O que este texto oferece não é uma premonição, muito menos uma previsão. Não afirmo que estejamos condenados a grandes desastres. Meu intuito é apenas lembrar que desastres políticos, em qualquer de suas formas, afetam de maneira negativa o desempenho da economia, envenenam a arena do debate público e, no limite, podem levar a conflitos sociais devastadores. Penso que esse tipo de reflexão ganhou relevância nos dias que correm tanto por razões propriamente políticas como em razão de certas dificuldades econômicas agudas a que o Brasil e vários outros países estão expostos. Refiro-me aqui ao que os economistas denominam ”armadilha do crescimento médio”, conceito explicado a seguir.
Suponhamos que a renda anual por habitante brasileira esteja na casa dos R$ 7,5 mil. Crescendo a uma taxa anual média de 3%, levaremos 23 anos – uma geração inteira! – para dobrá-la e nos alçarmos ao patamar ainda medíocre de R$ 15 mil por ano por habitante. Sem esquecer que continuaremos com as mesmas carências educacionais, a mesma escassez de oportunidades, a mesma desigualdade social e, muito possivelmente, com a criminalidade geral e o crime organizado em acelerado crescimento, o mesmo pavoroso quadro no tocante ao saneamento básico e por aí afora. O Produto Interno Bruto (PIB) permanece quase estagnado, mas as mazelas não ficam esperando. Seguem em frente.
Deslanchar um processo de industrialização é, no início, relativamente fácil. Trata-se basicamente de incorporar uma legião de trabalhadores desprovidos de qualificação, antes dispersos num vasto interior rural ou em pequenas coletividades ao mercado urbano, e em implantar um embrião de parque industrial, num nível tecnológico modesto, por meio de patentes adquiridas no exterior. A certa altura, o crescimento estanca, e levará tempo para ser retomado. Estaremos, então, aprisionados na mencionada armadilha.
É oportuno ressaltar que, desde a Segunda Guerra Mundial, só 12 países conseguiram dar o salto do atraso para o seleto grupo dos países desenvolvidos, sendo que esses 12 abandonaram o modelo de economia “fechada”, dando forte impulso ao intercâmbio com o exterior; reformaram suas máquinas de Estado, tornando-as mais funcionais, e apoiaram com firmeza a economia de mercado. O oposto, como se vê, do que temos feito no Brasil desde pelo menos a Segunda Guerra Mundial.
Fiz referência a um prazo de 23 anos para dobrarmos nossa atual renda per capita. Pode ser mais, se nos mantivermos vulneráveis a frequentes desastres políticos. Daí a pergunta: quantos desastres cabem em duas décadas?
Esse é o fio condutor desse artigo, no qual farei uma recapitulação esquemática do período republicano, remontando a 1889, a fim de ressaltar que nossa vida política tem sido muito mais instável e tumultuária do que em geral se supõe. Antes, porém, entendamo-nos quanto ao conceito de desastre político, que me servirá como base neste artigo. Num país democrático, a ruptura das engrenagens constitucionais é em si um desastre. Pode acontecer da noite para o dia, deixando sequelas malignas em sua esteira.
Mas a ruptura “da noite para o dia” é uma ilusão. O breakdown (quebra, ruptura) da estrutura constitucional é sempre um golpe de Estado, cujas causas com certeza vinham fermentando desde muito antes. Entre suas causas incluem-se radicalismos partidários desarrazoados, fanatismos ideológicos, a recusa de um líder ou partido em reconhecer a legitimidade de resultados eleitorais e, principalmente, o populismo, fenômeno frequente na América Latina, que se configura quando um político resolve ignorar os mecanismos constitucionais e governar “por cima deles”, manipulando massas carentes.
A primeira República – 1889-1930
O amanhecer da República caracterizou-se pelo recurso à força em dois importantes episódios. No Rio de Janeiro, a revolta da Armada (Marinha de Guerra). No Rio Grande do Sul, de 1893 a 1895, a sangrentíssima guerra civil entre os maragatos, liderados por Gaspar da Silveira Martins, saudosistas da monarquia, e os gaviões, liderados pelo caudilho Júlio de Castilhos, que controlava o governo estadual. Devotos fiéis do positivismo autoritário de Augusto Comte, os gaviões rejeitavam a Constituição liberal e federalista de 1891, ansiando pela implantação de uma “ditadura Republicana”.
Transcorrido o ordeiro quatriênio de Prudente de Moraes (1894-1898), coube a Campos Salles (1898-1902) transformar a Primeira República numa triste caricatura. Paulista de Campinas, Campos Salles percebia os problemas brasileiros por uma ótica estritamente financeira.
No importante volume “Os Presidentes do Brasil”, editado pela universidade Estácio de Sá, seu organizador, o professor Fábio Koifam, cita diversas afirmações dele, como esta: “Muito terá feito pela República o governo que não fizer outra coisa senão cuidar das finanças”.
Campos Salles tinha diante de si o problema, difícil e real, de renegociar nossa dívida com a Inglaterra. Entendia que a condição sine qua non para tanto era impedir a qualquer custo a ingerência dos Estados no governo federal. Como fazê-lo? A solução alvitrada por Campos Salles foi a chamada “política dos governadores”, que mais apropriadamente se deveria denominar “ditadura dos governadores”. Controlando com mão de ferro a Comissão de Verificação de Poderes do Congresso, instruiu-a a não reconhecer a eleição de candidatos que fizessem oposição aos governadores em seus respectivos Estados, implantando, assim, sem disparar um tiro, um regime de partido único em todo o País – os “partidos republicanos” -, exceção feita, como é óbvio, ao Rio Grande do Sul, onde “gaviões” e “maragatos” jamais aceitariam tal expediente.
O retrocesso político foi colossal, inclusive no tocante ao número de cidadãos que compareciam às urnas nas eleições presidenciais, que caiu a níveis irrisórios e só voltaria a atingir a cifra de 5% da população total na eleição de 1930. Em cada Estado, o controle das mentes e corações passou a ser ferrenho, de tal forma que cada Estado se lançava como um bloco a favor de seu candidato, o mesmo acontecendo nos Estados que apoiavam candidatos adversários. Excetuado o Marechal Hermes da Fonseca, que ficou um pouco abaixo de 60%, todos os demais candidatos obtiveram mais de 80% da votação total do País. Ou seja, cada um obtinha a quase totalidade dos votos nos Estados que lhe eram favoráveis e quase zero nos de seus adversários, nos quais a mesma coisa acontecia.
Dentro desse quadro, a sucessão presidencial evoluiu conforme o figurino do “café-com-leite”, com São Paulo e Minas Gerais revezando-se no Catete. Fácil, pois, compreender que variadas oposições armadas começassem a se formar; oposições genericamente designadas como “tenentistas”, que combatiam o vigente arranjo oligárquico desfraldando a bandeira do “saneamento do processo eleitoral”.
Teve também aí início a Coluna Prestes, tentativa de sublevar o interior do País, sob a liderança do capitão Luís Carlos Prestes. Não por acaso, o mineiro Arthur Bernardes (1922-1926) ficou sem alternativa a não ser manter o estado de sítio durante quase todo o seu mandato.
O ciclo getulista – 1930-1964
A não observância do acordo “café-com-leite” pelo presidente Washington Luís (1926-1930) foi o pretexto para a chamada Revolução de Trinta, um movimento político organizado para impedir a posse do paulista Júlio Prestes, indicado para presidir o País no período 1931-1934. Argumentou-se, à época, que tal movimento seria expressão da revolta dos Estados não produtores de café contra o excessivo favorecimento dos presidentes paulistas à cafeicultura de seu Estado. Um argumento de duvidosa consistência, já se vê.
A superprodução do produto no Brasil, o surgimento de forte concorrência no mercado internacional e a crise financeira de 1929 haviam arrasado a lavoura cafeeira paulista, que começou a pleitear subsídios federais desde o Convênio de Taubaté, de 1906. O suposto favorecimento dos presidentes à cafeicultura consistiu basicamente na aquisição e queima de estoques, com o objetivo de restringir a oferta do produto no mercado internacional, visando sustentar o nível de renda do setor, o que, indiretamente, significava proteger a economia do País como um todo.
Os três Estados que protagonizaram a derrubada de Washington Luís e Júlio Prestes, foram, em primeiro lugar, Minas Gerais, sob a liderança de Virgílio de Melo Franco, cujo interesse era político, reivindicando “a vez de Minas” no Catete. Segundo, o Rio Grande do Sul, onde Oswaldo Aranha atiçava Getúlio até com veemência, já indicando que caberia a Getúlio, como governador do Rio Grande, o papel de comandante militar da rebelião.
Lançado candidato à Presidência nas eleições programadas para 1º de março de 1930, tendo como candidato a vice João Pessoa, governador da Paraíba, fato é que Getúlio Vargas não via com bons olhos o golpe contra Washington Luís, mas não teve como tergiversar ante o assassinato de João Pessoa, favorável ao recurso às armas pela Aliança Liberal. Os “aliancistas” mais radicais trataram de emoldurar o assassinato de João Pessoa no quadro das desavenças nacionais, alguns até tentando atribuir responsabilidade por ele ao presidente Washington Luís – posição não compartilhada por Getúlio Vargas -, quando, na verdade, o crime teve como causa desavenças de natureza pessoal, muito mais que políticas, entre João Pessoa e seu desafeto (desafeto também político, isso é certo) João Dantas.
No Rio Grande, Getúlio granjeara uma expressiva reputação como moderado e pacificador, notadamente entre 1923-1925, quando ajudou a evitar um segundo confronto armado entre “gaviões” e “maragatos”. No Catete, Dr. Jekill não demorou a se metamorfosear em Mr. Hide. Começou a emitir sinais autoritários, inclusive inequívocas manifestações de simpatia pelo fascismo italiano, dando a entender que o futuro modelo político brasileiro haveria de ser de índole corporativista. Enganou-se quem esperava um breve abandono do arbítrio e a convocação de uma assembleia constituinte. Neste aspecto, o que se viu foi o oposto: a postergação por dois anos de tal medida, que só seria admitida graças à pressão da Revolução Constitucionalista de São Paulo.
Os anos seguintes seriam de desordem e crescente rejeição a Getúlio, não fosse a emergência de dois movimentos dispostos a empunhar armas e claramente orientados por ideologias totalitárias. De um lado, a ANL (Aliança Nacional Libertadora), dirigida por Luís Carlos Prestes, a essa altura já convertido ao comunismo (o PCB fora fundado em 1922). A chamada Intentona Comunista foi facilmente esmagada. Do outro lado, o Integralismo de Plínio Salgado (versão brasileira do fascismo italiano, consubstanciado na AIB - Aliança Integralista Brasileira).
O Integralismo tinha bases populares muito mais amplas, forçando Getúlio a exercitar ao máximo sua proverbial capacidade de protelar e tergiversar. O Integralismo só viria a ser derrotado no campo das armas em 1938, quando empreendeu um ataque direto ao palácio presidencial. Essas duas aventuras foram as bandejas que projetaram a popularidade de Getúlio para a estratosfera, pavimentando o caminho para seu real objetivo, que era a implantação de uma ditadura, que viria a ser o Estado Novo, instituído a 10 de novembro de 1937.
Iniciada na Europa a Segunda Guerra Mundial, havia que controlar as discórdias entre germanófilos e americanófilos que se delineavam dentro do governo. A opção por entrar na guerra em conjunto com os Aliados deveu-se basicamente a três fatores. Primeiro, a sedução financeira norte-americana, consubstanciada em três importantes projetos: a CSN (Companhia Siderúrgica Nacional, em Volta Redonda), a CVRD (Companhia do Vale do Rio Doce) e a Base Aérea de Natal. O segundo fator foi a insanidade de alemães e italianos, que retaliaram afundando embarcações brasileiras em nosso litoral nordeste. Terceiro, o surgimento de uma forte oposição interna, iniciado em 1943 com o Manifesto dos Mineiros, que quebrou de vez a censura. Esta era até então exercida com zelo pelo DIP (Departamento de Imprensa e Propaganda), réplica fiel de seu congênere nazista.
A participação militar do Brasil na Itália, através da Força Expedicionária Brasileira (FEB), embora modesta, também teve um efeito doméstico importante, uma vez que o retorno dos “pracinhas” inclinou de vez os pratos da balança para o lado democrático, cabendo aos generais Eurico Gaspar Dutra e Góis Monteiro comunicar a Getúlio que seu governo acabara.
Daquele ponto em diante, outubro de 1945, as rédeas do governo passariam às mãos de José Linhares, presidente do Supremo Tribunal Federal, que se incumbiria de coordenar o processo eleitoral para a eleição do próximo presidente e a convocação de uma assembleia constituinte para elaborar com presteza uma Constituição democrática. Assim se fez, Dutra foi eleito presidente e, já em fevereiro, o Brasil passava a ser regido pela Constituição liberal de 1946.
Origem do nacional-desenvolvimentismo
Contudo, o desfecho benfazejo relatado no parágrafo anterior trazia embutidos alguns fatores de desastre. O mais importante foi sem dúvida a inclinação do getulismo pelo modelo econômico conhecido como “nacional-desenvolvimentismo”. De fato, o ditador deposto e todo o seu séquito dito “progressista” ou “nacionalista”, de uma ponta a outra do espectro político, abraçou de corpo e alma tal ideologia nacional-desenvolvimentista, colimando fazer avançar a industrialização a qualquer preço, com base em investimentos públicos e empresas estatais e através da chamada ISIS (Industrialização Substitutiva de Importações).
Para se aquilatar os limites de tal opção, basta lembrar que o Estado brasileiro não era capaz de produzir os superávits significativos pressupostos na diretriz de uma quase exclusividade do poder público na hercúlea tarefa de impulsionar o crescimento. Segundo, o País não tinha como escapar aos estrangulamentos cambiais e de energia que o garroteavam no curto prazo, e nem acreditava na possibilidade de expandir num prazo razoável a produção agropecuária indispensável à sustentação da enorme massa de trabalhadores rurais que viria preencher as vagas de trabalho que iam se abrindo no Sudeste.
Não descabe lembrar que a alta tecnocracia – aí incluído o notável economista Celso Furtado, o sumo-sacerdote da deusa ISIS – ignorava que uma importante revolução pecuária já havia sido posta em marcha pelos fazendeiros do Triângulo Mineiro, que foram à Índia buscar exemplares dos gados zebu e nelore, logo aclimatados e utilizados em frutíferos cruzamentos – tudo isso contra a manifesta má vontade de Getúlio, diga-se de passagem.
O flerte de Getúlio com o populismo
Eurico Gaspar Dutra, candidato “pesado”, deveu a maior parte de sua votação a Getúlio, que tratara de enquadrar seu capital eleitoral em dois partidos que fundara simultaneamente: o PSD (Partido Social Democrático), para ser seu interlocutor junto aos fazendeiros, e o PTB, Partido Trabalhista Brasileiro, para cumprir o mesmo papel junto aos sindicatos e ao operariado urbano.
Neste ponto, é mister frisar que a República recorreu em diversas ocasiões a incríveis disparates de construção institucional. Um deles foi admitir candidaturas à vice-presidência desvinculadas do partido do cabeça de chapa, tontice que logo daria ensejo a graves embates. Tampouco se lembraram os constituintes de regulamentar a questão dos cargos aos quais um candidato poderia concorrer ao mesmo tempo.
Assim, nas primeiras eleições, Getúlio elegeu-se senador por dois Estados – Rio Grande e São Paulo – e para deputado federal em diversos outros. Não compareceu às sessões em nenhum deles, optando por um autoexílio no Rio Grande, de onde acompanhava por alto os fatos da política nacional.
Em 1949, ele recebeu em sua fazenda de São Borja seu amigo Samuel Wainer, fundador do jornal Última Hora e seu principal interlocutor na imprensa. A certa altura Wainer lhe perguntou: “E agora, presidente, o Sr pretende voltar à política?”, ao que Getúlio respondeu: “Sim, vou voltar, mas não como político, como líder de massas”.
Poucos formulariam com tal concisão uma senha para futuras incursões na seara populista. Do lado contrário, o jornalista Carlos Lacerda, um ex-comunista que chamou a si a liderança da ultradireita udenista, replicou em seu jornal Tribuna da Imprensa: “O Sr Getúlio Vargas não deve se candidatar. Candidato, não deve ser eleito. Eleito, tudo faremos para derrubá-lo”.
Ao retornar ao proscênio político no marco da Constituição de 1946, Getúlio era ainda o líder mais importante do País. O problema é que, àquela altura, o cenário doméstico já começara a metabolizar o onipresente veneno da guerra fria, formando-se dessa forma em todas as grandes cidades uma mentalidade política na qual se amalgamavam a contraposição entre getulistas e antigetulistas, antagonismos ideológicos e ódios pessoais de toda ordem.
Nos dois primeiros anos de seu segundo governo, Getúlio agiu com moderação, abstendo-se de levar à prática a ameaça contida em sua entrevista a Samuel Wainer. No terceiro ano, todavia, a questão salarial o empurraria de vez para o populismo. No Ministério do Trabalho, seu afilhado e amigo João Goulart (Jango) encampou a reinvindicação sindical de um aumento de 100% para o salário mínimo. A base aceitável pelo empresariado girava em torno de 40%. Não é difícil imaginar o aquecimento dos ânimos que essa diferença por si só seria capaz de engendrar.
Deu-se, entretanto, que, em agosto de 1954, sem o conhecimento ou qualquer tipo de autorização da parte de Getúlio, um de seus guarda-costas, Gregório Fortunato, trazido do Rio Grande do Sul, tomou a iniciativa de atentar contra a vida de Carlos Lacerda. Por volta da meia-noite, em frente ao prédio da rua Toneleros onde Lacerda residia, um de seus asseclas tentou pôr em prática o alucinado intento concebido por Fortunato. Lacerda foi atingido sem gravidade, mas outro disparo matou o Major Vaz, um oficial da aeronáutica que fazia a guarda de Carlos Lacerda em sua campanha para deputado federal.
A oficialidade da Aeronáutica, sempre mais simpática à UDN e a Lacerda que ao PSD e ao PTB de Getúlio, tomou as rédeas da Justiça em suas mãos, reunindo-se na chamada República do Galeão, de onde convocava, interrogava e chegava mesmo a prender suspeitos do crime. Desse ponto em diante, é fácil compreender como se chegaria ao 24 de agosto: o suicídio de Getúlio e a Carta Testamento, símbolos que desencadeariam uma violenta reação contra a UDN e projetariam o getulismo rumo ao futuro, alimentando-o por muitos anos mais.
Juscelino, Lott e o ‘golpe da legalidade’
Só um analista político dos mais argutos aceitaria a incumbência de esclarecer como um obscuro deputado do Rio Grande do Norte, ligado ao PSP (Partido Social Progressista) de Adhemar de Barros, conhecido por arroubos meio esquerdistas e por isso mesmo odiado pela LEC (Liga Eleitoral Católica) chegou à Presidência da República. Ninguém na plena posse de seus sentidos daria isso como possível. Mas aconteceu, e foi assim que João Café Filho se tornou candidato à Vice-Presidência. Getúlio, o cabeça de chapa, devotava-lhe o mais solene desprezo, a ponto de mal falar com ele.
Café Filho ascendeu por caminhos irrelevantes, e caiu por motivos da mesma ordem de grandeza, quando, assumindo a Presidência após o suicídio de Getúlio, envolveu-se no desatino de tentar impedir a posse de Juscelino Kubitschek, eleito a 3 de outubro de 1955.
Mais uma vez derrotada pela coalizão PSD-PTB, não havia hipótese de a UDN digerir a eleição de Juscelino para a presidência, menos ainda com João Goulart na vice. O partido de imediato entabulou “conversações”, com o evidente propósito de impedir a posse de JK, com o argumento, não previsto na Constituição, de que ele não atingira a maioria absoluta.
Como se não bastasse o céu carregado de nuvens escuras daqueles dias, no dia 31 de outubro veio a falecer o general Canrobert Pereira da Costa, oficial de grande prestígio, chefe do Estado Maior das Forças Armadas (EMFA). No sepultamento, presentes nomes de grande peso entre os comandos militares, o coronel Jurandir Bizarria Mamede inopinadamente tomou a palavra e exclamou que a eleição de JK fora uma “farsa eleitoral”. Testemunha do fato, o marechal Henrique Duffles Teixeira Lott, ministro da Guerra, oficial extremamente cioso da hierarquia militar, exigiu do presidente Café Filho a punição de Mamede.
Diante da recusa de Café Filho, Lott demitiu-se da pasta da Guerra, o que em si já era um grave sinal de crise. Sentindo o rápido aquecimento dos ânimos, Café Filho internou-se num hospital da Gávea, onde permaneceria por vários dias, passando a Presidência ao primeiro na linha sucessória, o respeitado deputado mineiro Carlos Luz, presidente da Câmara.
Surpreendentemente, Carlos Luz também não quis atender à exigência de Lott, que não vacilou em pôr tanques na rua, impedindo o retorno de Café Filho à Presidência e depondo também o deputado Carlos Luz. Esse episódio, pitorescamente denominado “golpe da legalidade”, exprimiu com absoluta clareza a disposição de Lott a assumir o papel de fiador da posse de Juscelino.
Homem de perfil moderado e apoiado pelos dois maiores partidos, Juscelino trafegou sem maiores solavancos entre os arrecifes de seu mandato, mas não conseguiu emplacar o Marechal Lott como seu sucessor. Em outubro de 1960, o destino, sempre à espreita, resolveu fazer mais uma das suas, facilitando a eleição para a presidência de um notório demagogo, o Sr. Jânio Quadros, lançado pelo pequeno PTN (Partido Trabalhista Nacional) e, envergonhadamente, pela UDN de Afonso Arinos e Carlos Lacerda.
Não podia dar certo, como de fato não deu. A invocação de “forças ocultas” que o estariam impedindo de governar era uma diáfana tentativa de autogolpe que, longe de encher as ruas com supostos seguidores que o carregariam nos ombros de volta ao Planalto, deixou-o a ver navios. Abria-se, então, a mais espinhosa das questões, a posse de João Goulart, legitimamente eleito para a vice, que, naquele momento, se encontrava em viagem oficial à China. Uma Junta Militar integrada posicionou-se de imediato contra a posse, fazendo saber a Jango que ele seria preso no preciso momento em que pisasse o solo brasileiro.
A contrafação parlamentarista de 1961
Mais uma vez, espessas nuvens encobriam o céu enquanto os meios político e militar buscavam uma fórmula que permitisse empossar Jango na presidência e ao mesmo tempo evitar que a Junta Militar se sentisse humilhada pela derrocada. O expediente encontrado, expresso no Ato Adicional número 1 à Constituição de 1946, foi uma contrafação de parlamentarismo, improvisada a toque de caixa.
O risco de uma guerra civil era sério, tendo em vista a ascendência de Leonel Brizola, cunhado de Jango e governador do Rio Grande, sobre a poderosa Brigada Militar de seu Estado. Brizola não aceitava o improviso parlamentarista tanto por razões doutrinárias – era, afinal, um fiel descendente do positivismo castilhista – como também, e quiçá mais importante, por entender que Jango seria apenas um figurante que por acaso receberia a faixa presidencial. Jango também não aceitava, mas dispunha-se a encenar tal papel para, manobrando as forças políticas, antecipar o plebiscito que o Ato Adicional estipulara para 1965, com o objetivo de manter ou revogar a fórmula parlamentarista.
Atingiu seu objetivo, sendo o plebiscito realizado a 6 de janeiro de 1963. Jango assim retomou o que se convencionou denominar a “plenitude dos poderes presidenciais”, o que, na prática resultou num governo desastroso. Com os militares emparedando-o por um lado e a dupla esquerdista Brizola-Darci Ribeiro (este, à época, chefiando a Casa Civil) pelo outro, a ínfima chance de Jango se equilibrar num papel de centro esvaiu-se num abrir e fechar de olhos.
Chefe de um governo inepto, foi facilmente empurrado para um populismo de esquerda, cujo momento canônico foi o discurso que proferiu no Rio de Janeiro na noite de 13 de março de 1964, dirigido a uma multidão reunida em frente ao prédio da Central do Brasil. Discursando ao lado de sua mulher, Maria Teresa, concluiu assinando e exibindo para os presentes um desengonçado decreto de reforma agrária. Mas Jango foi muito além do que a prudência aconselharia. Nos dias seguintes, passou a dar ostensivo apoio a marinheiros em greve, numa evidente quebra da hierarquia militar. Daí ao golpe de 31 de março, seria só um passo.
O ciclo militar, 1964-1985
Contando, no início, com ampla mobilização de apoio entre as camadas médias urbanas, ao fim e ao cabo o ciclo militar não desmentiu a tese geral deste estudo, a saber, a de que a República tem continuamente se caracterizado por intensa instabilidade. Isso não se deveu apenas ao fato de organizações de esquerda terem encetado uma luta armada contra o regime, perpetrando atos terroristas, assaltos a bancos, sequestro de aeronaves comerciais, ataques a quartéis e até sequestros de diplomatas, entre os quais o mais audacioso foi sem dúvida o do embaixador dos Estados Unidos, Elton Burke Elbrick, cuja libertação só foi conseguida pela aquiescência do governo em divulgar um manifesto dos revoltosos no horário nobre da TV e pela troca do embaixador por um numeroso grupo de presos ligados aos movimentos revolucionários.
A resposta militar destacou-se por extenso recurso a operações de tortura, à dizimação de grupos de guerrilheiros e também a atos terroristas, como o praticado contra a sede da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB) e, também no Rio, a fracassada tentativa de detonar bombas durante um show artístico em andamento no Rio-Centro. A pior das ações repressivas foi com certeza o assassinato de prisioneiros, como foi o caso do operário Manuel Fiel Filho e do jornalista Vlado Herzog, este encontrado enforcado em sua cela.
Por este último fato, o presidente Ernesto Geisel foi levado a exonerar o general Ednardo D’Ávila Melo, comandante do Segundo Exército, sediado em São Paulo.
Contudo, os fatos acima relatados não abrangem todos os fatores de instabilidade que lavraram durante o período. Não menos importante foi a série de desavenças que viria a ocorrer entre os próprios oficiais-generais que comandavam o modelo instituído em março de 1964. A série a que me refiro a rigor teve início com o comportamento do Marechal Costa e Silva, que se acomodou no Ministério da Guerra 13 dias antes de o Alto Comando indicar oficialmente o Marechal Castelo Branco para a presidência da República. Assumindo, sponte sua, o cargo que lhe interessava, Costa e Silva já praticamente se impunha como o sucessor presuntivo de Castelo e se posicionava para eventualmente contrariar medidas de estabilização econômica e reformas que ministros Otávio Bulhões e Roberto Campos viessem a tomar.
Em 1968, Costa e Silva veio a falecer em razão de um distúrbio cerebral presumivelmente decorrente de ter se recusado a assinar o ultra-repressivo Ato Institucional número 5. Configurado, assim, um problema sucessório, o Alto Comando indicou como sucessor o general Garrastazú Médici, impedindo a posse do vice legitimamente eleito (dentro das regras de jogo vigentes), o deputado mineiro Pedro Aleixo, configurando-se aí, sem meias palavras, um golpe dentro do golpe.
Em outubro de 1977, na Presidência, o general Ernesto Geisel exonerou com inusitada rispidez (“O cargo é meu”!) seu ministro da Guerra, o general Sylvio Frota, ao qual era geralmente atribuída uma trama para o derrubar. Mas a derrocada do ciclo militar acabou por se dar muito mais pela via econômica que pela política. Vendo-se como o protagonista indispensável para implementar sua visão de um “Brasil Grande”, e tendo em vista a farta liquidez disponível no mercado financeiro internacional, o governo Geisel contraiu no exterior empréstimos de grande vulto, indexados à taxa de juros vigente na praça de Londres.
Deu-se que, em 1973 e novamente em 1979, abruptos reajustes nos preços do petróleo, ocasionados pela constante beligerância no Oriente Médio, triplicaram a taxa de juros, com o que o projeto brasileiro de crescimento acelerado estancou e o País mergulhou numa prolongada estagnação, que se tornaria conhecida pelo epíteto de “década perdida”. Desse ponto em diante, como veremos a seguir, os impasses subjacentes passaram à área política, resultando na vitória do senador Tancredo Neves sobe Paulo Maluf no âmbito do Colégio Eleitoral, em março de 1985. Assim, o ciclo militar chegou ao fim através do que se pode apropriadamente denominar uma “redemocratização pela via eleitoral”.
A queda de braço entre Sarney e a Constituinte
Com a morte de Tancredo Neves no dia 21 de abril de 1985, o cetro presidencial passou às mãos de José Sarney. Este, sem embargo de sua longa experiência nas proximidades do poder, não possuía nem de longe a estatura política e a legitimidade democrática oposicionista de Tancredo Neves. Para complicar as coisas, estava decidido que o Congresso a ser eleito em 1986 assumiria a partir de 1987 com poderes constituintes originários.
Uma questão crítica seria a duração do mandato de José Sarney. A Constituição vigente era ainda a do período militar, que estipulava um mandato de seis anos. Tancredo havia insinuado querer um mandato de apenas quatro anos, mas esse desejo só teria consequência prática se ele mesmo propusesse ou apoiasse emenda constitucional nesse sentido, a ser votada pelo Congresso. Era dado como certo que Sarney fincaria pé na defesa de um mandato de pelo menos cinco anos.
Em teoria, o Congresso Constituinte poderia admitir o mandato de seis anos, reduzi-lo para cinco ou quatro anos, ou mesmo interrompê-lo de imediato, o que implicaria o afastamento de Sarney da função presidencial. Delineava-se, assim, um jogo de perdedores: na prática, nem conseguiria Sarney recuperar a autoridade perdida em razão do colapso de seu equivocado plano heterodoxo de combate à inflação, nem disporia o Congresso (no caso, a oposição) de lideranças suficientes e dispostas a encerrar o mandato de Sarney.
Recorde-se que estávamos em plena “década perdida”, com o País sofrendo os efeitos de décadas de alta inflação e rumando com celeridade para o temido espectro da hiperinflação. Em 1986, como já se notou, Sarney surpreendeu o País com a decretação do Plano Cruzado, uma tentativa de controlar a inflação pelo caminho heterodoxo do controle de preços e salários. O Plano catapultou sua popularidade para a estratosfera, propiciando-lhe uma a chance de efetuar reformas estruturais consistentes.
Mas essa não era a índole do prócer maranhense. Numa reunião realizada em Carajás, uma plêiade de economistas adverte-o de que o Plano, como estava, seria um “voo de galinha”, sendo, pois, imperativo afrouxá-lo. Sarney não aquiesceu em tomar tal medida antes das eleições, pois necessitaria de amplo apoio entre os governadores e nos embates com a Constituinte. Ao fim e ao cabo, constatou-se que Cassandra estava coberta de razões. Sarney atingiu plenamente seu objetivo eleitoral, mas o envergonhado anúncio de que o controle de preços e salários havia esgotado seu prazo de validade liquidou-o politicamente, a ponto de só ter conseguido assegurar o mandato de cinco anos mediante uma escandaloso recurso ao clientelismo, “comprando” os votos de que necessitava.
Com a economia estagnada e no clima de desmoralização política então prevalecente, a opinião pública brasileira entrou num transe messiânico, considerando que só a “primeira eleição direta após 29 anos” poderia tirar o Brasil do buraco. Nesse quadro, o governador de Alagoas, Fernando Collor de Mello, esgrimindo o slogan demagógico do combate aos “marajás” (servidores públicos privilegiados), sobrepujou até com certa facilidade a inexperiência e os arroubos radicais de seu principal adversário, Luiz Inácio Lula da Silva.
Incapaz, porém, de liquidar a inflação “com um só tiro”, como prometera e atingido em cheio por acusações de corrupção, Collor foi afastado do cargo, em 1992, por meio de um processo de impeachment. Assim, as circunstâncias alçaram à Presidência o vice Itamar Franco, homem reconhecido por sua integridade, mas não por sua habilidade política e menos ainda por seus conhecimentos de economia. Em seu primeiro ano de governo, Itamar “queimou” três ministros da Fazenda (Gustavo Krause, Paulo Haddad e Eliseu Resende), até que um autêntico “estalo de Vieira” levou-o a convocar para o cargo seu ministro do Exterior, Fernando Henrique Cardoso, que se encontrava em Nova York, fazendo o percurso de volta do Japão.
Embora sua formação acadêmica fosse em sociologia, não em economia, Fernando Henrique foi efusivamente recebido pelo empresariado e levou para Brasília um seleto grupo de economistas, com os quais iria elaborar um plano de combate à inflação – o Plano Real, como ficou conhecido. A condição básica de tal trabalho seria afastar de vez todo indício de heterodoxia, posição esta materializada no principal instrumento operacional do plano, a URV (Unidade Referencial de Valor). A política de estabilização seria gradualista e orientada no sentido de obter junto ao público um voto de confiança cada vez mais sólido, e sempre reconhecendo o apoio que lhe outorgava o presidente em exercício, Itamar Franco.
Por volta de maio de 1994, o acerto da opção gradualista já não comportava dúvidas, fato que se evidenciaria no fim do ano pelo fato de Fernando Henrique ter batido Lula na eleição presidencial em primeiro turno e em todos os Estados do País. Enquanto isso, era evidente que Lula e seu Partido dos Trabalhadores não haviam superado a doença infantil de seu esquerdismo. Aconselhado por seus assessores, Lula bateu de frente com o Plano, vaticinando seu iminente fracasso. Esta constatação não contradiz o fato também óbvio de que, nos oito anos seguintes, o lulo-petismo logrou um notável crescimento na esfera eleitoral, que o levaria a bater o candidato do PSDB (Partido da Social-Democracia Brasileira), José Serra, na eleição de 2002.
Àquela altura, era patente que Lula amadurecera mais que seu partido, o que, entretanto, não o impediu de inquinar como “herança maldita” o País estabilizado que Fernando Henrique lhe passou, num processo de transição absolutamente exemplar.
De Lula a Dilma
Por maiores que sejam os méritos atribuíveis a Lula, notadamente o de pôr as desigualdades sociais brasileiras no topo da agenda pública, não cabe dúvida de que os historiadores atuais e os do futuro lhe farão duras indagações em pelo menos três aspectos. Primeiro, certa promiscuidade nas relações com os partidos e o Congresso Nacional, evidenciadas no episódio do “mensalão” (2006), ou seja, na distribuição de valores pecuniários a numerosos congressistas, a fim de se assegurar do apoio deles. Segundo, e muito mais grave, a sistemática organização da corrupção na Petrobrás, em conluio com os maiores empreiteiros do País. Terceiro, o desmesurado apetite de poder que o levaria a emplacar a Sra. Dilma Rousseff na Presidência da República.
Quanto a esse ponto, cabe aqui um parêntesis. Bafejado pela sorte – ou, para sermos exatos, pelo enorme aumento na exportação de commodities para a China -, Lula considerou que seu retorno ao Planalto seriam favas contadas, e também a continuidade de um círculo vicioso que alçaria o Brasil a um nível substancialmente mais alto de bem-estar. Vedada pela Constituição a candidatura a um terceiro mandato consecutivo, ele só tinha diante de si um pequeno entrave: deixar com uma pessoa de confiança a poltrona presidencial do quarto andar do Palácio do Planalto. Para afastar esse pequeno entrave, reuniu-se com o empreiteiro Marcelo Odebrecht, sem dúvida para solicitar-lhe um esforço extra no aspecto financeiro, e com o publicitário João Santana, de cujo talento haveria de fluir o imaginário a ser mostrado no horário eleitoral da televisão.
Seja qual for a exata combinação entre esses elementos, não me parece concebível que Lula ignorasse a extensão do despreparo de Dilma Rousseff para a função presidencial. Desconhecia, e por isso superestimou a lealdade dela, que insistiu, contrariando a lógica, em se candidatar a um segundo mandato, em vez de deixar o caminho aberto para o triunfal retorno de Lula. O resultado todos conhecemos.
Na economia, uma contração brutal, que praticamente duplicou o número de desempregados no País. Na área administrativa, a inobservância de normas básicas de gestão das finanças públicas, que a levou a ser afastada por meio de um processo de impeachment. E como os males do mundo costumam andar juntos, logo em seguida, fevereiro de 2020, chegou a pandemia da Covid, para liquidar o que ainda pudesse haver de esperança por estas plagas.
Desencanto ou descortino?
Sucedendo a Dilma Rousseff na Presidência, o vice Michel Temer fez das tripas coração a fim de tocar pelo menos uma parte das reformas estruturais sabidamente indispensáveis à retomada do crescimento. Logrou um razoável êxito, particularmente na área das relações de trabalho, cujo arcabouço tem travado o crescimento desde os tempos do corporativismo getulista.
Sem demérito para Temer, sabemos todos que o que ele fez é uma minúscula parcela do que há por fazer no tocante à reforma do Estado. E como se não bastasse a lentidão nessa área, um novo desastre se configurou desde a eleição de 2018: a polarização do bolsonarismo contra o petismo. Em 2022, a vitória de Lula por apenas 2% obviamente não poderia ter amenizado os riscos inerentes a tal situação; ao contrário, parece tê-los agudizado, a julgar pela arruaça golpista do dia 8 de janeiro, semelhante à dos adeptos de Donald Trump nos Estados Unidos, não havendo exagero em considerar que ambas se incluem entre as mais graves na história dos dois países.
De volta ao Planalto, Lula tem sabiamente se esforçado para falar mais baixo e com mais cautela, passando a impressão de haver aprendido que todo radicalismo político é perigoso.
À guisa de conclusão
É difícil dizer o que é pior: dois grandes partidos abandonando sua tradicional moderação, como se vê atualmente nos Estados Unidos, ou um país virtualmente sem partidos, como é atualmente o Brasil, onde o que vemos é um conglomerado disforme que atende pelo nome de Centrão. Num caso ou noutro, o que precisamos ter em mente é que, com nossa renda por habitante crescendo a taxas anuais pífias, não está à vista o dia em que poderemos celebrar a superação da “armadilha do crescimento médio”. Bem ao contrário, outro confronto vitriólico como o de 2022 entre Lula e Bolsonaro nos afundará mais alguns degraus no fundo do poço.
Não descabe lembrar que não é só de partidos políticos que o Brasil carece. Não dispomos de uma elite no sentido apropriado deste termo: um grupo relativamente numeroso, competente, culto e genuinamente devotado ao bem coletivo. Temos, isto sim, um exíguo grupo de poderosos, dentre os quais seis ou sete por cento exercem um controle imexível sobre metade da riqueza nacional. Falta-nos igualmente uma classe média, ou algumas camadas que possamos designar como alta classe média, capaz não somente de identificar e defender seus próprios interesses, mas também de servir como um muro de arrimo, escorando e balizando as instituições da República, nos Três Poderes.
/Bolívar Lamounier, sócio-diretor da Augurium Consultoria e membro das Academias Paulista de Letras e Brasileira de Ciências e assessor acadêmico do Clube de Madri, entidade integrada por ex-presidentes e ex-primeiros-ministros