País negligencia debate sobre controle civil dos militares, que só é lembrado em momentos de tensão


Especialistas apontam que relação do país com suas Forças Armadas deveria ser tema de enfrentamento não apenas quando há um evento extraordinário como golpes ou ameaças

Por Monica Gugliano

A tentativa de golpe que teve como um dos passos decisivos os ataques do dia 8 de Janeiro, protagonizada, ao que indicam as investigações da Polícia Federal (PF) e do Supremo Tribunal Federal (STF), pelo ex-presidente Jair Bolsonaro e alguns generais, tem feito com que acadêmicos e historiadores retomem com mais intensidade a questão do controle civil dos militares, sobretudo quando completam-se 60 anos do golpe de 1964. Afinal, o que é esse controle? Como ele se dá? Por que é importante nas democracias? E por que o Brasil parece ser refém dos militares em cada crise?

“A questão histórica, especialmente no que concerne ao papel dos militares na política, é chave. A lógica burocrática da busca de autonomia pelas Forças Armadas também”, afirma o professor Antônio Jorge Ramalho, vice-presidente da Associação de Estudos da Defesa.

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Como área de estudos, explicam as professoras Adriana Marques e Marina Vitelli, a ideia do controle civil surgiu nos Estados Unidos na década de 50. Era um reflexo das preocupações da sociedade com o controle do aparato militar que havia nos Estados Unidos na década pós-guerra. O primeiro trabalho acadêmico que sistematiza essas preocupações políticas é “O soldado e o Estado”, de Samuel Huntington, cientista político americano, obra obrigatória nas escolas militares.

O presidente Lula com o ministro da Defesa, José Múcio e os comandantes do Exército, da Marinha e da Aeronáutica Foto: Wilton Junior/Estadão

Huntington pondera que o conceito de controle civil, apesar de muito discutido, não havia sido definido claramente. O cientista político propõe o controle das Forças Armadas e seu afastamento da política a partir de um modelo normativo, pensado para uma sociedade democrática, com valores liberais e Forças Armadas profissionais. Ele via as relações entre a sociedade e as instituições militares como um sistema interdependente onde o ponto de equilíbrio que elevaria ao máximo a segurança militar seria o controle civil objetivo.

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“Acontece que, aqui, o controle civil é entendido como aviltamento e falta vontade política para implementar algo assim”, diz Alexandre Fuccille, professor da UNESP. De acordo com Huntington, a maneira mais simples de minimizar o poder militar parece ser a de maximizar o poder dos grupos civis sobre eles. “É uma longa escadaria a ser vencida”, pondera Fuccille.

Ele observa que no Brasil, a questão passa pela criação do Ministério da Defesa em 1999 pelo então presidente Fernando Henrique Cardoso. No entanto, a partir do governo de Michel Temer, a pasta que deveria ser comandada por um civil foi entregue aos militares. Segundo ele, ainda falta conteúdo ao órgão governamental, criado em 1999 durante o governo FHC, e engana-se quem pensa que a “ameaça” da autonomia militar é coisa do passado. “O controle civil pleno é condição necessária, ainda que não suficiente, para a consolidação e o aprofundamento do regime democrático brasileiro”, avalia o pesquisador.

A “longa escadaria” passa obrigatoriamente pelo Congresso, onde um influente assessor do Ministério da Defesa apontou que não há o menor interesse nesses temas. Segundo ele, a não ser quando há um evento, como a tentativa de golpe do 8 de Janeiro, os parlamentares não pensam nas Forças Armadas.

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O professor Ramalho ainda acrescenta que o fato de o Brasil não ter se envolvido em guerras nas últimas décadas, em paralelo às dramáticas urgências e necessidades internas, explica também por que há tanto desinteresse e desestímulo em pensar no controle civil dos militares. “As lideranças políticas não têm incentivos para enfrentar esse desafio. Defesa não dá voto e, no contraste com outras necessidades da sociedade, não parece ser uma questão urgente”, observa Ramalho, acrescentando: “Em alguma medida, as elites políticas brasileiras apostaram que as questões espinhosas relacionadas com a ditadura se resolveriam com a passagem do tempo. Isso obviamente não aconteceu e não acontecerá”.

No Brasil, em particular, esse conceito é visto como uma bandeira da esquerda, embora o tema não tenha nada a ver com questões ideológicas. Mas, na democracia, como explicam as professoras Marques e Vitelli, existem dois dilemas. “Por um lado temos o desafio das sociedades democráticas que precisam ter Forças Armadas competentes para a defesa do país, mas que, ao mesmo tempo, respeitem o funcionamento normal do regime democrático, o que, por enquanto, podemos chamar de neutralização da influência política das Forças Armadas”, observa Marques.

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As especialistas afirmam, porém, que, por outro lado, as lideranças civis precisam evitar que a perspectiva particular dos militares sobre a realidade e os seus interesses corporativos acabem determinando quando e como as Forças Armadas serão empregadas. “Esse fenômeno podemos chamar de interação entre civis e militares nas decisões sobre a política de defesa nacional”, diz Marques. Porém, nos regimes democráticos, é ainda preciso impedir a interferência das Forças Armadas na política em geral, um desafio ainda mais complexo naquelas sociedades que têm um histórico de envolvimento dos militares na política, como a grande maioria dos países latino-americanos e, também, o Brasil.

Debate sobre o papel dos militares e a necessidade de controle civil é apontado como fundamental por especialistas Foto: Wilton Junior/Estadão

Vitelli e Marques assinalam que, basicamente, o controle se dá amparado em dois pontos. Um é a supremacia civil, que, na democracia, estabelece que as decisões coletivas são tomadas a partir de processos estabelecidos para a participação dos diversos poderes do Estado, representados por autoridades eleitas. Enquanto a subordinação militar – a outra face do controle civil – prevê que a relação entre ambos os atores seja hierárquica; nas democracias, os civis mandam e as Forças Armadas obedecem. Uma regra incompatível com experiências, como a que tivemos no Brasil, quando os militares tutelaram o governo e as Forças Armadas vetavam determinadas políticas e sustentavam determinadas autoridades.

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Este é o verdadeiro sentido por trás da expressão “as Forças Armadas são instituições de Estado, não de governo”, que não deve ser entendido como uma justificativa para os militares serem considerados um poder acima dos outros poderes, tutores da sociedade. “As Forças Armadas não são o braço armado do partido no poder, mas, sim, uma parte do aparato de força do Estado, ao serviço das autoridades governamentais, respeitando o Estado de direito e a divisão de poderes”, diz Vetelli.

Mudanças em debate no Congresso

Em um dos raros debates sobre o tema no Brasil, discute-se, atualmente, a chamada PEC dos Militares. Entre outras coisas, a proposta transfere para a reserva o militar que decidir disputar as eleições, independentemente do resultado do pleito. O integrante das Forças Armadas que decidir entrar para a política também perde a remuneração. Ainda não há acordo para a votação, no Senado, da proposta, encampada pelo ministro da Defesa José Múcio, mas que não é considerada uma prioridade para articulação do governo.

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Contudo, a proibição pode vir de outro mecanismo. O texto final do novo Código Eleitoral, também em debate na Casa, determina uma regra ainda mais dura: a que militares precisam se afastar pelo menos quatro anos antes para tentar uma eleição. A mesma regra valeria para policiais federais, rodoviários federais, policiais civis e militares, guardas municipais, juízes e membros do Ministério Público.

“São carreiras que não devem coexistir com a política. Se a pessoa pertence a uma dessas carreiras e quer ser política, se afasta, e estamos colocando uma quarentena de 4 anos para se candidatar”, explicou o relator do Código Eleitoral, senador Marcelo Castro (MDB-PI).

Julgamento sobre as Forças no STF

Em outra discussão, o Supremo Tribunal Federal iniciou nesta sexta-feira, 29, o julgamento que trata sobre os limites constitucionais da atuação das Forças Armadas e a hierarquia da instituição militar frente aos Três Poderes. Os ministros têm até o dia 8 de abril para registrar os votos no sistema.

A ação, decorrente de uma provocação do Partido Democrático Trabalhista (PDT), discute interpretações do artigo 142 da Carta Magna, que trata das Forças Armadas, usado frequentemente por bolsonaristas para defender intervenção militar “dentro da Constituição”.

Em seu voto, o relator do caso, ministro Luiz Fux, afirmou que a Constituição não encoraja ruptura democrática. O presidente do STF, ministro Luís Roberto Barroso, acompanhou o relator.

A tentativa de golpe que teve como um dos passos decisivos os ataques do dia 8 de Janeiro, protagonizada, ao que indicam as investigações da Polícia Federal (PF) e do Supremo Tribunal Federal (STF), pelo ex-presidente Jair Bolsonaro e alguns generais, tem feito com que acadêmicos e historiadores retomem com mais intensidade a questão do controle civil dos militares, sobretudo quando completam-se 60 anos do golpe de 1964. Afinal, o que é esse controle? Como ele se dá? Por que é importante nas democracias? E por que o Brasil parece ser refém dos militares em cada crise?

“A questão histórica, especialmente no que concerne ao papel dos militares na política, é chave. A lógica burocrática da busca de autonomia pelas Forças Armadas também”, afirma o professor Antônio Jorge Ramalho, vice-presidente da Associação de Estudos da Defesa.

Como área de estudos, explicam as professoras Adriana Marques e Marina Vitelli, a ideia do controle civil surgiu nos Estados Unidos na década de 50. Era um reflexo das preocupações da sociedade com o controle do aparato militar que havia nos Estados Unidos na década pós-guerra. O primeiro trabalho acadêmico que sistematiza essas preocupações políticas é “O soldado e o Estado”, de Samuel Huntington, cientista político americano, obra obrigatória nas escolas militares.

O presidente Lula com o ministro da Defesa, José Múcio e os comandantes do Exército, da Marinha e da Aeronáutica Foto: Wilton Junior/Estadão

Huntington pondera que o conceito de controle civil, apesar de muito discutido, não havia sido definido claramente. O cientista político propõe o controle das Forças Armadas e seu afastamento da política a partir de um modelo normativo, pensado para uma sociedade democrática, com valores liberais e Forças Armadas profissionais. Ele via as relações entre a sociedade e as instituições militares como um sistema interdependente onde o ponto de equilíbrio que elevaria ao máximo a segurança militar seria o controle civil objetivo.

“Acontece que, aqui, o controle civil é entendido como aviltamento e falta vontade política para implementar algo assim”, diz Alexandre Fuccille, professor da UNESP. De acordo com Huntington, a maneira mais simples de minimizar o poder militar parece ser a de maximizar o poder dos grupos civis sobre eles. “É uma longa escadaria a ser vencida”, pondera Fuccille.

Ele observa que no Brasil, a questão passa pela criação do Ministério da Defesa em 1999 pelo então presidente Fernando Henrique Cardoso. No entanto, a partir do governo de Michel Temer, a pasta que deveria ser comandada por um civil foi entregue aos militares. Segundo ele, ainda falta conteúdo ao órgão governamental, criado em 1999 durante o governo FHC, e engana-se quem pensa que a “ameaça” da autonomia militar é coisa do passado. “O controle civil pleno é condição necessária, ainda que não suficiente, para a consolidação e o aprofundamento do regime democrático brasileiro”, avalia o pesquisador.

A “longa escadaria” passa obrigatoriamente pelo Congresso, onde um influente assessor do Ministério da Defesa apontou que não há o menor interesse nesses temas. Segundo ele, a não ser quando há um evento, como a tentativa de golpe do 8 de Janeiro, os parlamentares não pensam nas Forças Armadas.

O professor Ramalho ainda acrescenta que o fato de o Brasil não ter se envolvido em guerras nas últimas décadas, em paralelo às dramáticas urgências e necessidades internas, explica também por que há tanto desinteresse e desestímulo em pensar no controle civil dos militares. “As lideranças políticas não têm incentivos para enfrentar esse desafio. Defesa não dá voto e, no contraste com outras necessidades da sociedade, não parece ser uma questão urgente”, observa Ramalho, acrescentando: “Em alguma medida, as elites políticas brasileiras apostaram que as questões espinhosas relacionadas com a ditadura se resolveriam com a passagem do tempo. Isso obviamente não aconteceu e não acontecerá”.

No Brasil, em particular, esse conceito é visto como uma bandeira da esquerda, embora o tema não tenha nada a ver com questões ideológicas. Mas, na democracia, como explicam as professoras Marques e Vitelli, existem dois dilemas. “Por um lado temos o desafio das sociedades democráticas que precisam ter Forças Armadas competentes para a defesa do país, mas que, ao mesmo tempo, respeitem o funcionamento normal do regime democrático, o que, por enquanto, podemos chamar de neutralização da influência política das Forças Armadas”, observa Marques.

As especialistas afirmam, porém, que, por outro lado, as lideranças civis precisam evitar que a perspectiva particular dos militares sobre a realidade e os seus interesses corporativos acabem determinando quando e como as Forças Armadas serão empregadas. “Esse fenômeno podemos chamar de interação entre civis e militares nas decisões sobre a política de defesa nacional”, diz Marques. Porém, nos regimes democráticos, é ainda preciso impedir a interferência das Forças Armadas na política em geral, um desafio ainda mais complexo naquelas sociedades que têm um histórico de envolvimento dos militares na política, como a grande maioria dos países latino-americanos e, também, o Brasil.

Debate sobre o papel dos militares e a necessidade de controle civil é apontado como fundamental por especialistas Foto: Wilton Junior/Estadão

Vitelli e Marques assinalam que, basicamente, o controle se dá amparado em dois pontos. Um é a supremacia civil, que, na democracia, estabelece que as decisões coletivas são tomadas a partir de processos estabelecidos para a participação dos diversos poderes do Estado, representados por autoridades eleitas. Enquanto a subordinação militar – a outra face do controle civil – prevê que a relação entre ambos os atores seja hierárquica; nas democracias, os civis mandam e as Forças Armadas obedecem. Uma regra incompatível com experiências, como a que tivemos no Brasil, quando os militares tutelaram o governo e as Forças Armadas vetavam determinadas políticas e sustentavam determinadas autoridades.

Este é o verdadeiro sentido por trás da expressão “as Forças Armadas são instituições de Estado, não de governo”, que não deve ser entendido como uma justificativa para os militares serem considerados um poder acima dos outros poderes, tutores da sociedade. “As Forças Armadas não são o braço armado do partido no poder, mas, sim, uma parte do aparato de força do Estado, ao serviço das autoridades governamentais, respeitando o Estado de direito e a divisão de poderes”, diz Vetelli.

Mudanças em debate no Congresso

Em um dos raros debates sobre o tema no Brasil, discute-se, atualmente, a chamada PEC dos Militares. Entre outras coisas, a proposta transfere para a reserva o militar que decidir disputar as eleições, independentemente do resultado do pleito. O integrante das Forças Armadas que decidir entrar para a política também perde a remuneração. Ainda não há acordo para a votação, no Senado, da proposta, encampada pelo ministro da Defesa José Múcio, mas que não é considerada uma prioridade para articulação do governo.

Contudo, a proibição pode vir de outro mecanismo. O texto final do novo Código Eleitoral, também em debate na Casa, determina uma regra ainda mais dura: a que militares precisam se afastar pelo menos quatro anos antes para tentar uma eleição. A mesma regra valeria para policiais federais, rodoviários federais, policiais civis e militares, guardas municipais, juízes e membros do Ministério Público.

“São carreiras que não devem coexistir com a política. Se a pessoa pertence a uma dessas carreiras e quer ser política, se afasta, e estamos colocando uma quarentena de 4 anos para se candidatar”, explicou o relator do Código Eleitoral, senador Marcelo Castro (MDB-PI).

Julgamento sobre as Forças no STF

Em outra discussão, o Supremo Tribunal Federal iniciou nesta sexta-feira, 29, o julgamento que trata sobre os limites constitucionais da atuação das Forças Armadas e a hierarquia da instituição militar frente aos Três Poderes. Os ministros têm até o dia 8 de abril para registrar os votos no sistema.

A ação, decorrente de uma provocação do Partido Democrático Trabalhista (PDT), discute interpretações do artigo 142 da Carta Magna, que trata das Forças Armadas, usado frequentemente por bolsonaristas para defender intervenção militar “dentro da Constituição”.

Em seu voto, o relator do caso, ministro Luiz Fux, afirmou que a Constituição não encoraja ruptura democrática. O presidente do STF, ministro Luís Roberto Barroso, acompanhou o relator.

A tentativa de golpe que teve como um dos passos decisivos os ataques do dia 8 de Janeiro, protagonizada, ao que indicam as investigações da Polícia Federal (PF) e do Supremo Tribunal Federal (STF), pelo ex-presidente Jair Bolsonaro e alguns generais, tem feito com que acadêmicos e historiadores retomem com mais intensidade a questão do controle civil dos militares, sobretudo quando completam-se 60 anos do golpe de 1964. Afinal, o que é esse controle? Como ele se dá? Por que é importante nas democracias? E por que o Brasil parece ser refém dos militares em cada crise?

“A questão histórica, especialmente no que concerne ao papel dos militares na política, é chave. A lógica burocrática da busca de autonomia pelas Forças Armadas também”, afirma o professor Antônio Jorge Ramalho, vice-presidente da Associação de Estudos da Defesa.

Como área de estudos, explicam as professoras Adriana Marques e Marina Vitelli, a ideia do controle civil surgiu nos Estados Unidos na década de 50. Era um reflexo das preocupações da sociedade com o controle do aparato militar que havia nos Estados Unidos na década pós-guerra. O primeiro trabalho acadêmico que sistematiza essas preocupações políticas é “O soldado e o Estado”, de Samuel Huntington, cientista político americano, obra obrigatória nas escolas militares.

O presidente Lula com o ministro da Defesa, José Múcio e os comandantes do Exército, da Marinha e da Aeronáutica Foto: Wilton Junior/Estadão

Huntington pondera que o conceito de controle civil, apesar de muito discutido, não havia sido definido claramente. O cientista político propõe o controle das Forças Armadas e seu afastamento da política a partir de um modelo normativo, pensado para uma sociedade democrática, com valores liberais e Forças Armadas profissionais. Ele via as relações entre a sociedade e as instituições militares como um sistema interdependente onde o ponto de equilíbrio que elevaria ao máximo a segurança militar seria o controle civil objetivo.

“Acontece que, aqui, o controle civil é entendido como aviltamento e falta vontade política para implementar algo assim”, diz Alexandre Fuccille, professor da UNESP. De acordo com Huntington, a maneira mais simples de minimizar o poder militar parece ser a de maximizar o poder dos grupos civis sobre eles. “É uma longa escadaria a ser vencida”, pondera Fuccille.

Ele observa que no Brasil, a questão passa pela criação do Ministério da Defesa em 1999 pelo então presidente Fernando Henrique Cardoso. No entanto, a partir do governo de Michel Temer, a pasta que deveria ser comandada por um civil foi entregue aos militares. Segundo ele, ainda falta conteúdo ao órgão governamental, criado em 1999 durante o governo FHC, e engana-se quem pensa que a “ameaça” da autonomia militar é coisa do passado. “O controle civil pleno é condição necessária, ainda que não suficiente, para a consolidação e o aprofundamento do regime democrático brasileiro”, avalia o pesquisador.

A “longa escadaria” passa obrigatoriamente pelo Congresso, onde um influente assessor do Ministério da Defesa apontou que não há o menor interesse nesses temas. Segundo ele, a não ser quando há um evento, como a tentativa de golpe do 8 de Janeiro, os parlamentares não pensam nas Forças Armadas.

O professor Ramalho ainda acrescenta que o fato de o Brasil não ter se envolvido em guerras nas últimas décadas, em paralelo às dramáticas urgências e necessidades internas, explica também por que há tanto desinteresse e desestímulo em pensar no controle civil dos militares. “As lideranças políticas não têm incentivos para enfrentar esse desafio. Defesa não dá voto e, no contraste com outras necessidades da sociedade, não parece ser uma questão urgente”, observa Ramalho, acrescentando: “Em alguma medida, as elites políticas brasileiras apostaram que as questões espinhosas relacionadas com a ditadura se resolveriam com a passagem do tempo. Isso obviamente não aconteceu e não acontecerá”.

No Brasil, em particular, esse conceito é visto como uma bandeira da esquerda, embora o tema não tenha nada a ver com questões ideológicas. Mas, na democracia, como explicam as professoras Marques e Vitelli, existem dois dilemas. “Por um lado temos o desafio das sociedades democráticas que precisam ter Forças Armadas competentes para a defesa do país, mas que, ao mesmo tempo, respeitem o funcionamento normal do regime democrático, o que, por enquanto, podemos chamar de neutralização da influência política das Forças Armadas”, observa Marques.

As especialistas afirmam, porém, que, por outro lado, as lideranças civis precisam evitar que a perspectiva particular dos militares sobre a realidade e os seus interesses corporativos acabem determinando quando e como as Forças Armadas serão empregadas. “Esse fenômeno podemos chamar de interação entre civis e militares nas decisões sobre a política de defesa nacional”, diz Marques. Porém, nos regimes democráticos, é ainda preciso impedir a interferência das Forças Armadas na política em geral, um desafio ainda mais complexo naquelas sociedades que têm um histórico de envolvimento dos militares na política, como a grande maioria dos países latino-americanos e, também, o Brasil.

Debate sobre o papel dos militares e a necessidade de controle civil é apontado como fundamental por especialistas Foto: Wilton Junior/Estadão

Vitelli e Marques assinalam que, basicamente, o controle se dá amparado em dois pontos. Um é a supremacia civil, que, na democracia, estabelece que as decisões coletivas são tomadas a partir de processos estabelecidos para a participação dos diversos poderes do Estado, representados por autoridades eleitas. Enquanto a subordinação militar – a outra face do controle civil – prevê que a relação entre ambos os atores seja hierárquica; nas democracias, os civis mandam e as Forças Armadas obedecem. Uma regra incompatível com experiências, como a que tivemos no Brasil, quando os militares tutelaram o governo e as Forças Armadas vetavam determinadas políticas e sustentavam determinadas autoridades.

Este é o verdadeiro sentido por trás da expressão “as Forças Armadas são instituições de Estado, não de governo”, que não deve ser entendido como uma justificativa para os militares serem considerados um poder acima dos outros poderes, tutores da sociedade. “As Forças Armadas não são o braço armado do partido no poder, mas, sim, uma parte do aparato de força do Estado, ao serviço das autoridades governamentais, respeitando o Estado de direito e a divisão de poderes”, diz Vetelli.

Mudanças em debate no Congresso

Em um dos raros debates sobre o tema no Brasil, discute-se, atualmente, a chamada PEC dos Militares. Entre outras coisas, a proposta transfere para a reserva o militar que decidir disputar as eleições, independentemente do resultado do pleito. O integrante das Forças Armadas que decidir entrar para a política também perde a remuneração. Ainda não há acordo para a votação, no Senado, da proposta, encampada pelo ministro da Defesa José Múcio, mas que não é considerada uma prioridade para articulação do governo.

Contudo, a proibição pode vir de outro mecanismo. O texto final do novo Código Eleitoral, também em debate na Casa, determina uma regra ainda mais dura: a que militares precisam se afastar pelo menos quatro anos antes para tentar uma eleição. A mesma regra valeria para policiais federais, rodoviários federais, policiais civis e militares, guardas municipais, juízes e membros do Ministério Público.

“São carreiras que não devem coexistir com a política. Se a pessoa pertence a uma dessas carreiras e quer ser política, se afasta, e estamos colocando uma quarentena de 4 anos para se candidatar”, explicou o relator do Código Eleitoral, senador Marcelo Castro (MDB-PI).

Julgamento sobre as Forças no STF

Em outra discussão, o Supremo Tribunal Federal iniciou nesta sexta-feira, 29, o julgamento que trata sobre os limites constitucionais da atuação das Forças Armadas e a hierarquia da instituição militar frente aos Três Poderes. Os ministros têm até o dia 8 de abril para registrar os votos no sistema.

A ação, decorrente de uma provocação do Partido Democrático Trabalhista (PDT), discute interpretações do artigo 142 da Carta Magna, que trata das Forças Armadas, usado frequentemente por bolsonaristas para defender intervenção militar “dentro da Constituição”.

Em seu voto, o relator do caso, ministro Luiz Fux, afirmou que a Constituição não encoraja ruptura democrática. O presidente do STF, ministro Luís Roberto Barroso, acompanhou o relator.

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