-se a maioria da população: mulheres, escravos e pobres”, disse o cientista político José Alvaro Moisés.

Para Moisés, o tema é indissociável da história da representação no País. “Institui-se a representação em 1824, mas ela é limitada. É a de uma elite e não a do conjunto da sociedade. Era um voto que excluía e, ao mesmo tempo, limitava a representação.” O País conviveu com a luta pela idoneidade das eleições, que levou ao voto secreto, à Justiça Eleitoral e à urna eletrônica.

“O voto ganhou um lugar central na cultura política. Os brasileiros gostam de votar e interpretam o voto como a única maneira de intervir no sistema político e nas políticas públicas que lhes interessam”, afirmou Moisés. Durante 200 anos sucederam-se leis, códigos e constituições do Império e da República, conforme mostra o Dicionário do Voto, de Walter Costa Porto.

“Ao longo do século 19 o Brasil caminhava pari passu a tudo o que se discutia em termos filosóficos no mundo”, observou o cientista político Humberto Dantas. É o caso da inclusão no direito de votar. “O Brasil não era uma jabuticaba, não estava aquém de seu tempo, participava da discussão sobre o voto.”

A primeira lei eleitoral legislativa é de 1846. “Ela monta juntas de qualificação dos municípios, presididas por juiz de paz, e listas de cidadãos com direito ao voto”, disse o ex-ministro do Tribunal Superior Eleitoral Henrique Neves. O voto era indireto e o eleitor devia ter renda de 100 mil contos de réis. “Em 1865 surge o título eleitoral e o juiz de direito passa a presidir as juntas municipais.”

O voto direto surgiu com a Lei Saraiva, de 1881. Ela permitiu aos não católicos participarem das eleições, mas proibiu o voto de analfabetos e aumentou a exigência de renda comprovada dos eleitores para 200 mil réis. O número de votantes do País caiu de 1,1 milhão (10% da população) para 142.856 (1%). “E dispensou que as eleições fossem precedidas de cerimônias religiosas, separando o Estado da Igreja”, disse Neves.

O critério censitário do voto era característico do século 19. “Quando a Inglaterra tira isso, naquilo que Thomas Marshall (sociólogo inglês) chama de grande revolução do século 19, você muda a história”, destacou Dantas. A democracia se transforma. “Deixa de ser a do votar e ser votado quem tem algo a perder do ponto de vista econômico e vira a democracia do um homem, um voto e um valor, desde que esse homem esteja minimamente preparado.”

Assim, a primeira Constituição da República, em 1891, manteve a exclusão de analfabetos e mulheres, mas acabou com o voto censitário. Em 1910 começou a discussão do voto feminino. Em 1927, 16 eleitoras conseguiram se registrar em Mossoró (RN), mas depois foram cassadas. “No pensamento autoritário havia o argumento de que pobres não tinham como votar por falta de compreensão da realidade, assim como analfabetos. No caso das mulheres, elas seriam influenciadas pelos pais e maridos”, disse a cientista política Vera Chaia. Pensava-se que o Estado devia educar a população em larga escala. “A noção de bem-estar da sociedade é do século 20. E é o voto que conquista isso”, afirmou Dantas.

A grande inclusão começa com a Revolução de 1930, com o fim da República oligárquica. Em 1932, o Código Eleitoral instituiu a Justiça Eleitoral, o voto secreto e das mulheres e a representação proporcional. “Esse foi o grande passo da República para a ampliação do direito ao voto e para a luta pela idoneidade das eleições”, observou Vera Chaia.

Para ela, a centralização do processo, tirando a votação das mãos das mesas eleitorais locais e a colocando nos tribunais regionais eleitorais, foi fundamental para eleições nacionais fidedignas, golpeando as oligarquias. “Está implícita a ideia de que, para garantir a soberania popular, era necessário que o voto fosse limpo, sem fraude ou controle”, disse Moisés. A lei de 1932 autorizava a Justiça a usar máquinas de votar. “É uma referencia pré-histórica à urna eletrônica”, afirmou Neves.

Em 1934, manteve-se a proibição do voto a analfabetos e mendigos. “Em 1945 surge a Lei Agamenon, que restabelece a Justiça Eleitoral”, disse o ex-ministro do TSE. Exigiu-se que os partidos fossem nacionais. A partir de então, só filiados podiam concorrer. Trata-se do momento em que os cientistas políticos veem como o da consolidação da entrada das massas populares na política. “Isso ocorre no contexto da crise da oligarquia, promovida pelo populismo de Getúlio Vargas”, afirmou Moisés.

A próxima mudança ficou para os anos 1950: a adoção da cédula eleitoral oficial, em 1955, para a eleição presidencial e, em 1962, a cédula única e oficial para todas as eleições. Até então, eram os partidos que forneciam as cédulas aos eleitores.

Com o regime militar, parlamentares foram cassados. O Ato Institucional 2 extinguiu, em 1965, os partidos, suprimiu direitos e instituiu o voto indireto para presidente. A medida foi depois estendida a governadores e prefeitos de capitais. Com o fim do regime, houve os dois últimos movimentos para a ampliação do direito ao voto: o fim da exclusão dos analfabetos e a admissão do votos dos jovens de 16 anos. Ambos na Constituição de 1988. “Demorou um século para o sistema político rever a restrição da Lei Saraiva e reconhecer que a cidadania incluía os analfabetos”, disse Moisés. Para ele, se a democracia significa a igualdade de direitos, a construção da cidadania brasileira só se completou em 1988.

Ao mesmo tempo, o País percorreu o caminho da luta pela idoneidade do voto. Nele, a adoção do cadastro único de eleitores, da cédula oficial e da urna eletrônica foi um processo de modernização do voto. “Primeiro se fez o cadastro eleitoral único, que permitiu a existência da urna eletrônica. Eliminou-se a duplicidade de inscrição e, com a biometria, a duplicidade da falsificação”, disse Neves. Para ele, antes das urnas, as cédulas criavam dificuldades. “Levavam-se quatro, cinco dias para apurar e depois tinha a recontagem, que sempre dava número diferente.”

Pior era na República Velha, quando a fraude era a do bico de pena. Pouco importava quantos votos eram apurados, o que valia era o que se escrevia a bico de pena no boletim de urna. Havia ainda o “voto formiguinha”. O primeiro eleitor a votar depositava uma carta na urna e levava a cédula em branco ao coronel, que a preenchia e a entregava ao próximo eleitor, que votava e trazia nova cédula em branco ao coronel. “No Amazonas justificou-se a presença da mesma caligrafia em várias cédulas pelo fato de os eleitores terem estudado com a mesma professora”, afirmou Neves.

'Primeiro se fez o cadastro eleitoral único, que permitiu a existência da urna eletrônica', disse o ex-ministro do Tribunal Superior Eleitoral Henrique Neves Foto: Antonio Augusto/TSE

Outra fraude comum envolvia cédulas em branco. Antes de contar os votos, era preciso separar essas cédulas e carimbá-las para impedir que fossem preenchidas. “Havia um mercado de voto em branco na Assembleia Legislativa de São Paulo”, disse Dantas. Com a urna eletrônica, essa prática acabou, mas surgiram novas fraudes. O uso do celular foi proibido na hora de votar. Milícias no Rio passaram a obrigar moradores a filmar a urna pra comprovar em quem haviam votado. Também se proibiu que crianças votassem pelos pais. “Descobriu uma criança que votou 18 vezes.” Ela se dizia sobrinha dos eleitores. “As pessoas venderam o voto e a criança ia lá para garantir que o voto fosse dado a um candidato”, relatou Dantas.

É nesse contexto que surgem as dúvidas – sem provas – de Bolsonaro sobre a urna eletrônica. Mas, desta vez, nenhum dos analistas acredita que o problema seja a garantia da idoneidade. “É só um pretexto, cuja raiz está no não reconhecimento democrático do ato de votar. É uma recusa da soberania popular”, concluiu Moisés.

E por que isso ocorre? Para Dantas, falta educação para o voto. “O Norberto Bobbio dizia que a educação política é uma das promessas não cumpridas da democracia moderna.” O voto foi massificado, mas se esqueceu de explicar a todos o significado dessa revolução. “O Brasil é um país que entrega o voto, mas não entrega o manual de instrução. Se tivéssemos isso, fake news seriam piada.”

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