Pena de Daniel Silveira foi um pouco exagerada, e Congresso não deu suporte ao STF, diz pesquisador


Fernando Abrucio afirma que punição mais branda com retirada de direitos políticos dificultaria argumentos de Bolsonaro

Por Beatriz Bulla

O Congresso não tem dado anteparo político ao Supremo Tribunal Federal (STF), que, por sua vez, tem sido a instituição mais resistente a uma presente corrosão das estruturas democráticas. A avaliação é do doutor em ciência política Fernando Abrucio, professor e pesquisador da FGV.

Segundo ele, o caso Daniel Silveira expõe duas estratégias do presidente Jair Bolsonaro que convivem: de um lado, a eleitoral, de alimentar um radicalismo crescente entre o eleitorado e criar confusão na opinião pública, para colher os frutos políticos; de outro, diz Abrucio, é parte de uma estratégia de “autocratização do poder político” no Brasil.

'Congresso não tem dado anteparo político ao STF', diz cientista político Fernando Abrucio, professor e pesquisador da FGV. Foto: Dida Sampaio/Estadão - 30/11/2021
continua após a publicidade

De acordo com Abrucio, a pena dada a Silveira foi "um pouco exagerada" e deu argumentos ao presidente. "O melhor voto foi o do ministro André Mendonça: dar uma pena criminal branda, mas retirar os direitos políticos. Talvez fosse mais difícil para o Bolsonaro sustentar o argumento de que houve exagero da Corte se tivesse sido essa a decisão."

“Todos os ministros da Corte sabem que há uma estratégia de poder, mas a questão é ter a capacidade de responder. Eles não estão demorando a tomar decisões apenas porque acham que é uma cortina de fumaça de Bolsonaro, e sim porque precisam de algum anteparo político”, afirma Abrucio.

“Há um certo grau de autocracia que vem desde o primeiro dia do mandato que a sociedade e as instituições não conseguiram controlar. É preciso entender esse dilema”, diz o especialista, em entrevista ao Estadão.

continua após a publicidade

A tensão entre STF e Bolsonaro não é uma novidade. O que há de peculiar nesta crise atual e o que ela implica para o processo eleitoral?

Das instituições, o STF é a que mais gerou problemas para Bolsonaro. Essa guerra foi contínua e, neste ano, vai escalar por uma razão simples: a eleição.

O primeiro interesse de Bolsonaro é eleitoral: ele constrói a imagem de que o STF o persegue e é formado por gente que não defende os interesses do Brasil, para dizer o mínimo. A tendência é de que Bolsonaro faça um tipo de campanha eleitoral de respostas a esse eleitor populista de extrema direita, mas que também crie confusão para o resto da opinião pública. Uma parte da estratégia do caso Daniel Silveira é agradar a seu eleitor e criar confusão. 

continua após a publicidade
Fernando Abrucio é doutor em ciência política pela USP e chefe do Departamento de Administração Pública da FGV-SP. Foto: Divulgação Fernando Abrucio

Mas há uma segunda estratégia que é de poder. O projeto político de Bolsonaro é transformar o Brasil em uma Hungria. É um processo de “orbanização” (referência ao primeiro ministro húngaro Viktor Orbán). Significa, primeiro, criar uma eleição na qual ele só pode ganhar. Segundo, após a eleição, se eleito, reduzir mais ainda os controles democráticos. O projeto estratégico dele é ganhar a eleição, escolher mais dois ministros e fazer o impeachment dos ministros Alexandre de Moraes e Luís Roberto Barroso. Com isso, ele indicaria seis dos 11 ministros do Supremo. 

Uma parte dos ministros do Supremo defende a ideia de deixar a poeira baixar, no caso Daniel Silveira, justamente para evitar cair na estratégia eleitoral de Bolsonaro. Atrasar uma resposta sobre o caso significa que o STF, como instituição, não responde ao que o senhor chama de "estratégia de poder" de Bolsonaro?

continua após a publicidade

Todos os ministros da Corte sabem que há uma estratégia de poder, mas a questão é ter a capacidade de responder. Eles não estão demorando a tomar decisões apenas porque acham que é uma cortina de fumaça de Bolsonaro, e sim porque precisam de algum anteparo político. O Congresso não está dando anteparo político ao STF, e os ministros sabem qual é o limite do poder deles. No que se refere a esse caso, o limite provavelmente é a retirada dos direitos políticos do Daniel Silveira. A punição dada, do ponto de vista penal, também me parece um pouco exagerada.

O melhor voto foi o do ministro André Mendonça: dar uma pena criminal branda, mas retirar os direitos políticos. Talvez fosse mais difícil para o Bolsonaro sustentar o argumento de que houve exagero da Corte se tivesse sido essa a decisão. Os ministros sabem que há uma estratégia, a questão é saber como reagir. 

O ministro do STF, André Mendonça, indicado pelo presidente Jair Bolsonaro (PL) para o posto, votou a favor da condenação do deputado bolsonarista Daniel Silveira (PTB-RJ). Foto: Alan Santos/PR
continua após a publicidade

Há um certo grau de autocracia que vem desde o primeiro dia do mandato que a sociedade e as instituições não conseguiram controlar. É preciso entender esse dilema. 

A posição do atual Congresso sobre Bolsonaro minimiza, portanto, a capacidade de reação do STF?

Não se trata só de adiar a decisão para evitar estratégia eleitoral, mas porque os ministros do STF não são, sozinhos, capazes de reagir ao bolsonarismo, pois ele ficou muito forte com a compra do Congresso via orçamento secreto.

continua após a publicidade

Há um projeto que está pouco a pouco corroendo as estruturas democráticas do país. O resto é acreditar em Papai Noel. Acreditar que o Bolsonaro será controlado pelo Arthur Lira (presidente da Câmara), que não tem conseguido nem gaguejar para comentar o assunto? Com mais de R$ 30 bilhões de orçamento secreto e emendas, como o Estadão tem revelado, ele comprou metade da Câmara federal e um terço do Senado. Não tem mais um Rodrigo Maia (ex-presidente da Câmara) no Congresso. O máximo que tem é Rodrigo Pacheco (presidente do Senado), que não é bolsonarista, mas tem capacidade de reação reduzida. 

O Congresso, em boa parte, está dominado, com algum foco de resistência no Senado. O Ministério Público Federal está praticamente dominado. Polícia Federal, dominada. CGU, dominada. O que sobra? O Supremo e os Estados. Mas, neste momento, os Estados, como o Bolsonaro, estão em processo eleitoral. Ganhando ou perdendo, ele vai ter vitórias e derrotas nos Estados. E, se ele ganhar, na lei ou na marra -- e na marra é possível de ocorrer -- ele vai voltar a usar a estratégia Doria: tentar desgastar completamente os governadores que não estão ao seu lado. O tamanho da rejeição de João Doria tem a ver com Bolsonaro.

O que quer dizer quando fala que “ganhar na marra” é possível?

Bolsonaro joga com plano A e plano B. Se ele perder a eleição, o discurso de que a eleição foi roubada vai mobilizar uma parte importante do eleitorado. Se ele mobiliza uma grande parte da população, com pessoas cada vez mais armadas…cria-se uma situação que torna muito difícil a posse, pode gerar uma confusão. O que nos salvaria não seria o Supremo, mas a geopolítica internacional. A esquerda talvez precise dos Estados Unidos para assumir a Presidência da República no Brasil, porque nos EUA circula o comentário de que não se pode ter uma nova Venezuela na América Latina. 

Na melhor das hipóteses, teremos muita confusão, violência, mas o vencedor assume. Bolsonaro está disposto a negociar esse custo político e social. Essa é uma eleição completamente atípica, mais parecida com uma guerra. Talvez, se ele perder, ele terá de fazer um armistício, para salvar a si e os seus próximos. A eleição de 2022 não é a eleição de 2018. 

Como vê, neste contexto, a reunião de Bolsonaro com o WhatsApp?

Temos discussões na Europa e nos EUA sobre big tech. Em nenhum desses lugares, o presidente chamou o dono da empresa na sua sala. Não dá para imaginar o (Joe) Biden ou o Boris Johnson ou (Emmanuel) Macron chamarem o presidente ou diretor de uma empresa para falar sobre a estratégia da companhia, quem faz isso é o (Vladimir) Putin. O que o Bolsonaro fez hoje com WhatsApp é típico do Putin ou do Orban. Um presidente democrático não chama diretor de empresa para discutir seu plano de negócios frente à estratégia eleitoral do seu presidente.

O Congresso não tem dado anteparo político ao Supremo Tribunal Federal (STF), que, por sua vez, tem sido a instituição mais resistente a uma presente corrosão das estruturas democráticas. A avaliação é do doutor em ciência política Fernando Abrucio, professor e pesquisador da FGV.

Segundo ele, o caso Daniel Silveira expõe duas estratégias do presidente Jair Bolsonaro que convivem: de um lado, a eleitoral, de alimentar um radicalismo crescente entre o eleitorado e criar confusão na opinião pública, para colher os frutos políticos; de outro, diz Abrucio, é parte de uma estratégia de “autocratização do poder político” no Brasil.

'Congresso não tem dado anteparo político ao STF', diz cientista político Fernando Abrucio, professor e pesquisador da FGV. Foto: Dida Sampaio/Estadão - 30/11/2021

De acordo com Abrucio, a pena dada a Silveira foi "um pouco exagerada" e deu argumentos ao presidente. "O melhor voto foi o do ministro André Mendonça: dar uma pena criminal branda, mas retirar os direitos políticos. Talvez fosse mais difícil para o Bolsonaro sustentar o argumento de que houve exagero da Corte se tivesse sido essa a decisão."

“Todos os ministros da Corte sabem que há uma estratégia de poder, mas a questão é ter a capacidade de responder. Eles não estão demorando a tomar decisões apenas porque acham que é uma cortina de fumaça de Bolsonaro, e sim porque precisam de algum anteparo político”, afirma Abrucio.

“Há um certo grau de autocracia que vem desde o primeiro dia do mandato que a sociedade e as instituições não conseguiram controlar. É preciso entender esse dilema”, diz o especialista, em entrevista ao Estadão.

A tensão entre STF e Bolsonaro não é uma novidade. O que há de peculiar nesta crise atual e o que ela implica para o processo eleitoral?

Das instituições, o STF é a que mais gerou problemas para Bolsonaro. Essa guerra foi contínua e, neste ano, vai escalar por uma razão simples: a eleição.

O primeiro interesse de Bolsonaro é eleitoral: ele constrói a imagem de que o STF o persegue e é formado por gente que não defende os interesses do Brasil, para dizer o mínimo. A tendência é de que Bolsonaro faça um tipo de campanha eleitoral de respostas a esse eleitor populista de extrema direita, mas que também crie confusão para o resto da opinião pública. Uma parte da estratégia do caso Daniel Silveira é agradar a seu eleitor e criar confusão. 

Fernando Abrucio é doutor em ciência política pela USP e chefe do Departamento de Administração Pública da FGV-SP. Foto: Divulgação Fernando Abrucio

Mas há uma segunda estratégia que é de poder. O projeto político de Bolsonaro é transformar o Brasil em uma Hungria. É um processo de “orbanização” (referência ao primeiro ministro húngaro Viktor Orbán). Significa, primeiro, criar uma eleição na qual ele só pode ganhar. Segundo, após a eleição, se eleito, reduzir mais ainda os controles democráticos. O projeto estratégico dele é ganhar a eleição, escolher mais dois ministros e fazer o impeachment dos ministros Alexandre de Moraes e Luís Roberto Barroso. Com isso, ele indicaria seis dos 11 ministros do Supremo. 

Uma parte dos ministros do Supremo defende a ideia de deixar a poeira baixar, no caso Daniel Silveira, justamente para evitar cair na estratégia eleitoral de Bolsonaro. Atrasar uma resposta sobre o caso significa que o STF, como instituição, não responde ao que o senhor chama de "estratégia de poder" de Bolsonaro?

Todos os ministros da Corte sabem que há uma estratégia de poder, mas a questão é ter a capacidade de responder. Eles não estão demorando a tomar decisões apenas porque acham que é uma cortina de fumaça de Bolsonaro, e sim porque precisam de algum anteparo político. O Congresso não está dando anteparo político ao STF, e os ministros sabem qual é o limite do poder deles. No que se refere a esse caso, o limite provavelmente é a retirada dos direitos políticos do Daniel Silveira. A punição dada, do ponto de vista penal, também me parece um pouco exagerada.

O melhor voto foi o do ministro André Mendonça: dar uma pena criminal branda, mas retirar os direitos políticos. Talvez fosse mais difícil para o Bolsonaro sustentar o argumento de que houve exagero da Corte se tivesse sido essa a decisão. Os ministros sabem que há uma estratégia, a questão é saber como reagir. 

O ministro do STF, André Mendonça, indicado pelo presidente Jair Bolsonaro (PL) para o posto, votou a favor da condenação do deputado bolsonarista Daniel Silveira (PTB-RJ). Foto: Alan Santos/PR

Há um certo grau de autocracia que vem desde o primeiro dia do mandato que a sociedade e as instituições não conseguiram controlar. É preciso entender esse dilema. 

A posição do atual Congresso sobre Bolsonaro minimiza, portanto, a capacidade de reação do STF?

Não se trata só de adiar a decisão para evitar estratégia eleitoral, mas porque os ministros do STF não são, sozinhos, capazes de reagir ao bolsonarismo, pois ele ficou muito forte com a compra do Congresso via orçamento secreto.

Há um projeto que está pouco a pouco corroendo as estruturas democráticas do país. O resto é acreditar em Papai Noel. Acreditar que o Bolsonaro será controlado pelo Arthur Lira (presidente da Câmara), que não tem conseguido nem gaguejar para comentar o assunto? Com mais de R$ 30 bilhões de orçamento secreto e emendas, como o Estadão tem revelado, ele comprou metade da Câmara federal e um terço do Senado. Não tem mais um Rodrigo Maia (ex-presidente da Câmara) no Congresso. O máximo que tem é Rodrigo Pacheco (presidente do Senado), que não é bolsonarista, mas tem capacidade de reação reduzida. 

O Congresso, em boa parte, está dominado, com algum foco de resistência no Senado. O Ministério Público Federal está praticamente dominado. Polícia Federal, dominada. CGU, dominada. O que sobra? O Supremo e os Estados. Mas, neste momento, os Estados, como o Bolsonaro, estão em processo eleitoral. Ganhando ou perdendo, ele vai ter vitórias e derrotas nos Estados. E, se ele ganhar, na lei ou na marra -- e na marra é possível de ocorrer -- ele vai voltar a usar a estratégia Doria: tentar desgastar completamente os governadores que não estão ao seu lado. O tamanho da rejeição de João Doria tem a ver com Bolsonaro.

O que quer dizer quando fala que “ganhar na marra” é possível?

Bolsonaro joga com plano A e plano B. Se ele perder a eleição, o discurso de que a eleição foi roubada vai mobilizar uma parte importante do eleitorado. Se ele mobiliza uma grande parte da população, com pessoas cada vez mais armadas…cria-se uma situação que torna muito difícil a posse, pode gerar uma confusão. O que nos salvaria não seria o Supremo, mas a geopolítica internacional. A esquerda talvez precise dos Estados Unidos para assumir a Presidência da República no Brasil, porque nos EUA circula o comentário de que não se pode ter uma nova Venezuela na América Latina. 

Na melhor das hipóteses, teremos muita confusão, violência, mas o vencedor assume. Bolsonaro está disposto a negociar esse custo político e social. Essa é uma eleição completamente atípica, mais parecida com uma guerra. Talvez, se ele perder, ele terá de fazer um armistício, para salvar a si e os seus próximos. A eleição de 2022 não é a eleição de 2018. 

Como vê, neste contexto, a reunião de Bolsonaro com o WhatsApp?

Temos discussões na Europa e nos EUA sobre big tech. Em nenhum desses lugares, o presidente chamou o dono da empresa na sua sala. Não dá para imaginar o (Joe) Biden ou o Boris Johnson ou (Emmanuel) Macron chamarem o presidente ou diretor de uma empresa para falar sobre a estratégia da companhia, quem faz isso é o (Vladimir) Putin. O que o Bolsonaro fez hoje com WhatsApp é típico do Putin ou do Orban. Um presidente democrático não chama diretor de empresa para discutir seu plano de negócios frente à estratégia eleitoral do seu presidente.

O Congresso não tem dado anteparo político ao Supremo Tribunal Federal (STF), que, por sua vez, tem sido a instituição mais resistente a uma presente corrosão das estruturas democráticas. A avaliação é do doutor em ciência política Fernando Abrucio, professor e pesquisador da FGV.

Segundo ele, o caso Daniel Silveira expõe duas estratégias do presidente Jair Bolsonaro que convivem: de um lado, a eleitoral, de alimentar um radicalismo crescente entre o eleitorado e criar confusão na opinião pública, para colher os frutos políticos; de outro, diz Abrucio, é parte de uma estratégia de “autocratização do poder político” no Brasil.

'Congresso não tem dado anteparo político ao STF', diz cientista político Fernando Abrucio, professor e pesquisador da FGV. Foto: Dida Sampaio/Estadão - 30/11/2021

De acordo com Abrucio, a pena dada a Silveira foi "um pouco exagerada" e deu argumentos ao presidente. "O melhor voto foi o do ministro André Mendonça: dar uma pena criminal branda, mas retirar os direitos políticos. Talvez fosse mais difícil para o Bolsonaro sustentar o argumento de que houve exagero da Corte se tivesse sido essa a decisão."

“Todos os ministros da Corte sabem que há uma estratégia de poder, mas a questão é ter a capacidade de responder. Eles não estão demorando a tomar decisões apenas porque acham que é uma cortina de fumaça de Bolsonaro, e sim porque precisam de algum anteparo político”, afirma Abrucio.

“Há um certo grau de autocracia que vem desde o primeiro dia do mandato que a sociedade e as instituições não conseguiram controlar. É preciso entender esse dilema”, diz o especialista, em entrevista ao Estadão.

A tensão entre STF e Bolsonaro não é uma novidade. O que há de peculiar nesta crise atual e o que ela implica para o processo eleitoral?

Das instituições, o STF é a que mais gerou problemas para Bolsonaro. Essa guerra foi contínua e, neste ano, vai escalar por uma razão simples: a eleição.

O primeiro interesse de Bolsonaro é eleitoral: ele constrói a imagem de que o STF o persegue e é formado por gente que não defende os interesses do Brasil, para dizer o mínimo. A tendência é de que Bolsonaro faça um tipo de campanha eleitoral de respostas a esse eleitor populista de extrema direita, mas que também crie confusão para o resto da opinião pública. Uma parte da estratégia do caso Daniel Silveira é agradar a seu eleitor e criar confusão. 

Fernando Abrucio é doutor em ciência política pela USP e chefe do Departamento de Administração Pública da FGV-SP. Foto: Divulgação Fernando Abrucio

Mas há uma segunda estratégia que é de poder. O projeto político de Bolsonaro é transformar o Brasil em uma Hungria. É um processo de “orbanização” (referência ao primeiro ministro húngaro Viktor Orbán). Significa, primeiro, criar uma eleição na qual ele só pode ganhar. Segundo, após a eleição, se eleito, reduzir mais ainda os controles democráticos. O projeto estratégico dele é ganhar a eleição, escolher mais dois ministros e fazer o impeachment dos ministros Alexandre de Moraes e Luís Roberto Barroso. Com isso, ele indicaria seis dos 11 ministros do Supremo. 

Uma parte dos ministros do Supremo defende a ideia de deixar a poeira baixar, no caso Daniel Silveira, justamente para evitar cair na estratégia eleitoral de Bolsonaro. Atrasar uma resposta sobre o caso significa que o STF, como instituição, não responde ao que o senhor chama de "estratégia de poder" de Bolsonaro?

Todos os ministros da Corte sabem que há uma estratégia de poder, mas a questão é ter a capacidade de responder. Eles não estão demorando a tomar decisões apenas porque acham que é uma cortina de fumaça de Bolsonaro, e sim porque precisam de algum anteparo político. O Congresso não está dando anteparo político ao STF, e os ministros sabem qual é o limite do poder deles. No que se refere a esse caso, o limite provavelmente é a retirada dos direitos políticos do Daniel Silveira. A punição dada, do ponto de vista penal, também me parece um pouco exagerada.

O melhor voto foi o do ministro André Mendonça: dar uma pena criminal branda, mas retirar os direitos políticos. Talvez fosse mais difícil para o Bolsonaro sustentar o argumento de que houve exagero da Corte se tivesse sido essa a decisão. Os ministros sabem que há uma estratégia, a questão é saber como reagir. 

O ministro do STF, André Mendonça, indicado pelo presidente Jair Bolsonaro (PL) para o posto, votou a favor da condenação do deputado bolsonarista Daniel Silveira (PTB-RJ). Foto: Alan Santos/PR

Há um certo grau de autocracia que vem desde o primeiro dia do mandato que a sociedade e as instituições não conseguiram controlar. É preciso entender esse dilema. 

A posição do atual Congresso sobre Bolsonaro minimiza, portanto, a capacidade de reação do STF?

Não se trata só de adiar a decisão para evitar estratégia eleitoral, mas porque os ministros do STF não são, sozinhos, capazes de reagir ao bolsonarismo, pois ele ficou muito forte com a compra do Congresso via orçamento secreto.

Há um projeto que está pouco a pouco corroendo as estruturas democráticas do país. O resto é acreditar em Papai Noel. Acreditar que o Bolsonaro será controlado pelo Arthur Lira (presidente da Câmara), que não tem conseguido nem gaguejar para comentar o assunto? Com mais de R$ 30 bilhões de orçamento secreto e emendas, como o Estadão tem revelado, ele comprou metade da Câmara federal e um terço do Senado. Não tem mais um Rodrigo Maia (ex-presidente da Câmara) no Congresso. O máximo que tem é Rodrigo Pacheco (presidente do Senado), que não é bolsonarista, mas tem capacidade de reação reduzida. 

O Congresso, em boa parte, está dominado, com algum foco de resistência no Senado. O Ministério Público Federal está praticamente dominado. Polícia Federal, dominada. CGU, dominada. O que sobra? O Supremo e os Estados. Mas, neste momento, os Estados, como o Bolsonaro, estão em processo eleitoral. Ganhando ou perdendo, ele vai ter vitórias e derrotas nos Estados. E, se ele ganhar, na lei ou na marra -- e na marra é possível de ocorrer -- ele vai voltar a usar a estratégia Doria: tentar desgastar completamente os governadores que não estão ao seu lado. O tamanho da rejeição de João Doria tem a ver com Bolsonaro.

O que quer dizer quando fala que “ganhar na marra” é possível?

Bolsonaro joga com plano A e plano B. Se ele perder a eleição, o discurso de que a eleição foi roubada vai mobilizar uma parte importante do eleitorado. Se ele mobiliza uma grande parte da população, com pessoas cada vez mais armadas…cria-se uma situação que torna muito difícil a posse, pode gerar uma confusão. O que nos salvaria não seria o Supremo, mas a geopolítica internacional. A esquerda talvez precise dos Estados Unidos para assumir a Presidência da República no Brasil, porque nos EUA circula o comentário de que não se pode ter uma nova Venezuela na América Latina. 

Na melhor das hipóteses, teremos muita confusão, violência, mas o vencedor assume. Bolsonaro está disposto a negociar esse custo político e social. Essa é uma eleição completamente atípica, mais parecida com uma guerra. Talvez, se ele perder, ele terá de fazer um armistício, para salvar a si e os seus próximos. A eleição de 2022 não é a eleição de 2018. 

Como vê, neste contexto, a reunião de Bolsonaro com o WhatsApp?

Temos discussões na Europa e nos EUA sobre big tech. Em nenhum desses lugares, o presidente chamou o dono da empresa na sua sala. Não dá para imaginar o (Joe) Biden ou o Boris Johnson ou (Emmanuel) Macron chamarem o presidente ou diretor de uma empresa para falar sobre a estratégia da companhia, quem faz isso é o (Vladimir) Putin. O que o Bolsonaro fez hoje com WhatsApp é típico do Putin ou do Orban. Um presidente democrático não chama diretor de empresa para discutir seu plano de negócios frente à estratégia eleitoral do seu presidente.

O Congresso não tem dado anteparo político ao Supremo Tribunal Federal (STF), que, por sua vez, tem sido a instituição mais resistente a uma presente corrosão das estruturas democráticas. A avaliação é do doutor em ciência política Fernando Abrucio, professor e pesquisador da FGV.

Segundo ele, o caso Daniel Silveira expõe duas estratégias do presidente Jair Bolsonaro que convivem: de um lado, a eleitoral, de alimentar um radicalismo crescente entre o eleitorado e criar confusão na opinião pública, para colher os frutos políticos; de outro, diz Abrucio, é parte de uma estratégia de “autocratização do poder político” no Brasil.

'Congresso não tem dado anteparo político ao STF', diz cientista político Fernando Abrucio, professor e pesquisador da FGV. Foto: Dida Sampaio/Estadão - 30/11/2021

De acordo com Abrucio, a pena dada a Silveira foi "um pouco exagerada" e deu argumentos ao presidente. "O melhor voto foi o do ministro André Mendonça: dar uma pena criminal branda, mas retirar os direitos políticos. Talvez fosse mais difícil para o Bolsonaro sustentar o argumento de que houve exagero da Corte se tivesse sido essa a decisão."

“Todos os ministros da Corte sabem que há uma estratégia de poder, mas a questão é ter a capacidade de responder. Eles não estão demorando a tomar decisões apenas porque acham que é uma cortina de fumaça de Bolsonaro, e sim porque precisam de algum anteparo político”, afirma Abrucio.

“Há um certo grau de autocracia que vem desde o primeiro dia do mandato que a sociedade e as instituições não conseguiram controlar. É preciso entender esse dilema”, diz o especialista, em entrevista ao Estadão.

A tensão entre STF e Bolsonaro não é uma novidade. O que há de peculiar nesta crise atual e o que ela implica para o processo eleitoral?

Das instituições, o STF é a que mais gerou problemas para Bolsonaro. Essa guerra foi contínua e, neste ano, vai escalar por uma razão simples: a eleição.

O primeiro interesse de Bolsonaro é eleitoral: ele constrói a imagem de que o STF o persegue e é formado por gente que não defende os interesses do Brasil, para dizer o mínimo. A tendência é de que Bolsonaro faça um tipo de campanha eleitoral de respostas a esse eleitor populista de extrema direita, mas que também crie confusão para o resto da opinião pública. Uma parte da estratégia do caso Daniel Silveira é agradar a seu eleitor e criar confusão. 

Fernando Abrucio é doutor em ciência política pela USP e chefe do Departamento de Administração Pública da FGV-SP. Foto: Divulgação Fernando Abrucio

Mas há uma segunda estratégia que é de poder. O projeto político de Bolsonaro é transformar o Brasil em uma Hungria. É um processo de “orbanização” (referência ao primeiro ministro húngaro Viktor Orbán). Significa, primeiro, criar uma eleição na qual ele só pode ganhar. Segundo, após a eleição, se eleito, reduzir mais ainda os controles democráticos. O projeto estratégico dele é ganhar a eleição, escolher mais dois ministros e fazer o impeachment dos ministros Alexandre de Moraes e Luís Roberto Barroso. Com isso, ele indicaria seis dos 11 ministros do Supremo. 

Uma parte dos ministros do Supremo defende a ideia de deixar a poeira baixar, no caso Daniel Silveira, justamente para evitar cair na estratégia eleitoral de Bolsonaro. Atrasar uma resposta sobre o caso significa que o STF, como instituição, não responde ao que o senhor chama de "estratégia de poder" de Bolsonaro?

Todos os ministros da Corte sabem que há uma estratégia de poder, mas a questão é ter a capacidade de responder. Eles não estão demorando a tomar decisões apenas porque acham que é uma cortina de fumaça de Bolsonaro, e sim porque precisam de algum anteparo político. O Congresso não está dando anteparo político ao STF, e os ministros sabem qual é o limite do poder deles. No que se refere a esse caso, o limite provavelmente é a retirada dos direitos políticos do Daniel Silveira. A punição dada, do ponto de vista penal, também me parece um pouco exagerada.

O melhor voto foi o do ministro André Mendonça: dar uma pena criminal branda, mas retirar os direitos políticos. Talvez fosse mais difícil para o Bolsonaro sustentar o argumento de que houve exagero da Corte se tivesse sido essa a decisão. Os ministros sabem que há uma estratégia, a questão é saber como reagir. 

O ministro do STF, André Mendonça, indicado pelo presidente Jair Bolsonaro (PL) para o posto, votou a favor da condenação do deputado bolsonarista Daniel Silveira (PTB-RJ). Foto: Alan Santos/PR

Há um certo grau de autocracia que vem desde o primeiro dia do mandato que a sociedade e as instituições não conseguiram controlar. É preciso entender esse dilema. 

A posição do atual Congresso sobre Bolsonaro minimiza, portanto, a capacidade de reação do STF?

Não se trata só de adiar a decisão para evitar estratégia eleitoral, mas porque os ministros do STF não são, sozinhos, capazes de reagir ao bolsonarismo, pois ele ficou muito forte com a compra do Congresso via orçamento secreto.

Há um projeto que está pouco a pouco corroendo as estruturas democráticas do país. O resto é acreditar em Papai Noel. Acreditar que o Bolsonaro será controlado pelo Arthur Lira (presidente da Câmara), que não tem conseguido nem gaguejar para comentar o assunto? Com mais de R$ 30 bilhões de orçamento secreto e emendas, como o Estadão tem revelado, ele comprou metade da Câmara federal e um terço do Senado. Não tem mais um Rodrigo Maia (ex-presidente da Câmara) no Congresso. O máximo que tem é Rodrigo Pacheco (presidente do Senado), que não é bolsonarista, mas tem capacidade de reação reduzida. 

O Congresso, em boa parte, está dominado, com algum foco de resistência no Senado. O Ministério Público Federal está praticamente dominado. Polícia Federal, dominada. CGU, dominada. O que sobra? O Supremo e os Estados. Mas, neste momento, os Estados, como o Bolsonaro, estão em processo eleitoral. Ganhando ou perdendo, ele vai ter vitórias e derrotas nos Estados. E, se ele ganhar, na lei ou na marra -- e na marra é possível de ocorrer -- ele vai voltar a usar a estratégia Doria: tentar desgastar completamente os governadores que não estão ao seu lado. O tamanho da rejeição de João Doria tem a ver com Bolsonaro.

O que quer dizer quando fala que “ganhar na marra” é possível?

Bolsonaro joga com plano A e plano B. Se ele perder a eleição, o discurso de que a eleição foi roubada vai mobilizar uma parte importante do eleitorado. Se ele mobiliza uma grande parte da população, com pessoas cada vez mais armadas…cria-se uma situação que torna muito difícil a posse, pode gerar uma confusão. O que nos salvaria não seria o Supremo, mas a geopolítica internacional. A esquerda talvez precise dos Estados Unidos para assumir a Presidência da República no Brasil, porque nos EUA circula o comentário de que não se pode ter uma nova Venezuela na América Latina. 

Na melhor das hipóteses, teremos muita confusão, violência, mas o vencedor assume. Bolsonaro está disposto a negociar esse custo político e social. Essa é uma eleição completamente atípica, mais parecida com uma guerra. Talvez, se ele perder, ele terá de fazer um armistício, para salvar a si e os seus próximos. A eleição de 2022 não é a eleição de 2018. 

Como vê, neste contexto, a reunião de Bolsonaro com o WhatsApp?

Temos discussões na Europa e nos EUA sobre big tech. Em nenhum desses lugares, o presidente chamou o dono da empresa na sua sala. Não dá para imaginar o (Joe) Biden ou o Boris Johnson ou (Emmanuel) Macron chamarem o presidente ou diretor de uma empresa para falar sobre a estratégia da companhia, quem faz isso é o (Vladimir) Putin. O que o Bolsonaro fez hoje com WhatsApp é típico do Putin ou do Orban. Um presidente democrático não chama diretor de empresa para discutir seu plano de negócios frente à estratégia eleitoral do seu presidente.

Atualizamos nossa política de cookies

Ao utilizar nossos serviços, você aceita a política de monitoramento de cookies.