Como a polarização Lula x Bolsonaro invadiu o almoço da família, a mesa do bar e até as compras


Livro do cientista político Felipe Nunes e do jornalista Thomas Traumann mostra como divergências eleitorais mudaram a vida do País

Por Francisco Leali
Atualização:

BRASÍLIA - Felipe Nunes e Thomas Traumann cogitavam fazer uma autópsia da eleição de 2022. O primeiro, cientista político e fundador do Instituto Quaest, o segundo, jornalista e ex-chefe da Secretaria de Comunicação do governo Dilma Rousseff. Os ataques extremistas de 8 de janeiro fizeram a dupla reajustar o plano original. O que era para ser um livro sobre o que se passou na disputa eleitoral em que se engalfinharam petistas e bolsonaristas virou um retrato do que foi o confronto, mas também do Brasil que saiu dele.

Para os dois, neste 2023 vivemos em Lulanaro, um País onde a polarização ultrapassou a arena eleitoral. Invadiu o almoço em família, as salas de aulas, as conversas de bar e até as escolhas sobre o que comprar ou deixar de comprar. A nação que resultou do pleito de 2022 foi batizada por eles a partir da junção dos nomes dos dois adversários: o petista Luiz Inácio Lula da Silva e o ex-presidente Jair Bolsonaro.

O primeiro debate para presidente da República no 2º turno das Eleições 2022 em que Bolsonaro e Lula se enfrentaram em 16 de outubro de 2022 Foto: WERTHER SANTANA / ESTADAO
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“Biografia do Abismo, como a polarização divide famílias, desafia empresas e compromete o futuro do Brasil” tem 240 páginas e uma coleção de dados e gráficos sobre as preferências, não-preferências dos eleitores, mas também seus ódios e amores antes, durante e depois da disputa presidencial.

Luiz Inácio Lula da Silva, candidato eleito à Presidência da República pelo PT no segundo turno das eleições. Ato em 30 de outubro de 2022 Foto: Daniel Teixeira / Estadão

“Quando veio o 8 de janeiro estava claro que a eleição não terminou”, explica Traumann. A principal fonte do livro é o banco de dados da Quaest com 98,8 mil entrevistas realizadas em 27 edições ao longo de 2021 e 2022, além do material coletado em 150 grupos de discussão com eleitores durante a campanha. Ao acervo foram acrescidas pesquisas mais recentes realizadas este ano, já com o País sob comando da gestão petista.

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O livro principia pegando emprestado a figura cunhada pelo economista Edmar Bacha na década de 1970. Para falar do Brasil marcado pela desigualdade social e também produtor de riquezas, ele criou o termo Belíndia, a nação que ora se parecia com a pobreza encontrada na época na Índia, ora gerava riquezas e renda compatível com a Bélgica. Assim como na figura de Bacha, Nunes e Traumann vêem Lulanaro, o País ainda desigual e, agora, rachado entre os apoiadores de Lula e Bolsonaro.

O texto do cientista político e do jornalista propõe ir além da já conhecida polarização que, como aqui, também tem marcado o mundo político lá fora. Para isso, pegam emprestado o conceito da calcificação, descrito por pesquisadores norte-americanos que analisaram os efeitos duradouros da disputa presidencial nos Estados Unidos pós-Donald Trump.

Calcificação na política, traduzem Nunes e Traumann, quer dizer que “as pessoas ficam mais firmes no lugar e é mais difícil se afastarem de suas predisposições”. “A calcificação significa menos disposição de desertar do seu grupo, romper com seu candidato a presidente ou até votar no partido oposto. Há, portanto, menos chances de eventos novos e até dramáticos mudarem as escolhas das pessoas nas urnas”, escrevem. A polarização é tamanha que as divergências se consolidam e tornam difícil o eleitor mudar de opinião e de voto.

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Sobre o abismo com o qual nos defrontamos nas eleições e depois dela, os autores relatam que essa tendência de não mudar de lado e, mais do que isso, não aceitar o outro, ultrapassou as eleições. “A disputa política deixou de ser apenas um ato eleitoral e passou a ser um ato identitário, presente no cotidiano do consumo, do estilo de vida, hábitos e escolhas. A disputa eleitoral transbordou para o cotidiano”.

Para comprovar sua tese, citam números. O primeiro deles é o que chamam de índice de “polarização afetiva”. Ele é calculado a partir das manifestações de entrevistados que, numa escala de 0 a 10, são classificados segundo gostar, desgostar e até odiar um ou outro candidato. Quanto mais alto o índice maior é a manifestação de intolerância do eleitor com o adversário de seu candidato preferido.

Um gráfico com escala ajustada expõe que em 2022 essa polarização dos afetos alcançou seu pico.

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Em 2002, quando Lula disputou com José Serra a presidência e se elegeu pela primeira vez, o índice de polarização ficou em 4,36. Seguiu nesse patamar com diminutas oscilações até 2014, quando chegou a 4,42 na disputa entre Dilma Rousseff e Aécio Neves. Em 2018, a taxa subiu para 5,61 no confronto entre Bolsonaro e Fernando Haddad. No Lula x Bolsonaro de 2022, bateu em 6,92 pontos.

“Quando a polarização vira uma relação de afeto, o adversário passa a ser seu inimigo, uma ameaça à própria existência do grupo, um mal a ser destruído”, sustentam os autores.

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Dividido em sete capítulos, o livro mapeia como os eleitores foram indicando estar cada vez mais enraizados em suas bolhas, como o então presidente Bolsonaro cultivou uma nova comunicação política pelas redes sociais, como acabou perdendo votos na disputa com o oponente petista.

O que levou a derrota de Bolsonaro em 2022

No livro, Nunes e Traumann reforçam que atribuir a derrota do ex-presidente nas eleições do ano passado ao voto dos nordestinos e dos beneficiários do Bolsa Família é uma simplificação. Segundo eles, Lula venceu porque conseguiu ampliar sua votação em grandes cidades como São Paulo, Rio de Janeiro, Belo Horizonte e Salvador. A diferença registrada nessas cidades soma 1,57 milhão de votos. No final da apuração em todo o País no segundo turno, Lula ficou 2,13 milhões de votos a frente de Bolsonaro.

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Com os eleitores cada vez mais convictos de que ou eram Lula ou Bolsonaro, outros fatores, segundo os autores, contribuíram para o então presidente não se reeleger. Seu desempenho na pandemia, a inclinação do voto feminino pró-Lula e a adesão de liberais na reta final à candidatura petista estão entre os fatores. As pesquisas indicavam que havia na população brasileira um contingente ligeiramente maior dos que tinham medo de Bolsonaro continuar no cargo do que os que manifestavam o mesmo sentimento em relação à volta de Lula ao poder.

Disputa entre bolsonaristas e lulistas transborda para o cotidiano

O livro cita como exemplo da polarização o registro de que havia intolerância em relação a aceitar em sua família um apoiador do candidato adversário. Diante da pergunta ‘você aceitaria ver sua filha casada com um apoiador do adversário’ veio a resposta: em junho de 2022, um em cada três entrevistados disse que se sentiria infeliz ou muito infeliz se isso acontecesse. Na época 43% dos lulistas deram essa resposta; entre os bolsonaristas o percentual foi menor, 28%.

Há ainda um grande contingente, 54%, que relatou conhecer alguém que rompeu amizades ou laços de família por conta de divergências eleitorais. Em junho de 2023, o ressentimento ainda se fazia presente. Entre os que admitiram ter perdido amigo por conta do voto 75% disseram não sentir qualquer arrependimento disso.

Usando mais relatos de casos notórios do que dados de pesquisa, o livro destaca situações em que o transbordamento das diferenças políticas deixaram rastro: a professora que foi demitida da escola de São Paulo porque usou pronome neutro numa apresentação; o abaixo-assinado que tentou tirar a advogada de direita Janaína Paschoal da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo; o deputado bolsonarista que conseguiu vetar uso de livro no vestibular em Goiás.

“A polarização não é ruim per si, faz parte da democracia haver divergências, mas hoje tem gente brigando até pelo chocolate BIS”, comenta Traumann, que só não incluiu o caso no livro porque veio a público quando o texto já estava liberado para impressão.

Embora exponham um cenário de nervos à flor da pele entre os brasileiros, os autores não são pessimistas. Alertam que a eleição de Lula não pacificou os ânimos. Mas na parte sugerem que é possível “descalcificar” a sociedade e apontam alguns caminhos. Admitem, entretanto, que vai levar tempo. “Num prazo curto a descalcificação não ocorrerá. Em 2026 não havendo nem Lula nem Bolsonaro na disputa, os candidatos dos dois grupos ainda manterão as divergências”, diz Traumann.

Para superar isso, como dizem no livro, a responsabilidade terá que ser coletiva: “Se o presidente, ministros do STF, governadores, senadores, deputados e jornalistas têm uma responsabilidade política de ao menos tentar atenuar os efeitos da polarização afetiva, o compromisso individual do cidadão é aprender a conviver com as diferenças”.

BRASÍLIA - Felipe Nunes e Thomas Traumann cogitavam fazer uma autópsia da eleição de 2022. O primeiro, cientista político e fundador do Instituto Quaest, o segundo, jornalista e ex-chefe da Secretaria de Comunicação do governo Dilma Rousseff. Os ataques extremistas de 8 de janeiro fizeram a dupla reajustar o plano original. O que era para ser um livro sobre o que se passou na disputa eleitoral em que se engalfinharam petistas e bolsonaristas virou um retrato do que foi o confronto, mas também do Brasil que saiu dele.

Para os dois, neste 2023 vivemos em Lulanaro, um País onde a polarização ultrapassou a arena eleitoral. Invadiu o almoço em família, as salas de aulas, as conversas de bar e até as escolhas sobre o que comprar ou deixar de comprar. A nação que resultou do pleito de 2022 foi batizada por eles a partir da junção dos nomes dos dois adversários: o petista Luiz Inácio Lula da Silva e o ex-presidente Jair Bolsonaro.

O primeiro debate para presidente da República no 2º turno das Eleições 2022 em que Bolsonaro e Lula se enfrentaram em 16 de outubro de 2022 Foto: WERTHER SANTANA / ESTADAO

“Biografia do Abismo, como a polarização divide famílias, desafia empresas e compromete o futuro do Brasil” tem 240 páginas e uma coleção de dados e gráficos sobre as preferências, não-preferências dos eleitores, mas também seus ódios e amores antes, durante e depois da disputa presidencial.

Luiz Inácio Lula da Silva, candidato eleito à Presidência da República pelo PT no segundo turno das eleições. Ato em 30 de outubro de 2022 Foto: Daniel Teixeira / Estadão

“Quando veio o 8 de janeiro estava claro que a eleição não terminou”, explica Traumann. A principal fonte do livro é o banco de dados da Quaest com 98,8 mil entrevistas realizadas em 27 edições ao longo de 2021 e 2022, além do material coletado em 150 grupos de discussão com eleitores durante a campanha. Ao acervo foram acrescidas pesquisas mais recentes realizadas este ano, já com o País sob comando da gestão petista.

O livro principia pegando emprestado a figura cunhada pelo economista Edmar Bacha na década de 1970. Para falar do Brasil marcado pela desigualdade social e também produtor de riquezas, ele criou o termo Belíndia, a nação que ora se parecia com a pobreza encontrada na época na Índia, ora gerava riquezas e renda compatível com a Bélgica. Assim como na figura de Bacha, Nunes e Traumann vêem Lulanaro, o País ainda desigual e, agora, rachado entre os apoiadores de Lula e Bolsonaro.

O texto do cientista político e do jornalista propõe ir além da já conhecida polarização que, como aqui, também tem marcado o mundo político lá fora. Para isso, pegam emprestado o conceito da calcificação, descrito por pesquisadores norte-americanos que analisaram os efeitos duradouros da disputa presidencial nos Estados Unidos pós-Donald Trump.

Calcificação na política, traduzem Nunes e Traumann, quer dizer que “as pessoas ficam mais firmes no lugar e é mais difícil se afastarem de suas predisposições”. “A calcificação significa menos disposição de desertar do seu grupo, romper com seu candidato a presidente ou até votar no partido oposto. Há, portanto, menos chances de eventos novos e até dramáticos mudarem as escolhas das pessoas nas urnas”, escrevem. A polarização é tamanha que as divergências se consolidam e tornam difícil o eleitor mudar de opinião e de voto.

Sobre o abismo com o qual nos defrontamos nas eleições e depois dela, os autores relatam que essa tendência de não mudar de lado e, mais do que isso, não aceitar o outro, ultrapassou as eleições. “A disputa política deixou de ser apenas um ato eleitoral e passou a ser um ato identitário, presente no cotidiano do consumo, do estilo de vida, hábitos e escolhas. A disputa eleitoral transbordou para o cotidiano”.

Para comprovar sua tese, citam números. O primeiro deles é o que chamam de índice de “polarização afetiva”. Ele é calculado a partir das manifestações de entrevistados que, numa escala de 0 a 10, são classificados segundo gostar, desgostar e até odiar um ou outro candidato. Quanto mais alto o índice maior é a manifestação de intolerância do eleitor com o adversário de seu candidato preferido.

Um gráfico com escala ajustada expõe que em 2022 essa polarização dos afetos alcançou seu pico.

Em 2002, quando Lula disputou com José Serra a presidência e se elegeu pela primeira vez, o índice de polarização ficou em 4,36. Seguiu nesse patamar com diminutas oscilações até 2014, quando chegou a 4,42 na disputa entre Dilma Rousseff e Aécio Neves. Em 2018, a taxa subiu para 5,61 no confronto entre Bolsonaro e Fernando Haddad. No Lula x Bolsonaro de 2022, bateu em 6,92 pontos.

“Quando a polarização vira uma relação de afeto, o adversário passa a ser seu inimigo, uma ameaça à própria existência do grupo, um mal a ser destruído”, sustentam os autores.

Dividido em sete capítulos, o livro mapeia como os eleitores foram indicando estar cada vez mais enraizados em suas bolhas, como o então presidente Bolsonaro cultivou uma nova comunicação política pelas redes sociais, como acabou perdendo votos na disputa com o oponente petista.

O que levou a derrota de Bolsonaro em 2022

No livro, Nunes e Traumann reforçam que atribuir a derrota do ex-presidente nas eleições do ano passado ao voto dos nordestinos e dos beneficiários do Bolsa Família é uma simplificação. Segundo eles, Lula venceu porque conseguiu ampliar sua votação em grandes cidades como São Paulo, Rio de Janeiro, Belo Horizonte e Salvador. A diferença registrada nessas cidades soma 1,57 milhão de votos. No final da apuração em todo o País no segundo turno, Lula ficou 2,13 milhões de votos a frente de Bolsonaro.

Com os eleitores cada vez mais convictos de que ou eram Lula ou Bolsonaro, outros fatores, segundo os autores, contribuíram para o então presidente não se reeleger. Seu desempenho na pandemia, a inclinação do voto feminino pró-Lula e a adesão de liberais na reta final à candidatura petista estão entre os fatores. As pesquisas indicavam que havia na população brasileira um contingente ligeiramente maior dos que tinham medo de Bolsonaro continuar no cargo do que os que manifestavam o mesmo sentimento em relação à volta de Lula ao poder.

Disputa entre bolsonaristas e lulistas transborda para o cotidiano

O livro cita como exemplo da polarização o registro de que havia intolerância em relação a aceitar em sua família um apoiador do candidato adversário. Diante da pergunta ‘você aceitaria ver sua filha casada com um apoiador do adversário’ veio a resposta: em junho de 2022, um em cada três entrevistados disse que se sentiria infeliz ou muito infeliz se isso acontecesse. Na época 43% dos lulistas deram essa resposta; entre os bolsonaristas o percentual foi menor, 28%.

Há ainda um grande contingente, 54%, que relatou conhecer alguém que rompeu amizades ou laços de família por conta de divergências eleitorais. Em junho de 2023, o ressentimento ainda se fazia presente. Entre os que admitiram ter perdido amigo por conta do voto 75% disseram não sentir qualquer arrependimento disso.

Usando mais relatos de casos notórios do que dados de pesquisa, o livro destaca situações em que o transbordamento das diferenças políticas deixaram rastro: a professora que foi demitida da escola de São Paulo porque usou pronome neutro numa apresentação; o abaixo-assinado que tentou tirar a advogada de direita Janaína Paschoal da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo; o deputado bolsonarista que conseguiu vetar uso de livro no vestibular em Goiás.

“A polarização não é ruim per si, faz parte da democracia haver divergências, mas hoje tem gente brigando até pelo chocolate BIS”, comenta Traumann, que só não incluiu o caso no livro porque veio a público quando o texto já estava liberado para impressão.

Embora exponham um cenário de nervos à flor da pele entre os brasileiros, os autores não são pessimistas. Alertam que a eleição de Lula não pacificou os ânimos. Mas na parte sugerem que é possível “descalcificar” a sociedade e apontam alguns caminhos. Admitem, entretanto, que vai levar tempo. “Num prazo curto a descalcificação não ocorrerá. Em 2026 não havendo nem Lula nem Bolsonaro na disputa, os candidatos dos dois grupos ainda manterão as divergências”, diz Traumann.

Para superar isso, como dizem no livro, a responsabilidade terá que ser coletiva: “Se o presidente, ministros do STF, governadores, senadores, deputados e jornalistas têm uma responsabilidade política de ao menos tentar atenuar os efeitos da polarização afetiva, o compromisso individual do cidadão é aprender a conviver com as diferenças”.

BRASÍLIA - Felipe Nunes e Thomas Traumann cogitavam fazer uma autópsia da eleição de 2022. O primeiro, cientista político e fundador do Instituto Quaest, o segundo, jornalista e ex-chefe da Secretaria de Comunicação do governo Dilma Rousseff. Os ataques extremistas de 8 de janeiro fizeram a dupla reajustar o plano original. O que era para ser um livro sobre o que se passou na disputa eleitoral em que se engalfinharam petistas e bolsonaristas virou um retrato do que foi o confronto, mas também do Brasil que saiu dele.

Para os dois, neste 2023 vivemos em Lulanaro, um País onde a polarização ultrapassou a arena eleitoral. Invadiu o almoço em família, as salas de aulas, as conversas de bar e até as escolhas sobre o que comprar ou deixar de comprar. A nação que resultou do pleito de 2022 foi batizada por eles a partir da junção dos nomes dos dois adversários: o petista Luiz Inácio Lula da Silva e o ex-presidente Jair Bolsonaro.

O primeiro debate para presidente da República no 2º turno das Eleições 2022 em que Bolsonaro e Lula se enfrentaram em 16 de outubro de 2022 Foto: WERTHER SANTANA / ESTADAO

“Biografia do Abismo, como a polarização divide famílias, desafia empresas e compromete o futuro do Brasil” tem 240 páginas e uma coleção de dados e gráficos sobre as preferências, não-preferências dos eleitores, mas também seus ódios e amores antes, durante e depois da disputa presidencial.

Luiz Inácio Lula da Silva, candidato eleito à Presidência da República pelo PT no segundo turno das eleições. Ato em 30 de outubro de 2022 Foto: Daniel Teixeira / Estadão

“Quando veio o 8 de janeiro estava claro que a eleição não terminou”, explica Traumann. A principal fonte do livro é o banco de dados da Quaest com 98,8 mil entrevistas realizadas em 27 edições ao longo de 2021 e 2022, além do material coletado em 150 grupos de discussão com eleitores durante a campanha. Ao acervo foram acrescidas pesquisas mais recentes realizadas este ano, já com o País sob comando da gestão petista.

O livro principia pegando emprestado a figura cunhada pelo economista Edmar Bacha na década de 1970. Para falar do Brasil marcado pela desigualdade social e também produtor de riquezas, ele criou o termo Belíndia, a nação que ora se parecia com a pobreza encontrada na época na Índia, ora gerava riquezas e renda compatível com a Bélgica. Assim como na figura de Bacha, Nunes e Traumann vêem Lulanaro, o País ainda desigual e, agora, rachado entre os apoiadores de Lula e Bolsonaro.

O texto do cientista político e do jornalista propõe ir além da já conhecida polarização que, como aqui, também tem marcado o mundo político lá fora. Para isso, pegam emprestado o conceito da calcificação, descrito por pesquisadores norte-americanos que analisaram os efeitos duradouros da disputa presidencial nos Estados Unidos pós-Donald Trump.

Calcificação na política, traduzem Nunes e Traumann, quer dizer que “as pessoas ficam mais firmes no lugar e é mais difícil se afastarem de suas predisposições”. “A calcificação significa menos disposição de desertar do seu grupo, romper com seu candidato a presidente ou até votar no partido oposto. Há, portanto, menos chances de eventos novos e até dramáticos mudarem as escolhas das pessoas nas urnas”, escrevem. A polarização é tamanha que as divergências se consolidam e tornam difícil o eleitor mudar de opinião e de voto.

Sobre o abismo com o qual nos defrontamos nas eleições e depois dela, os autores relatam que essa tendência de não mudar de lado e, mais do que isso, não aceitar o outro, ultrapassou as eleições. “A disputa política deixou de ser apenas um ato eleitoral e passou a ser um ato identitário, presente no cotidiano do consumo, do estilo de vida, hábitos e escolhas. A disputa eleitoral transbordou para o cotidiano”.

Para comprovar sua tese, citam números. O primeiro deles é o que chamam de índice de “polarização afetiva”. Ele é calculado a partir das manifestações de entrevistados que, numa escala de 0 a 10, são classificados segundo gostar, desgostar e até odiar um ou outro candidato. Quanto mais alto o índice maior é a manifestação de intolerância do eleitor com o adversário de seu candidato preferido.

Um gráfico com escala ajustada expõe que em 2022 essa polarização dos afetos alcançou seu pico.

Em 2002, quando Lula disputou com José Serra a presidência e se elegeu pela primeira vez, o índice de polarização ficou em 4,36. Seguiu nesse patamar com diminutas oscilações até 2014, quando chegou a 4,42 na disputa entre Dilma Rousseff e Aécio Neves. Em 2018, a taxa subiu para 5,61 no confronto entre Bolsonaro e Fernando Haddad. No Lula x Bolsonaro de 2022, bateu em 6,92 pontos.

“Quando a polarização vira uma relação de afeto, o adversário passa a ser seu inimigo, uma ameaça à própria existência do grupo, um mal a ser destruído”, sustentam os autores.

Dividido em sete capítulos, o livro mapeia como os eleitores foram indicando estar cada vez mais enraizados em suas bolhas, como o então presidente Bolsonaro cultivou uma nova comunicação política pelas redes sociais, como acabou perdendo votos na disputa com o oponente petista.

O que levou a derrota de Bolsonaro em 2022

No livro, Nunes e Traumann reforçam que atribuir a derrota do ex-presidente nas eleições do ano passado ao voto dos nordestinos e dos beneficiários do Bolsa Família é uma simplificação. Segundo eles, Lula venceu porque conseguiu ampliar sua votação em grandes cidades como São Paulo, Rio de Janeiro, Belo Horizonte e Salvador. A diferença registrada nessas cidades soma 1,57 milhão de votos. No final da apuração em todo o País no segundo turno, Lula ficou 2,13 milhões de votos a frente de Bolsonaro.

Com os eleitores cada vez mais convictos de que ou eram Lula ou Bolsonaro, outros fatores, segundo os autores, contribuíram para o então presidente não se reeleger. Seu desempenho na pandemia, a inclinação do voto feminino pró-Lula e a adesão de liberais na reta final à candidatura petista estão entre os fatores. As pesquisas indicavam que havia na população brasileira um contingente ligeiramente maior dos que tinham medo de Bolsonaro continuar no cargo do que os que manifestavam o mesmo sentimento em relação à volta de Lula ao poder.

Disputa entre bolsonaristas e lulistas transborda para o cotidiano

O livro cita como exemplo da polarização o registro de que havia intolerância em relação a aceitar em sua família um apoiador do candidato adversário. Diante da pergunta ‘você aceitaria ver sua filha casada com um apoiador do adversário’ veio a resposta: em junho de 2022, um em cada três entrevistados disse que se sentiria infeliz ou muito infeliz se isso acontecesse. Na época 43% dos lulistas deram essa resposta; entre os bolsonaristas o percentual foi menor, 28%.

Há ainda um grande contingente, 54%, que relatou conhecer alguém que rompeu amizades ou laços de família por conta de divergências eleitorais. Em junho de 2023, o ressentimento ainda se fazia presente. Entre os que admitiram ter perdido amigo por conta do voto 75% disseram não sentir qualquer arrependimento disso.

Usando mais relatos de casos notórios do que dados de pesquisa, o livro destaca situações em que o transbordamento das diferenças políticas deixaram rastro: a professora que foi demitida da escola de São Paulo porque usou pronome neutro numa apresentação; o abaixo-assinado que tentou tirar a advogada de direita Janaína Paschoal da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo; o deputado bolsonarista que conseguiu vetar uso de livro no vestibular em Goiás.

“A polarização não é ruim per si, faz parte da democracia haver divergências, mas hoje tem gente brigando até pelo chocolate BIS”, comenta Traumann, que só não incluiu o caso no livro porque veio a público quando o texto já estava liberado para impressão.

Embora exponham um cenário de nervos à flor da pele entre os brasileiros, os autores não são pessimistas. Alertam que a eleição de Lula não pacificou os ânimos. Mas na parte sugerem que é possível “descalcificar” a sociedade e apontam alguns caminhos. Admitem, entretanto, que vai levar tempo. “Num prazo curto a descalcificação não ocorrerá. Em 2026 não havendo nem Lula nem Bolsonaro na disputa, os candidatos dos dois grupos ainda manterão as divergências”, diz Traumann.

Para superar isso, como dizem no livro, a responsabilidade terá que ser coletiva: “Se o presidente, ministros do STF, governadores, senadores, deputados e jornalistas têm uma responsabilidade política de ao menos tentar atenuar os efeitos da polarização afetiva, o compromisso individual do cidadão é aprender a conviver com as diferenças”.

BRASÍLIA - Felipe Nunes e Thomas Traumann cogitavam fazer uma autópsia da eleição de 2022. O primeiro, cientista político e fundador do Instituto Quaest, o segundo, jornalista e ex-chefe da Secretaria de Comunicação do governo Dilma Rousseff. Os ataques extremistas de 8 de janeiro fizeram a dupla reajustar o plano original. O que era para ser um livro sobre o que se passou na disputa eleitoral em que se engalfinharam petistas e bolsonaristas virou um retrato do que foi o confronto, mas também do Brasil que saiu dele.

Para os dois, neste 2023 vivemos em Lulanaro, um País onde a polarização ultrapassou a arena eleitoral. Invadiu o almoço em família, as salas de aulas, as conversas de bar e até as escolhas sobre o que comprar ou deixar de comprar. A nação que resultou do pleito de 2022 foi batizada por eles a partir da junção dos nomes dos dois adversários: o petista Luiz Inácio Lula da Silva e o ex-presidente Jair Bolsonaro.

O primeiro debate para presidente da República no 2º turno das Eleições 2022 em que Bolsonaro e Lula se enfrentaram em 16 de outubro de 2022 Foto: WERTHER SANTANA / ESTADAO

“Biografia do Abismo, como a polarização divide famílias, desafia empresas e compromete o futuro do Brasil” tem 240 páginas e uma coleção de dados e gráficos sobre as preferências, não-preferências dos eleitores, mas também seus ódios e amores antes, durante e depois da disputa presidencial.

Luiz Inácio Lula da Silva, candidato eleito à Presidência da República pelo PT no segundo turno das eleições. Ato em 30 de outubro de 2022 Foto: Daniel Teixeira / Estadão

“Quando veio o 8 de janeiro estava claro que a eleição não terminou”, explica Traumann. A principal fonte do livro é o banco de dados da Quaest com 98,8 mil entrevistas realizadas em 27 edições ao longo de 2021 e 2022, além do material coletado em 150 grupos de discussão com eleitores durante a campanha. Ao acervo foram acrescidas pesquisas mais recentes realizadas este ano, já com o País sob comando da gestão petista.

O livro principia pegando emprestado a figura cunhada pelo economista Edmar Bacha na década de 1970. Para falar do Brasil marcado pela desigualdade social e também produtor de riquezas, ele criou o termo Belíndia, a nação que ora se parecia com a pobreza encontrada na época na Índia, ora gerava riquezas e renda compatível com a Bélgica. Assim como na figura de Bacha, Nunes e Traumann vêem Lulanaro, o País ainda desigual e, agora, rachado entre os apoiadores de Lula e Bolsonaro.

O texto do cientista político e do jornalista propõe ir além da já conhecida polarização que, como aqui, também tem marcado o mundo político lá fora. Para isso, pegam emprestado o conceito da calcificação, descrito por pesquisadores norte-americanos que analisaram os efeitos duradouros da disputa presidencial nos Estados Unidos pós-Donald Trump.

Calcificação na política, traduzem Nunes e Traumann, quer dizer que “as pessoas ficam mais firmes no lugar e é mais difícil se afastarem de suas predisposições”. “A calcificação significa menos disposição de desertar do seu grupo, romper com seu candidato a presidente ou até votar no partido oposto. Há, portanto, menos chances de eventos novos e até dramáticos mudarem as escolhas das pessoas nas urnas”, escrevem. A polarização é tamanha que as divergências se consolidam e tornam difícil o eleitor mudar de opinião e de voto.

Sobre o abismo com o qual nos defrontamos nas eleições e depois dela, os autores relatam que essa tendência de não mudar de lado e, mais do que isso, não aceitar o outro, ultrapassou as eleições. “A disputa política deixou de ser apenas um ato eleitoral e passou a ser um ato identitário, presente no cotidiano do consumo, do estilo de vida, hábitos e escolhas. A disputa eleitoral transbordou para o cotidiano”.

Para comprovar sua tese, citam números. O primeiro deles é o que chamam de índice de “polarização afetiva”. Ele é calculado a partir das manifestações de entrevistados que, numa escala de 0 a 10, são classificados segundo gostar, desgostar e até odiar um ou outro candidato. Quanto mais alto o índice maior é a manifestação de intolerância do eleitor com o adversário de seu candidato preferido.

Um gráfico com escala ajustada expõe que em 2022 essa polarização dos afetos alcançou seu pico.

Em 2002, quando Lula disputou com José Serra a presidência e se elegeu pela primeira vez, o índice de polarização ficou em 4,36. Seguiu nesse patamar com diminutas oscilações até 2014, quando chegou a 4,42 na disputa entre Dilma Rousseff e Aécio Neves. Em 2018, a taxa subiu para 5,61 no confronto entre Bolsonaro e Fernando Haddad. No Lula x Bolsonaro de 2022, bateu em 6,92 pontos.

“Quando a polarização vira uma relação de afeto, o adversário passa a ser seu inimigo, uma ameaça à própria existência do grupo, um mal a ser destruído”, sustentam os autores.

Dividido em sete capítulos, o livro mapeia como os eleitores foram indicando estar cada vez mais enraizados em suas bolhas, como o então presidente Bolsonaro cultivou uma nova comunicação política pelas redes sociais, como acabou perdendo votos na disputa com o oponente petista.

O que levou a derrota de Bolsonaro em 2022

No livro, Nunes e Traumann reforçam que atribuir a derrota do ex-presidente nas eleições do ano passado ao voto dos nordestinos e dos beneficiários do Bolsa Família é uma simplificação. Segundo eles, Lula venceu porque conseguiu ampliar sua votação em grandes cidades como São Paulo, Rio de Janeiro, Belo Horizonte e Salvador. A diferença registrada nessas cidades soma 1,57 milhão de votos. No final da apuração em todo o País no segundo turno, Lula ficou 2,13 milhões de votos a frente de Bolsonaro.

Com os eleitores cada vez mais convictos de que ou eram Lula ou Bolsonaro, outros fatores, segundo os autores, contribuíram para o então presidente não se reeleger. Seu desempenho na pandemia, a inclinação do voto feminino pró-Lula e a adesão de liberais na reta final à candidatura petista estão entre os fatores. As pesquisas indicavam que havia na população brasileira um contingente ligeiramente maior dos que tinham medo de Bolsonaro continuar no cargo do que os que manifestavam o mesmo sentimento em relação à volta de Lula ao poder.

Disputa entre bolsonaristas e lulistas transborda para o cotidiano

O livro cita como exemplo da polarização o registro de que havia intolerância em relação a aceitar em sua família um apoiador do candidato adversário. Diante da pergunta ‘você aceitaria ver sua filha casada com um apoiador do adversário’ veio a resposta: em junho de 2022, um em cada três entrevistados disse que se sentiria infeliz ou muito infeliz se isso acontecesse. Na época 43% dos lulistas deram essa resposta; entre os bolsonaristas o percentual foi menor, 28%.

Há ainda um grande contingente, 54%, que relatou conhecer alguém que rompeu amizades ou laços de família por conta de divergências eleitorais. Em junho de 2023, o ressentimento ainda se fazia presente. Entre os que admitiram ter perdido amigo por conta do voto 75% disseram não sentir qualquer arrependimento disso.

Usando mais relatos de casos notórios do que dados de pesquisa, o livro destaca situações em que o transbordamento das diferenças políticas deixaram rastro: a professora que foi demitida da escola de São Paulo porque usou pronome neutro numa apresentação; o abaixo-assinado que tentou tirar a advogada de direita Janaína Paschoal da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo; o deputado bolsonarista que conseguiu vetar uso de livro no vestibular em Goiás.

“A polarização não é ruim per si, faz parte da democracia haver divergências, mas hoje tem gente brigando até pelo chocolate BIS”, comenta Traumann, que só não incluiu o caso no livro porque veio a público quando o texto já estava liberado para impressão.

Embora exponham um cenário de nervos à flor da pele entre os brasileiros, os autores não são pessimistas. Alertam que a eleição de Lula não pacificou os ânimos. Mas na parte sugerem que é possível “descalcificar” a sociedade e apontam alguns caminhos. Admitem, entretanto, que vai levar tempo. “Num prazo curto a descalcificação não ocorrerá. Em 2026 não havendo nem Lula nem Bolsonaro na disputa, os candidatos dos dois grupos ainda manterão as divergências”, diz Traumann.

Para superar isso, como dizem no livro, a responsabilidade terá que ser coletiva: “Se o presidente, ministros do STF, governadores, senadores, deputados e jornalistas têm uma responsabilidade política de ao menos tentar atenuar os efeitos da polarização afetiva, o compromisso individual do cidadão é aprender a conviver com as diferenças”.

BRASÍLIA - Felipe Nunes e Thomas Traumann cogitavam fazer uma autópsia da eleição de 2022. O primeiro, cientista político e fundador do Instituto Quaest, o segundo, jornalista e ex-chefe da Secretaria de Comunicação do governo Dilma Rousseff. Os ataques extremistas de 8 de janeiro fizeram a dupla reajustar o plano original. O que era para ser um livro sobre o que se passou na disputa eleitoral em que se engalfinharam petistas e bolsonaristas virou um retrato do que foi o confronto, mas também do Brasil que saiu dele.

Para os dois, neste 2023 vivemos em Lulanaro, um País onde a polarização ultrapassou a arena eleitoral. Invadiu o almoço em família, as salas de aulas, as conversas de bar e até as escolhas sobre o que comprar ou deixar de comprar. A nação que resultou do pleito de 2022 foi batizada por eles a partir da junção dos nomes dos dois adversários: o petista Luiz Inácio Lula da Silva e o ex-presidente Jair Bolsonaro.

O primeiro debate para presidente da República no 2º turno das Eleições 2022 em que Bolsonaro e Lula se enfrentaram em 16 de outubro de 2022 Foto: WERTHER SANTANA / ESTADAO

“Biografia do Abismo, como a polarização divide famílias, desafia empresas e compromete o futuro do Brasil” tem 240 páginas e uma coleção de dados e gráficos sobre as preferências, não-preferências dos eleitores, mas também seus ódios e amores antes, durante e depois da disputa presidencial.

Luiz Inácio Lula da Silva, candidato eleito à Presidência da República pelo PT no segundo turno das eleições. Ato em 30 de outubro de 2022 Foto: Daniel Teixeira / Estadão

“Quando veio o 8 de janeiro estava claro que a eleição não terminou”, explica Traumann. A principal fonte do livro é o banco de dados da Quaest com 98,8 mil entrevistas realizadas em 27 edições ao longo de 2021 e 2022, além do material coletado em 150 grupos de discussão com eleitores durante a campanha. Ao acervo foram acrescidas pesquisas mais recentes realizadas este ano, já com o País sob comando da gestão petista.

O livro principia pegando emprestado a figura cunhada pelo economista Edmar Bacha na década de 1970. Para falar do Brasil marcado pela desigualdade social e também produtor de riquezas, ele criou o termo Belíndia, a nação que ora se parecia com a pobreza encontrada na época na Índia, ora gerava riquezas e renda compatível com a Bélgica. Assim como na figura de Bacha, Nunes e Traumann vêem Lulanaro, o País ainda desigual e, agora, rachado entre os apoiadores de Lula e Bolsonaro.

O texto do cientista político e do jornalista propõe ir além da já conhecida polarização que, como aqui, também tem marcado o mundo político lá fora. Para isso, pegam emprestado o conceito da calcificação, descrito por pesquisadores norte-americanos que analisaram os efeitos duradouros da disputa presidencial nos Estados Unidos pós-Donald Trump.

Calcificação na política, traduzem Nunes e Traumann, quer dizer que “as pessoas ficam mais firmes no lugar e é mais difícil se afastarem de suas predisposições”. “A calcificação significa menos disposição de desertar do seu grupo, romper com seu candidato a presidente ou até votar no partido oposto. Há, portanto, menos chances de eventos novos e até dramáticos mudarem as escolhas das pessoas nas urnas”, escrevem. A polarização é tamanha que as divergências se consolidam e tornam difícil o eleitor mudar de opinião e de voto.

Sobre o abismo com o qual nos defrontamos nas eleições e depois dela, os autores relatam que essa tendência de não mudar de lado e, mais do que isso, não aceitar o outro, ultrapassou as eleições. “A disputa política deixou de ser apenas um ato eleitoral e passou a ser um ato identitário, presente no cotidiano do consumo, do estilo de vida, hábitos e escolhas. A disputa eleitoral transbordou para o cotidiano”.

Para comprovar sua tese, citam números. O primeiro deles é o que chamam de índice de “polarização afetiva”. Ele é calculado a partir das manifestações de entrevistados que, numa escala de 0 a 10, são classificados segundo gostar, desgostar e até odiar um ou outro candidato. Quanto mais alto o índice maior é a manifestação de intolerância do eleitor com o adversário de seu candidato preferido.

Um gráfico com escala ajustada expõe que em 2022 essa polarização dos afetos alcançou seu pico.

Em 2002, quando Lula disputou com José Serra a presidência e se elegeu pela primeira vez, o índice de polarização ficou em 4,36. Seguiu nesse patamar com diminutas oscilações até 2014, quando chegou a 4,42 na disputa entre Dilma Rousseff e Aécio Neves. Em 2018, a taxa subiu para 5,61 no confronto entre Bolsonaro e Fernando Haddad. No Lula x Bolsonaro de 2022, bateu em 6,92 pontos.

“Quando a polarização vira uma relação de afeto, o adversário passa a ser seu inimigo, uma ameaça à própria existência do grupo, um mal a ser destruído”, sustentam os autores.

Dividido em sete capítulos, o livro mapeia como os eleitores foram indicando estar cada vez mais enraizados em suas bolhas, como o então presidente Bolsonaro cultivou uma nova comunicação política pelas redes sociais, como acabou perdendo votos na disputa com o oponente petista.

O que levou a derrota de Bolsonaro em 2022

No livro, Nunes e Traumann reforçam que atribuir a derrota do ex-presidente nas eleições do ano passado ao voto dos nordestinos e dos beneficiários do Bolsa Família é uma simplificação. Segundo eles, Lula venceu porque conseguiu ampliar sua votação em grandes cidades como São Paulo, Rio de Janeiro, Belo Horizonte e Salvador. A diferença registrada nessas cidades soma 1,57 milhão de votos. No final da apuração em todo o País no segundo turno, Lula ficou 2,13 milhões de votos a frente de Bolsonaro.

Com os eleitores cada vez mais convictos de que ou eram Lula ou Bolsonaro, outros fatores, segundo os autores, contribuíram para o então presidente não se reeleger. Seu desempenho na pandemia, a inclinação do voto feminino pró-Lula e a adesão de liberais na reta final à candidatura petista estão entre os fatores. As pesquisas indicavam que havia na população brasileira um contingente ligeiramente maior dos que tinham medo de Bolsonaro continuar no cargo do que os que manifestavam o mesmo sentimento em relação à volta de Lula ao poder.

Disputa entre bolsonaristas e lulistas transborda para o cotidiano

O livro cita como exemplo da polarização o registro de que havia intolerância em relação a aceitar em sua família um apoiador do candidato adversário. Diante da pergunta ‘você aceitaria ver sua filha casada com um apoiador do adversário’ veio a resposta: em junho de 2022, um em cada três entrevistados disse que se sentiria infeliz ou muito infeliz se isso acontecesse. Na época 43% dos lulistas deram essa resposta; entre os bolsonaristas o percentual foi menor, 28%.

Há ainda um grande contingente, 54%, que relatou conhecer alguém que rompeu amizades ou laços de família por conta de divergências eleitorais. Em junho de 2023, o ressentimento ainda se fazia presente. Entre os que admitiram ter perdido amigo por conta do voto 75% disseram não sentir qualquer arrependimento disso.

Usando mais relatos de casos notórios do que dados de pesquisa, o livro destaca situações em que o transbordamento das diferenças políticas deixaram rastro: a professora que foi demitida da escola de São Paulo porque usou pronome neutro numa apresentação; o abaixo-assinado que tentou tirar a advogada de direita Janaína Paschoal da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo; o deputado bolsonarista que conseguiu vetar uso de livro no vestibular em Goiás.

“A polarização não é ruim per si, faz parte da democracia haver divergências, mas hoje tem gente brigando até pelo chocolate BIS”, comenta Traumann, que só não incluiu o caso no livro porque veio a público quando o texto já estava liberado para impressão.

Embora exponham um cenário de nervos à flor da pele entre os brasileiros, os autores não são pessimistas. Alertam que a eleição de Lula não pacificou os ânimos. Mas na parte sugerem que é possível “descalcificar” a sociedade e apontam alguns caminhos. Admitem, entretanto, que vai levar tempo. “Num prazo curto a descalcificação não ocorrerá. Em 2026 não havendo nem Lula nem Bolsonaro na disputa, os candidatos dos dois grupos ainda manterão as divergências”, diz Traumann.

Para superar isso, como dizem no livro, a responsabilidade terá que ser coletiva: “Se o presidente, ministros do STF, governadores, senadores, deputados e jornalistas têm uma responsabilidade política de ao menos tentar atenuar os efeitos da polarização afetiva, o compromisso individual do cidadão é aprender a conviver com as diferenças”.

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