Plano de Lula para Defesa prevê Guarda Nacional e despolitização das Forças Armadas após Bolsonaro


‘Não quero general de esquerda, mas legalista e consciente’, diz Celso Amorim; militares pedem diálogo, não vingança

Por Marcelo Godoy
Atualização:

Modernizar as Forças Armadas em razão da nova realidade geopolítica mundial ditada pelo conflito da Ucrânia e afastar os militares da política. Essa é a estratégia do PT para tentar recuperar o diálogo institucional com a caserna em um eventual terceiro mandato de Luiz Inácio Lula da Silva.

“Não quero general de esquerda, mas legalista e consciente de seu dever”, afirmou ao Estadão o ex-ministro da Defesa e ex-chanceler Celso Amorim. Ele disse considerar como “passado” a Comissão Nacional da Verdade (CNV), um dos principais motivos de atrito entre o partido e os militares no governo Dilma Rousseff. “O momento é de normalização. Vivemos um momento da CNV, que foi necessário. Esse momento está superado. Não vamos mexer mais nisso.”

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Ex-chanceler Celso Amorim e ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT) durante ato de campanha em São Paulo Foto: Miguel Schincariol / AFP

Para Amorim, a situação a ser enfrentada hoje é outra. “Em termos de programa, vivemos em uma situação tão anormal agora que é preciso recuperar a normalidade. Essa é a primeira coisa. Despolitizar as Forças Armadas e elas passarem a se dedicar à sua tarefa principal – que eu sei que não é a única –, que é a defesa da Pátria. E isso passa pela modernização das forças.”

Um futuro governo de Lula e Geraldo Alckmin (PSB), segundo ele, deve usar a Defesa como forma de desenvolvimento tecnológico, com a construção de aviões, embarcações e mísseis nacionais. “Cada vez mais os acordos comerciais vão cercando outros instrumentos de política industrial, mas não os de Defesa. Defesa está fora da OMC (Organização Mundial do Comércio).”

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O momento é de normalização. Vivemos um momento da CNV, que foi necessário. Esse momento está superado. Não vamos mexer mais nisso

Celso Amorim, ex-ministro da Defesa e ex-chanceler

Formuladores de propostas petistas para a Defesa defendem ainda a criação de uma Guarda Nacional para atuar em crises ligadas à segurança pública – afastando, assim, o instrumento da Garantia da Lei e da Ordem (GLO), quando integrantes das forças assumem o policiamento ostensivo –, além da busca de alianças regionais para a dissuasão de ameaças extrarregionais. O candidato petista encomendou sugestões a um grupo de especialistas.

Ex-presidente Associação Brasileira de Estudos de Defesa (Abed), Manuel Domingos Neto é um dos consultados. De acordo com ele, estuda-se ainda a estruturação de uma polícia de fronteira, de uma polícia florestal e de uma guarda costeira.

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É preciso uma nova concepção de Defesa que obedeça a quatro princípios: coesão nacional; amizade com vizinhos; capacidade científica e tecnológica; e forças coerentes com esses pontos

Manuel Domingos Neto, ex-presidente Associação Brasileira de Estudos de Defesa (Abed)

Domingos Neto defende, ainda, um modelo de transição para a profissionalização das Forças Armadas que abandone o alistamento obrigatório, a exemplo dos Exércitos europeus e dos Estados Unidos. “É preciso uma nova concepção de Defesa que obedeça a quatro princípios: coesão nacional; amizade com vizinhos; capacidade científica e tecnológica; e forças coerentes com esses pontos.”

Desconfianças

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Porém, as desconfianças entre petistas e militares contaminam o debate sobre o tema. Ao mesmo tempo que Amorim e Domingos Neto procuram um diálogo institucional, setores do partido continuam a tratar os militares como um “puxadinho” do governo Jair Bolsonaro (PL). É o que mostra, por exemplo, resolução aprovada pelo Encontro Nacional de Direitos Humanos do PT, em 12 de dezembro de 2021.

No documento, lê-se que “a atual cúpula das Forças Armadas é cúmplice desta conduta do governo Bolsonaro”. De acordo com o texto, “não há como separar as Forças Armadas da catástrofe que é o governo Bolsonaro.”

Não há como separar as Forças Armadas da catástrofe que é o governo Bolsonaro

Resolução do Encontro Nacional de Direitos Humanos do PT em 2021

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O texto provoca calafrios nos generais da ativa. Sob reserva, muitos acusam o PT de cegueira, de ser incapaz de diferenciar Forças Armadas e Ministério da Defesa. Lembram da postura institucional assumida por comandantes na atual gestão, como o general Edson Leal Pujol, o que lhe custou o cargo. E nenhum deles mais tem paciência para responder a perguntas sobre golpe e consideram até desrespeitoso que alguém acredite que seriam capazes de embarcar em uma aventura.

Generais também afirmam ter disposição para o diálogo institucional e de buscar a modernização desde que isso não seja usado apenas para diminuir o poder das forças, retirando-lhes tarefas ligadas à segurança interna, promovendo uma espécie de vingança do partido pela participação de militares na gestão Bolsonaro.

Também dizem acreditar ser difícil copiar o modelo americano de Forças Armadas e encontrar recursos para montar uma guarda costeira ou o abandono da conscrição (serviço militar obrigatório) em nome da profissionalização. E reafirmam que a prioridade deve ser a busca de um orçamento da Defesa que saia de 1,5% do Produto Interno Bruto (PIB) para 2%. Os militares dizem que isso deve ser precedido de amplo debate para que o projeto para a Defesa seja uma política sobretudo de Estado, não apenas de um governo.

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Bolsonaro, o presidente de Portugal, Marcelo Rebelo de Sousa, e o vice-presidente Mourão, durante o desfile cívico-militar em Brasília, no dia 7 de Setembro de 2022, que acabou em comício Foto: Wilton Junior/Estadão

Há ainda aqueles que criticam de imediato as alterações no modelo atual das Forças. “Ele é o mais viável para o País, pois otimiza recursos”, afirmou o deputado federal e general da reserva Roberto Peternelli (União-SP), que disputa a reeleição e apoia Bolsonaro. Ele citou como exemplo de sucesso a manutenção do controle aéreo com a Aeronáutica. Peternelli concorda, no entanto, com a aposta na produção de material bélico nacional diante da dependência de equipamentos estrangeiros, como no setor de helicópteros.

Diálogo interrompido

O diálogo entre as forças políticas e o Exército foi interrompido durante a campanha eleitoral por determinação do general Marco Antonio Freire Gomes, atual comandante do Exército. Ele decidiu que a força deve manter distância, nesse período, de políticos e empresários para preservar a instituição.

Interlocutor de parte desses generais, o professor de Filosofia Denis Lerrer Rosenfield afirmou que quatro pontos são fundamentais para os militares no diálogo institucional: “A manutenção da Lei de Anistia, não se deve reabrir a Comissão Nacional da Verdade, nem alterar o sistema de promoções dos generais ou o currículo das academias.” O recado tem um alvo certo.

Esplanada dos Ministérios foi ornada com símbolos nacionais para desfiles de 7 de Setembro Foto: WILTON JUNIOR/ESTADÃO

Em 2016, documento do PT que avaliava as razões do impeachment de Dilma afirmava: “Fomos igualmente descuidados com a necessidade de reformar o Estado (...) modificar os currículos das academias militares; promover oficiais com compromisso democrático e nacionalista.”

Distância

É deste documento, aprovado então pelo Diretório Nacional do PT, que a campanha de Lula pretende se distanciar. Domingos Neto foi ainda mais longe. Para ele, é “besteira mudar o currículo”. “Quem botou isso prestou um desserviço. O currículo é estabelecido em função da missão.” De acordo ele, todas essas propostas levadas a Lula devem ser estudadas e debatidas em um grupo que deve apresentar um projeto de modernização do Ministério da Defesa.

Já Amorim defendeu até mesmo a postura de Pujol durante a pandemia de covid-19. “Ele me pareceu muito legalista. Seguiu a ciência e a racionalidade”, afirmou. Entre seus interlocutores estão o general Enzo Peri, ex-comandante do Exército, e o almirante Julio Soares de Moura Neto, ex-comandante da Marinha.

Na campanha de Lula existe a ideia de que a mudança de comando das forças leve em consideração o critério da antiguidade. São bem-vistos oficiais com postura institucional consolidada, como o general Tomás Miguel Miné Ribeiro Paiva, atual comandante militar do Sudeste, que foi ajudante de ordens de Itamar Franco e de Fernando Henrique Cardoso.

Dessa forma, os petistas querem passar um outro recado. Não pensam em repetir no Brasil a experiência de Gustavo Petro, na Colômbia, que escolheu o comandante do Exército daquele país entre os oficiais generais mais modernos, forçando assim a passagem para a reserva dos demais.

Pela tradição, Petro devia ter nomeado o mais antigo em substituição a Eduardo Enrique Zapateiro Altamiranda, após bate-boca entre os dois em uma rede social, ainda durante a campanha eleitoral. O então candidato acusava generais de estarem na folha de pagamento de narcoterroristas do Clã do Golfo. O general o desafiou a apresentar provas e sugeriu que Petro fosse corrupto.

Modernizar as Forças Armadas em razão da nova realidade geopolítica mundial ditada pelo conflito da Ucrânia e afastar os militares da política. Essa é a estratégia do PT para tentar recuperar o diálogo institucional com a caserna em um eventual terceiro mandato de Luiz Inácio Lula da Silva.

“Não quero general de esquerda, mas legalista e consciente de seu dever”, afirmou ao Estadão o ex-ministro da Defesa e ex-chanceler Celso Amorim. Ele disse considerar como “passado” a Comissão Nacional da Verdade (CNV), um dos principais motivos de atrito entre o partido e os militares no governo Dilma Rousseff. “O momento é de normalização. Vivemos um momento da CNV, que foi necessário. Esse momento está superado. Não vamos mexer mais nisso.”

Ex-chanceler Celso Amorim e ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT) durante ato de campanha em São Paulo Foto: Miguel Schincariol / AFP

Para Amorim, a situação a ser enfrentada hoje é outra. “Em termos de programa, vivemos em uma situação tão anormal agora que é preciso recuperar a normalidade. Essa é a primeira coisa. Despolitizar as Forças Armadas e elas passarem a se dedicar à sua tarefa principal – que eu sei que não é a única –, que é a defesa da Pátria. E isso passa pela modernização das forças.”

Um futuro governo de Lula e Geraldo Alckmin (PSB), segundo ele, deve usar a Defesa como forma de desenvolvimento tecnológico, com a construção de aviões, embarcações e mísseis nacionais. “Cada vez mais os acordos comerciais vão cercando outros instrumentos de política industrial, mas não os de Defesa. Defesa está fora da OMC (Organização Mundial do Comércio).”

O momento é de normalização. Vivemos um momento da CNV, que foi necessário. Esse momento está superado. Não vamos mexer mais nisso

Celso Amorim, ex-ministro da Defesa e ex-chanceler

Formuladores de propostas petistas para a Defesa defendem ainda a criação de uma Guarda Nacional para atuar em crises ligadas à segurança pública – afastando, assim, o instrumento da Garantia da Lei e da Ordem (GLO), quando integrantes das forças assumem o policiamento ostensivo –, além da busca de alianças regionais para a dissuasão de ameaças extrarregionais. O candidato petista encomendou sugestões a um grupo de especialistas.

Ex-presidente Associação Brasileira de Estudos de Defesa (Abed), Manuel Domingos Neto é um dos consultados. De acordo com ele, estuda-se ainda a estruturação de uma polícia de fronteira, de uma polícia florestal e de uma guarda costeira.

É preciso uma nova concepção de Defesa que obedeça a quatro princípios: coesão nacional; amizade com vizinhos; capacidade científica e tecnológica; e forças coerentes com esses pontos

Manuel Domingos Neto, ex-presidente Associação Brasileira de Estudos de Defesa (Abed)

Domingos Neto defende, ainda, um modelo de transição para a profissionalização das Forças Armadas que abandone o alistamento obrigatório, a exemplo dos Exércitos europeus e dos Estados Unidos. “É preciso uma nova concepção de Defesa que obedeça a quatro princípios: coesão nacional; amizade com vizinhos; capacidade científica e tecnológica; e forças coerentes com esses pontos.”

Desconfianças

Porém, as desconfianças entre petistas e militares contaminam o debate sobre o tema. Ao mesmo tempo que Amorim e Domingos Neto procuram um diálogo institucional, setores do partido continuam a tratar os militares como um “puxadinho” do governo Jair Bolsonaro (PL). É o que mostra, por exemplo, resolução aprovada pelo Encontro Nacional de Direitos Humanos do PT, em 12 de dezembro de 2021.

No documento, lê-se que “a atual cúpula das Forças Armadas é cúmplice desta conduta do governo Bolsonaro”. De acordo com o texto, “não há como separar as Forças Armadas da catástrofe que é o governo Bolsonaro.”

Não há como separar as Forças Armadas da catástrofe que é o governo Bolsonaro

Resolução do Encontro Nacional de Direitos Humanos do PT em 2021

O texto provoca calafrios nos generais da ativa. Sob reserva, muitos acusam o PT de cegueira, de ser incapaz de diferenciar Forças Armadas e Ministério da Defesa. Lembram da postura institucional assumida por comandantes na atual gestão, como o general Edson Leal Pujol, o que lhe custou o cargo. E nenhum deles mais tem paciência para responder a perguntas sobre golpe e consideram até desrespeitoso que alguém acredite que seriam capazes de embarcar em uma aventura.

Generais também afirmam ter disposição para o diálogo institucional e de buscar a modernização desde que isso não seja usado apenas para diminuir o poder das forças, retirando-lhes tarefas ligadas à segurança interna, promovendo uma espécie de vingança do partido pela participação de militares na gestão Bolsonaro.

Também dizem acreditar ser difícil copiar o modelo americano de Forças Armadas e encontrar recursos para montar uma guarda costeira ou o abandono da conscrição (serviço militar obrigatório) em nome da profissionalização. E reafirmam que a prioridade deve ser a busca de um orçamento da Defesa que saia de 1,5% do Produto Interno Bruto (PIB) para 2%. Os militares dizem que isso deve ser precedido de amplo debate para que o projeto para a Defesa seja uma política sobretudo de Estado, não apenas de um governo.

Bolsonaro, o presidente de Portugal, Marcelo Rebelo de Sousa, e o vice-presidente Mourão, durante o desfile cívico-militar em Brasília, no dia 7 de Setembro de 2022, que acabou em comício Foto: Wilton Junior/Estadão

Há ainda aqueles que criticam de imediato as alterações no modelo atual das Forças. “Ele é o mais viável para o País, pois otimiza recursos”, afirmou o deputado federal e general da reserva Roberto Peternelli (União-SP), que disputa a reeleição e apoia Bolsonaro. Ele citou como exemplo de sucesso a manutenção do controle aéreo com a Aeronáutica. Peternelli concorda, no entanto, com a aposta na produção de material bélico nacional diante da dependência de equipamentos estrangeiros, como no setor de helicópteros.

Diálogo interrompido

O diálogo entre as forças políticas e o Exército foi interrompido durante a campanha eleitoral por determinação do general Marco Antonio Freire Gomes, atual comandante do Exército. Ele decidiu que a força deve manter distância, nesse período, de políticos e empresários para preservar a instituição.

Interlocutor de parte desses generais, o professor de Filosofia Denis Lerrer Rosenfield afirmou que quatro pontos são fundamentais para os militares no diálogo institucional: “A manutenção da Lei de Anistia, não se deve reabrir a Comissão Nacional da Verdade, nem alterar o sistema de promoções dos generais ou o currículo das academias.” O recado tem um alvo certo.

Esplanada dos Ministérios foi ornada com símbolos nacionais para desfiles de 7 de Setembro Foto: WILTON JUNIOR/ESTADÃO

Em 2016, documento do PT que avaliava as razões do impeachment de Dilma afirmava: “Fomos igualmente descuidados com a necessidade de reformar o Estado (...) modificar os currículos das academias militares; promover oficiais com compromisso democrático e nacionalista.”

Distância

É deste documento, aprovado então pelo Diretório Nacional do PT, que a campanha de Lula pretende se distanciar. Domingos Neto foi ainda mais longe. Para ele, é “besteira mudar o currículo”. “Quem botou isso prestou um desserviço. O currículo é estabelecido em função da missão.” De acordo ele, todas essas propostas levadas a Lula devem ser estudadas e debatidas em um grupo que deve apresentar um projeto de modernização do Ministério da Defesa.

Já Amorim defendeu até mesmo a postura de Pujol durante a pandemia de covid-19. “Ele me pareceu muito legalista. Seguiu a ciência e a racionalidade”, afirmou. Entre seus interlocutores estão o general Enzo Peri, ex-comandante do Exército, e o almirante Julio Soares de Moura Neto, ex-comandante da Marinha.

Na campanha de Lula existe a ideia de que a mudança de comando das forças leve em consideração o critério da antiguidade. São bem-vistos oficiais com postura institucional consolidada, como o general Tomás Miguel Miné Ribeiro Paiva, atual comandante militar do Sudeste, que foi ajudante de ordens de Itamar Franco e de Fernando Henrique Cardoso.

Dessa forma, os petistas querem passar um outro recado. Não pensam em repetir no Brasil a experiência de Gustavo Petro, na Colômbia, que escolheu o comandante do Exército daquele país entre os oficiais generais mais modernos, forçando assim a passagem para a reserva dos demais.

Pela tradição, Petro devia ter nomeado o mais antigo em substituição a Eduardo Enrique Zapateiro Altamiranda, após bate-boca entre os dois em uma rede social, ainda durante a campanha eleitoral. O então candidato acusava generais de estarem na folha de pagamento de narcoterroristas do Clã do Golfo. O general o desafiou a apresentar provas e sugeriu que Petro fosse corrupto.

Modernizar as Forças Armadas em razão da nova realidade geopolítica mundial ditada pelo conflito da Ucrânia e afastar os militares da política. Essa é a estratégia do PT para tentar recuperar o diálogo institucional com a caserna em um eventual terceiro mandato de Luiz Inácio Lula da Silva.

“Não quero general de esquerda, mas legalista e consciente de seu dever”, afirmou ao Estadão o ex-ministro da Defesa e ex-chanceler Celso Amorim. Ele disse considerar como “passado” a Comissão Nacional da Verdade (CNV), um dos principais motivos de atrito entre o partido e os militares no governo Dilma Rousseff. “O momento é de normalização. Vivemos um momento da CNV, que foi necessário. Esse momento está superado. Não vamos mexer mais nisso.”

Ex-chanceler Celso Amorim e ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT) durante ato de campanha em São Paulo Foto: Miguel Schincariol / AFP

Para Amorim, a situação a ser enfrentada hoje é outra. “Em termos de programa, vivemos em uma situação tão anormal agora que é preciso recuperar a normalidade. Essa é a primeira coisa. Despolitizar as Forças Armadas e elas passarem a se dedicar à sua tarefa principal – que eu sei que não é a única –, que é a defesa da Pátria. E isso passa pela modernização das forças.”

Um futuro governo de Lula e Geraldo Alckmin (PSB), segundo ele, deve usar a Defesa como forma de desenvolvimento tecnológico, com a construção de aviões, embarcações e mísseis nacionais. “Cada vez mais os acordos comerciais vão cercando outros instrumentos de política industrial, mas não os de Defesa. Defesa está fora da OMC (Organização Mundial do Comércio).”

O momento é de normalização. Vivemos um momento da CNV, que foi necessário. Esse momento está superado. Não vamos mexer mais nisso

Celso Amorim, ex-ministro da Defesa e ex-chanceler

Formuladores de propostas petistas para a Defesa defendem ainda a criação de uma Guarda Nacional para atuar em crises ligadas à segurança pública – afastando, assim, o instrumento da Garantia da Lei e da Ordem (GLO), quando integrantes das forças assumem o policiamento ostensivo –, além da busca de alianças regionais para a dissuasão de ameaças extrarregionais. O candidato petista encomendou sugestões a um grupo de especialistas.

Ex-presidente Associação Brasileira de Estudos de Defesa (Abed), Manuel Domingos Neto é um dos consultados. De acordo com ele, estuda-se ainda a estruturação de uma polícia de fronteira, de uma polícia florestal e de uma guarda costeira.

É preciso uma nova concepção de Defesa que obedeça a quatro princípios: coesão nacional; amizade com vizinhos; capacidade científica e tecnológica; e forças coerentes com esses pontos

Manuel Domingos Neto, ex-presidente Associação Brasileira de Estudos de Defesa (Abed)

Domingos Neto defende, ainda, um modelo de transição para a profissionalização das Forças Armadas que abandone o alistamento obrigatório, a exemplo dos Exércitos europeus e dos Estados Unidos. “É preciso uma nova concepção de Defesa que obedeça a quatro princípios: coesão nacional; amizade com vizinhos; capacidade científica e tecnológica; e forças coerentes com esses pontos.”

Desconfianças

Porém, as desconfianças entre petistas e militares contaminam o debate sobre o tema. Ao mesmo tempo que Amorim e Domingos Neto procuram um diálogo institucional, setores do partido continuam a tratar os militares como um “puxadinho” do governo Jair Bolsonaro (PL). É o que mostra, por exemplo, resolução aprovada pelo Encontro Nacional de Direitos Humanos do PT, em 12 de dezembro de 2021.

No documento, lê-se que “a atual cúpula das Forças Armadas é cúmplice desta conduta do governo Bolsonaro”. De acordo com o texto, “não há como separar as Forças Armadas da catástrofe que é o governo Bolsonaro.”

Não há como separar as Forças Armadas da catástrofe que é o governo Bolsonaro

Resolução do Encontro Nacional de Direitos Humanos do PT em 2021

O texto provoca calafrios nos generais da ativa. Sob reserva, muitos acusam o PT de cegueira, de ser incapaz de diferenciar Forças Armadas e Ministério da Defesa. Lembram da postura institucional assumida por comandantes na atual gestão, como o general Edson Leal Pujol, o que lhe custou o cargo. E nenhum deles mais tem paciência para responder a perguntas sobre golpe e consideram até desrespeitoso que alguém acredite que seriam capazes de embarcar em uma aventura.

Generais também afirmam ter disposição para o diálogo institucional e de buscar a modernização desde que isso não seja usado apenas para diminuir o poder das forças, retirando-lhes tarefas ligadas à segurança interna, promovendo uma espécie de vingança do partido pela participação de militares na gestão Bolsonaro.

Também dizem acreditar ser difícil copiar o modelo americano de Forças Armadas e encontrar recursos para montar uma guarda costeira ou o abandono da conscrição (serviço militar obrigatório) em nome da profissionalização. E reafirmam que a prioridade deve ser a busca de um orçamento da Defesa que saia de 1,5% do Produto Interno Bruto (PIB) para 2%. Os militares dizem que isso deve ser precedido de amplo debate para que o projeto para a Defesa seja uma política sobretudo de Estado, não apenas de um governo.

Bolsonaro, o presidente de Portugal, Marcelo Rebelo de Sousa, e o vice-presidente Mourão, durante o desfile cívico-militar em Brasília, no dia 7 de Setembro de 2022, que acabou em comício Foto: Wilton Junior/Estadão

Há ainda aqueles que criticam de imediato as alterações no modelo atual das Forças. “Ele é o mais viável para o País, pois otimiza recursos”, afirmou o deputado federal e general da reserva Roberto Peternelli (União-SP), que disputa a reeleição e apoia Bolsonaro. Ele citou como exemplo de sucesso a manutenção do controle aéreo com a Aeronáutica. Peternelli concorda, no entanto, com a aposta na produção de material bélico nacional diante da dependência de equipamentos estrangeiros, como no setor de helicópteros.

Diálogo interrompido

O diálogo entre as forças políticas e o Exército foi interrompido durante a campanha eleitoral por determinação do general Marco Antonio Freire Gomes, atual comandante do Exército. Ele decidiu que a força deve manter distância, nesse período, de políticos e empresários para preservar a instituição.

Interlocutor de parte desses generais, o professor de Filosofia Denis Lerrer Rosenfield afirmou que quatro pontos são fundamentais para os militares no diálogo institucional: “A manutenção da Lei de Anistia, não se deve reabrir a Comissão Nacional da Verdade, nem alterar o sistema de promoções dos generais ou o currículo das academias.” O recado tem um alvo certo.

Esplanada dos Ministérios foi ornada com símbolos nacionais para desfiles de 7 de Setembro Foto: WILTON JUNIOR/ESTADÃO

Em 2016, documento do PT que avaliava as razões do impeachment de Dilma afirmava: “Fomos igualmente descuidados com a necessidade de reformar o Estado (...) modificar os currículos das academias militares; promover oficiais com compromisso democrático e nacionalista.”

Distância

É deste documento, aprovado então pelo Diretório Nacional do PT, que a campanha de Lula pretende se distanciar. Domingos Neto foi ainda mais longe. Para ele, é “besteira mudar o currículo”. “Quem botou isso prestou um desserviço. O currículo é estabelecido em função da missão.” De acordo ele, todas essas propostas levadas a Lula devem ser estudadas e debatidas em um grupo que deve apresentar um projeto de modernização do Ministério da Defesa.

Já Amorim defendeu até mesmo a postura de Pujol durante a pandemia de covid-19. “Ele me pareceu muito legalista. Seguiu a ciência e a racionalidade”, afirmou. Entre seus interlocutores estão o general Enzo Peri, ex-comandante do Exército, e o almirante Julio Soares de Moura Neto, ex-comandante da Marinha.

Na campanha de Lula existe a ideia de que a mudança de comando das forças leve em consideração o critério da antiguidade. São bem-vistos oficiais com postura institucional consolidada, como o general Tomás Miguel Miné Ribeiro Paiva, atual comandante militar do Sudeste, que foi ajudante de ordens de Itamar Franco e de Fernando Henrique Cardoso.

Dessa forma, os petistas querem passar um outro recado. Não pensam em repetir no Brasil a experiência de Gustavo Petro, na Colômbia, que escolheu o comandante do Exército daquele país entre os oficiais generais mais modernos, forçando assim a passagem para a reserva dos demais.

Pela tradição, Petro devia ter nomeado o mais antigo em substituição a Eduardo Enrique Zapateiro Altamiranda, após bate-boca entre os dois em uma rede social, ainda durante a campanha eleitoral. O então candidato acusava generais de estarem na folha de pagamento de narcoterroristas do Clã do Golfo. O general o desafiou a apresentar provas e sugeriu que Petro fosse corrupto.

Modernizar as Forças Armadas em razão da nova realidade geopolítica mundial ditada pelo conflito da Ucrânia e afastar os militares da política. Essa é a estratégia do PT para tentar recuperar o diálogo institucional com a caserna em um eventual terceiro mandato de Luiz Inácio Lula da Silva.

“Não quero general de esquerda, mas legalista e consciente de seu dever”, afirmou ao Estadão o ex-ministro da Defesa e ex-chanceler Celso Amorim. Ele disse considerar como “passado” a Comissão Nacional da Verdade (CNV), um dos principais motivos de atrito entre o partido e os militares no governo Dilma Rousseff. “O momento é de normalização. Vivemos um momento da CNV, que foi necessário. Esse momento está superado. Não vamos mexer mais nisso.”

Ex-chanceler Celso Amorim e ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT) durante ato de campanha em São Paulo Foto: Miguel Schincariol / AFP

Para Amorim, a situação a ser enfrentada hoje é outra. “Em termos de programa, vivemos em uma situação tão anormal agora que é preciso recuperar a normalidade. Essa é a primeira coisa. Despolitizar as Forças Armadas e elas passarem a se dedicar à sua tarefa principal – que eu sei que não é a única –, que é a defesa da Pátria. E isso passa pela modernização das forças.”

Um futuro governo de Lula e Geraldo Alckmin (PSB), segundo ele, deve usar a Defesa como forma de desenvolvimento tecnológico, com a construção de aviões, embarcações e mísseis nacionais. “Cada vez mais os acordos comerciais vão cercando outros instrumentos de política industrial, mas não os de Defesa. Defesa está fora da OMC (Organização Mundial do Comércio).”

O momento é de normalização. Vivemos um momento da CNV, que foi necessário. Esse momento está superado. Não vamos mexer mais nisso

Celso Amorim, ex-ministro da Defesa e ex-chanceler

Formuladores de propostas petistas para a Defesa defendem ainda a criação de uma Guarda Nacional para atuar em crises ligadas à segurança pública – afastando, assim, o instrumento da Garantia da Lei e da Ordem (GLO), quando integrantes das forças assumem o policiamento ostensivo –, além da busca de alianças regionais para a dissuasão de ameaças extrarregionais. O candidato petista encomendou sugestões a um grupo de especialistas.

Ex-presidente Associação Brasileira de Estudos de Defesa (Abed), Manuel Domingos Neto é um dos consultados. De acordo com ele, estuda-se ainda a estruturação de uma polícia de fronteira, de uma polícia florestal e de uma guarda costeira.

É preciso uma nova concepção de Defesa que obedeça a quatro princípios: coesão nacional; amizade com vizinhos; capacidade científica e tecnológica; e forças coerentes com esses pontos

Manuel Domingos Neto, ex-presidente Associação Brasileira de Estudos de Defesa (Abed)

Domingos Neto defende, ainda, um modelo de transição para a profissionalização das Forças Armadas que abandone o alistamento obrigatório, a exemplo dos Exércitos europeus e dos Estados Unidos. “É preciso uma nova concepção de Defesa que obedeça a quatro princípios: coesão nacional; amizade com vizinhos; capacidade científica e tecnológica; e forças coerentes com esses pontos.”

Desconfianças

Porém, as desconfianças entre petistas e militares contaminam o debate sobre o tema. Ao mesmo tempo que Amorim e Domingos Neto procuram um diálogo institucional, setores do partido continuam a tratar os militares como um “puxadinho” do governo Jair Bolsonaro (PL). É o que mostra, por exemplo, resolução aprovada pelo Encontro Nacional de Direitos Humanos do PT, em 12 de dezembro de 2021.

No documento, lê-se que “a atual cúpula das Forças Armadas é cúmplice desta conduta do governo Bolsonaro”. De acordo com o texto, “não há como separar as Forças Armadas da catástrofe que é o governo Bolsonaro.”

Não há como separar as Forças Armadas da catástrofe que é o governo Bolsonaro

Resolução do Encontro Nacional de Direitos Humanos do PT em 2021

O texto provoca calafrios nos generais da ativa. Sob reserva, muitos acusam o PT de cegueira, de ser incapaz de diferenciar Forças Armadas e Ministério da Defesa. Lembram da postura institucional assumida por comandantes na atual gestão, como o general Edson Leal Pujol, o que lhe custou o cargo. E nenhum deles mais tem paciência para responder a perguntas sobre golpe e consideram até desrespeitoso que alguém acredite que seriam capazes de embarcar em uma aventura.

Generais também afirmam ter disposição para o diálogo institucional e de buscar a modernização desde que isso não seja usado apenas para diminuir o poder das forças, retirando-lhes tarefas ligadas à segurança interna, promovendo uma espécie de vingança do partido pela participação de militares na gestão Bolsonaro.

Também dizem acreditar ser difícil copiar o modelo americano de Forças Armadas e encontrar recursos para montar uma guarda costeira ou o abandono da conscrição (serviço militar obrigatório) em nome da profissionalização. E reafirmam que a prioridade deve ser a busca de um orçamento da Defesa que saia de 1,5% do Produto Interno Bruto (PIB) para 2%. Os militares dizem que isso deve ser precedido de amplo debate para que o projeto para a Defesa seja uma política sobretudo de Estado, não apenas de um governo.

Bolsonaro, o presidente de Portugal, Marcelo Rebelo de Sousa, e o vice-presidente Mourão, durante o desfile cívico-militar em Brasília, no dia 7 de Setembro de 2022, que acabou em comício Foto: Wilton Junior/Estadão

Há ainda aqueles que criticam de imediato as alterações no modelo atual das Forças. “Ele é o mais viável para o País, pois otimiza recursos”, afirmou o deputado federal e general da reserva Roberto Peternelli (União-SP), que disputa a reeleição e apoia Bolsonaro. Ele citou como exemplo de sucesso a manutenção do controle aéreo com a Aeronáutica. Peternelli concorda, no entanto, com a aposta na produção de material bélico nacional diante da dependência de equipamentos estrangeiros, como no setor de helicópteros.

Diálogo interrompido

O diálogo entre as forças políticas e o Exército foi interrompido durante a campanha eleitoral por determinação do general Marco Antonio Freire Gomes, atual comandante do Exército. Ele decidiu que a força deve manter distância, nesse período, de políticos e empresários para preservar a instituição.

Interlocutor de parte desses generais, o professor de Filosofia Denis Lerrer Rosenfield afirmou que quatro pontos são fundamentais para os militares no diálogo institucional: “A manutenção da Lei de Anistia, não se deve reabrir a Comissão Nacional da Verdade, nem alterar o sistema de promoções dos generais ou o currículo das academias.” O recado tem um alvo certo.

Esplanada dos Ministérios foi ornada com símbolos nacionais para desfiles de 7 de Setembro Foto: WILTON JUNIOR/ESTADÃO

Em 2016, documento do PT que avaliava as razões do impeachment de Dilma afirmava: “Fomos igualmente descuidados com a necessidade de reformar o Estado (...) modificar os currículos das academias militares; promover oficiais com compromisso democrático e nacionalista.”

Distância

É deste documento, aprovado então pelo Diretório Nacional do PT, que a campanha de Lula pretende se distanciar. Domingos Neto foi ainda mais longe. Para ele, é “besteira mudar o currículo”. “Quem botou isso prestou um desserviço. O currículo é estabelecido em função da missão.” De acordo ele, todas essas propostas levadas a Lula devem ser estudadas e debatidas em um grupo que deve apresentar um projeto de modernização do Ministério da Defesa.

Já Amorim defendeu até mesmo a postura de Pujol durante a pandemia de covid-19. “Ele me pareceu muito legalista. Seguiu a ciência e a racionalidade”, afirmou. Entre seus interlocutores estão o general Enzo Peri, ex-comandante do Exército, e o almirante Julio Soares de Moura Neto, ex-comandante da Marinha.

Na campanha de Lula existe a ideia de que a mudança de comando das forças leve em consideração o critério da antiguidade. São bem-vistos oficiais com postura institucional consolidada, como o general Tomás Miguel Miné Ribeiro Paiva, atual comandante militar do Sudeste, que foi ajudante de ordens de Itamar Franco e de Fernando Henrique Cardoso.

Dessa forma, os petistas querem passar um outro recado. Não pensam em repetir no Brasil a experiência de Gustavo Petro, na Colômbia, que escolheu o comandante do Exército daquele país entre os oficiais generais mais modernos, forçando assim a passagem para a reserva dos demais.

Pela tradição, Petro devia ter nomeado o mais antigo em substituição a Eduardo Enrique Zapateiro Altamiranda, após bate-boca entre os dois em uma rede social, ainda durante a campanha eleitoral. O então candidato acusava generais de estarem na folha de pagamento de narcoterroristas do Clã do Golfo. O general o desafiou a apresentar provas e sugeriu que Petro fosse corrupto.

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