O Censo de 2022 terá início em agosto, uma megaoperação que foi adiada por dois anos, em função da pandemia e sob a alegação do governo federal de que não havia orçamento disponível.
O Blog Política&Saúde conversou com a economista Wasmália Socorro Barata Bivar, que presidiu o IBGE entre 2011 e 2016, e já esteve à frente da Comissão de Estatística da Organização das Nações Unidas (ONU).
Professora da PUC-Rio e da Escola Nacional de Ciências Estatísticas (ENCE), pesquisadora titular aposentada do IBGE, onde iniciou carreira em 1986, ela acompanhou três censos - 1991, 2000 e 2010 - e conhece como ninguém a importância, as dificuldades e a história dos estudos populacionais no Brasil.
Wasmália alerta que a divulgação está atrasada e afirma que o corte de perguntas no questionário "foi uma enorme ingerência", mas acredita na capacidade do corpo técnico do IBGE de realizar o censo este ano.
A seguir, confira os principais trechos da entrevista:
Qual a importância do censo de 2022 para o Brasil?
Medir quantos somos e onde estamos é fundamental para o desenho e implementação de políticas públicas, para pesquisas de mercado e eleitorais. População é base para indicadores imprescindíveis, como na pandemia, no planejamento da vacinação por faixas etárias. Características dos domicílios permitem identificar quem são os cidadãos excluídos de direitos básicos, de acesso a saúde, educação, saneamento, água, energia elétrica.
O recenseamento demográfico é insubstituível?
Sim, ainda mais na ausência de registros administrativos que cubram toda a população. Até mesmo nos nascimentos e mortes, ainda há sub-registros no Brasil. Países menores e desenvolvidos, que investiram por décadas em registros, com regramento das informações públicas e aparato interinstitucional, conseguiram substituir a coleta, não realizam mais o censo. Aqui, ainda não concretizamos a padronização dos registros das áreas sociais.
Há temas no Brasil que não seriam investigados, se não fosse o censo?
O censo é de uma riqueza fantástica, não só pela quantidade de dados que gera, mas porque localiza no espaço os temas que investiga. A população brasileira é dinâmica, ainda não consolidamos a ocupação do nosso território. Municípios menores passam a ter informações que são possíveis apenas através do censo, o que determina o volume de parte de recursos públicos que receberão. O censo também descreve a desigualdade interna das grandes cidades, para isso a informação média não é suficiente. E dá aos demógrafos os dados que permitirão todas as estimativas populacionais para os próximos dez anos.
Já se passaram 12 anos desde o último censo, de 2010. O fato de o censo não ter sido realizado em 2020 traz prejuízos?
Quando não se tem remédio, remediado está. A realidade da pandemia em 2020 e 2021 nos deixou incapazes de realizar um censo de qualidade, seria extremamente difícil para o IBGE acessar os domicílios. Os próprios agentes censitários estariam com a saúde em risco ou seriam vetores da transmissão do vírus. Tecnicamente, o adiamento foi uma decisão necessária, o mesmo ocorreu em outros países que tinham o censo programado, como a Inglaterra.
O governo federal promoveu o corte de muitas questões do censo, alegando falta de orçamento. Em relação ao de 2010, foram excluídas perguntas tanto do questionário básico, para toda a população, quanto do instrumento detalhado, aplicado na amostra de domicílios. Como a senhora avalia esses cortes?
A retirada de perguntas do questionário foi uma enorme ingerência. Cortaram sem critérios de relevância, sem conhecer a história, sem deixar que a equipe qualificada do IBGE participasse de forma ativa da discussão. Não houve trabalho técnico na decisão sobre os cortes. Foi apenas para enquadrar em um orçamento que já era absolutamente inadequado.
As perguntas retiradas farão falta? Poderia citar algumas?
Foi eliminada, por exemplo, a questão sobre quem paga aluguel, fundamental para estimar o déficit habitacional do Brasil. Outra questão excluída, que vinha sendo estudada pelo IBGE há muito tempo, permitia conhecer os fluxos migratórios dentro do País. Por pouco, não saiu uma pergunta, felizmente ela voltou na última hora, sobre o tempo de deslocamento da casa até o trabalho ou estudo. Indivíduos que ficam duas, três horas no trajeto, terão problemas de saúde, de produtividade, veja que questão relevante.
E qual foi o critério para inclusão de novas perguntas?
Saíram cortando e acrescentando, isso é o que me deixa mais intrigada. Entraram perguntas sem relevância, frente às que foram cortadas. Será perguntado no censo " que tipo de relação conjugal você tem?". Muito estranho, qual a relevância disso? A equipe técnica do IBGE sugeriu não incluir esse item da nupcialidade, mas entrou, enquanto saiu a questão sobre o aluguel. A inclusão de uma pergunta é resultado de trabalho de equipes temáticas do IBGE, que discutiram por mais de 10 anos com instituições, que trazem suas demandas justificadas.
Decisão recente da Justiça Federal determinou a inclusão de uma pergunta sobre orientação sexual e identidade de gênero. O IBGE ameaçou adiar novamente o censo, caso tenha que incluí-la...
Essa questão não foi incluída em censos anteriores. É uma reivindicação absolutamente legítima, mas de difícil viabilização em tão pouco tempo até o início do censo. Os agentes não foram treinados para lidar com questões como essa, que são muito sensíveis. Sem estudos prévios de como proceder, sem capacitação específica para esta finalidade, o que requer tempo, os recenseadores terão dificuldades. Podem, na hora que for feita a pergunta, esta, mas outras igualmente sensíveis que viessem a ser incluídas de última hora, até desencadear constrangimentos ou conflitos entre membros do domicílio.
O fato levantou suspeitas de que o veto tenha motivação ideológica por parte do governo federal.
Foram mantidas questões sobre raça, cor, populações indígenas, o que me leva a crer que a orientação ideológica não tenha sido o principal motivo. Houve, com certeza, inexperiência, de quem nunca conduziu esse tipo de operação, de quem não entende que o questionário deve ser a representação, não de dirigentes ou políticos, mas de demandas da sociedade, que são colocadas ao IBGE. Nem todas as demandas são possíveis de serem atendidas especificamente no censo, o que exige diálogo e argumentação técnica.
O censo vai a campo em ano eleitoral conturbado. A senhora não vê riscos de contaminação do censo pelo clima das eleições?
O censo de 2010 também aconteceu em ano de eleição, essa experiência já tivemos. Não existia uma polarização tão forte, como hoje. Mas os agentes estão bem orientados, não se fala de política, não se fala de religião, nem de assuntos fora do questionário, capazes de melindrar os respondentes. Os resultados não serão usados politicamente nas eleições pois saem depois de novembro, já que o IBGE, após a coleta, precisa avaliar a completude dos dados, fazer a crítica dessa massa de informações. Minha preocupação é que possa surgir, vinda de algum grupo, uma visão delirante, de que o censo é um levantamento do demônio, que é algo para tomar conta das nossas vidas, que vai ser uma espécie de "big brother" nacional. Temos que passar à população a importância do censo, como algo que pode retornar para ela mesma, em termos de benefícios sociais.
O desaparecimento de Bruno Pereira e Dom Phillips na Amazônia, e os 22 mortos na operação policial na Vila Cruzeiro, no Rio de Janeiro, expõem áreas de conflitos. Como o censo lida com situações feito essas?
Isso é algo que o IBGE aprendeu. São recrutadas pessoas das próprias comunidades para fazer a coleta do censo, são acionados aqueles que trabalham nessas regiões, que sabem com quem falar. No caso das áreas remotas, são equipes do próprio IBGE, mas podem ser contratados guias locais, eles orientam como chegar. Dentro do IBGE, técnicos que estão se aposentando passam esse legado aos novos, o que não está escrito em nenhum manual metodológico. A própria escolha do período do censo foi baseada nas condições climáticas e ambientais necessárias para alcançar determinadas áreas. Em 2010, para chegar ao povo Yanomami, o IBGE usou um mecanismo que, uma vez por dia, lançava um sinal via satélite e era possível, assim, precisar a localização da equipe. Agora, há mais recursos tecnológicos, mas arranjos devem ser feitos a cada caso, usando também o conhecimento das comunidades e dos habitantes locais, o que no Brasil é fascinante.
Onde é mais difícil o censo chegar?
Não é nas áreas de conflitos e locais no Interior, a maior dificuldade é com a classe média, é nos grandes municípios. Não é fácil acessar a população que muitas vezes não está em casa, trabalha ou estuda o dia todo. E há muitos que não querem receber o censo, inclusive autoridades que dão carteirada, "não vou dar informação e pronto". É preciso saber lidar com essas situações. Para driblar receios quanto à segurança, em condomínios, o IBGE pode deixar uma carta antes, com foto do recenseador. Mas se não há ampla divulgação prévia, se as pessoas não ficam sabendo sobre o censo, tudo fica mais complicado ainda.
Faltam menos de dois meses para o início do censo, não há nenhuma campanha em curso...
Já deveríamos ter uma mobilização enorme, um chamado público em todos os meios, nas redes sociais, o que depende de recursos de divulgação. Este tópico teve cortes extremos no orçamento atual, isso nos preocupa muito. Fazer o censo durante uma pandemia requer ainda dizer para a população as providências sanitárias que serão tomadas para a segurança. As duas últimas direções do IBGE, a atual e a anterior, têm grande dificuldade de comunicação, entraram sem saber se comunicar com a área técnica, e não souberam se comunicar com as Instituições e com a sociedade.
Cortes no orçamento, pandemia, ano de eleição... Mesmo assim a senhora é otimista quanto ao censo de 2022?
Se a sociedade brasileira apoiar, ainda que uma parte esteja em pé de guerra, poderá ser feito o melhor trabalho possível. Ponho muita fé na identidade que os servidores e técnicos do IBGE levam dentro de si. Eles exalam força e vontade de fazer o censo acontecer, tenho uma enorme confiança nisso.