Pelo menos 17 pessoas são investigadas pela Polícia Federal (PF) por suspeita de envolvimento no possível esquema de fraudes em dados de vacinação da covid-19 tornado público com a Operação Venire.
A PF identificou que informações de vacinas que não foram efetivamente aplicadas eram incluídas ilegalmente nos sistemas do Ministério da Saúde. Com isso, o grupo conseguia emitir certificados de imunização pelo aplicativo ConecteSUS para burlar restrições sanitárias a viagens internacionais na pandemia.
Os principais alvos são o ex-presidente Jair Bolsonaro (PL) e a ex-primeira-dama, Michelle Bolsonaro, mas a PF também mira militares, assessores e políticos.
O Estadão reuniu os nomes citados pela Polícia Federal no relatório policial enviado em 18 de abril ao Supremo Tribunal Federal (STF) e o que os investigadores apontam sobre eles.
Jair Bolsonaro e Michelle Bolsonaro
Recai sobre o ex-presidente a suspeita de falsificação do próprio cartão de vacinação. A PF encontrou um certificado emitido de um computador do Palácio do Planalto. O cartão aponta que o ex-presidente teria recebido três doses da vacina contra a covid-19: uma Janssen e duas Pfizer. Ele nega ter se vacinado.
Bolsonaro é implicado em outra frente, que atinge também a ex-primeira-dama. A PF defendeu que eles respondam pela falsificação do cartão de vacinação da filha, Laura, de 12 anos. O documento foi emitido em inglês um dia antes de uma viagem aos Estados Unidos.
Michelle disse ontem que a filha não foi imunizada. “Na minha casa, apenas eu fui vacinada”, escreveu nas redes sociais após a operação.
A PF descartou a ação de hackers e afirmou que Bolsonaro tinha ‘plena ciência’ das fraudes no cartão dele e da filha.
“A contextualização dos dados apresentados, considerando as manifestações públicas do ex-presidente da República Jair Bolsonaro de que não vacinaria sua filha, Laura Firmo Bolsonaro, contra a covid-19, demonstram fortes indícios de que as inserções falsas podem ter sido realizadas com o objetivo de gerar vantagem indevida para a adolescente, por determinação de seus pais”, aponta a PF.
Mauro Cid e Gabriela Cid
O tenente-coronel do Exército Mauro Cid, ex-ajudante de ordens da Presidência da República, foi o pivô da investigação. Ele teve o sigilo de mensagens quebrado em outro inquérito e a PF encontrou conversas sobre as fraudes nos dados de vacinação. Cid foi preso preventivamente.
Braço direito de Bolsonaro, ele é descrito como uma espécie de operador do suposto esquema. A conta do ex-presidente no ConecteSUS estava vinculada ao e-mail funcional do coronel. Ele também teria falsificado o próprio cartão de vacinação e os certificados da mulher e das três filhas. Em uma das conversas interceptadas, Mauro Cid afirma que não vai tomar a vacina. “Eu e ninguém aqui casa”, diz ele.
A mulher dele, Gabriela Santiago Ribeiro Cid, entra na investigação porque o cartão dela teria sido o primeiro a ser fraudado. A PF identificou duas tentativas de inclusão de dados falsos em nome de Gabriela: uma via Goiás e outra pelo Rio de Janeiro. A PF cruzou dados de geolocalização do celular dela e descobriu que, nas datas citadas nos dois cartões falsos, em agosto e novembro de 2021, Gabriela estava em Brasília.
Luís Marcos dos Reis e Farley Vinicius Alcântara
Outro personagem importante no quebra-cabeça da PF é o sargento Luís Marcos dos Reis. Ele teria mobilizado o próprio sobrinho, o médico Farley Vinicius Alcântara, para preencher e carimbar um dos cartões falsos emitidos em nome da mulher de Mauro Cid.
O documento aponta duas doses da vacina Biotech supostamente aplicadas na cidade de Cabeceiras, que fica a cerca de 349 quilômetros de Goiânia. Os dados usados teriam sido copiados do cartão de uma enfermeira, que foi de fato vacinada em Cabeceiras, segundo a investigação.
Eduardo Crespo Alves
A PF encontrou mensagens suspeitas de Mauro Cid com o segundo-sargento do Exército Eduardo Crespo Alves. Eles conversaram sobre como inserir os dados falsos de vacinação de Gabriela no sistema integrado do Ministério da Saúde.
Uma inconsistência no lote das vacinas teria dificultado a fraude no sistema. “Infelizmente, ela não está conseguindo porque o sistema daqui não aceita, não está aceitando vacina que ela tomou. O lote que veio para o Rio de Janeiro é diferente. Não tem esse lote aqui, então você, o sistema não aceita”, diz um dos áudios enviados por Alves e interceptados pela PF.
Ailton Gonçalves Moraes e Marcello Siciliano
O advogado e militar da reserva Ailton Gonçalves Moraes, que também foi preso preventivamente, é apontado como uma espécie de intermediário de um braço do esquema junto à prefeitura de Duque de Caxias, na Baixada Fluminense.
Ailton teria levantado lotes enviados ao Rio de Janeiro e cadastrado duas doses da Pfizer em nome de Gabriela. O advogado também conseguiu um cartão físico de vacinação para a mulher de Mauro Cid.
“Cid, recebi o retorno agora. É... aquele amigo, já está vacinado com duas doses da Pfizer. Amanhã eu estou pegando o documento está bom?”, diz um áudio enviado por Ailton ao ex-ajudante de ordens de Bolsonaro.
Mensagens enviadas por Ailton arrastaram o ex-vereador do Rio Marcello Siciliano para a investigação. A PF acredita que o político tenha intermediado a fraude em troca de um encontro com o cônsul dos Estados Unidos no Brasil para, segundo a investigação, ‘resolver um problema relacionado ao seu visto’.
João Carlos de Sousa Brecha, Claudia Helena Rodrigues da Silva e Camila Paulino Alves Soares
Secretário municipal de Governo de Duque de Caxias, João Carlos de Sousa Brecha teria passado as credenciais para inclusão, no sistema do Ministério da Saúde, dos dados falsos de vacinação da família de Mauro Cid e do ex-presidente Jair Bolsonaro. Ele também foi preso pela PF.
Os investigadores suspeitam que ele tenha operacionalizado fraudes para outros negacionistas que não queriam tomar a vacina da covid-19.
“Apesar de exercer a função de Secretário de Governo, cargo que em tese não demonstra qualquer pertinência com a atividade de inserção de registros de vacina contra a Covid-19 no sistema do Ministério da Saúde, os dados encaminhados revelaram que João Carlos Brecha realizou durante todo o ano de 2022 mais de sessenta inserções de dados de vacinação contra a covid-19 no sistema SI-PNI”, afirma a PF.
Após a emissão dos certificados, os registrados de vacinação eram excluídos dos sistemas do Ministério da Saúde, para não deixar ‘rastros’, segundo a PF.
Os investigadores afirmam que as servidoras municipais Claudia Helena Rodrigues da Silva e Camila Paulino Salves Soares acessaram o sistema para incluir e apagar informações.
Max Guilherme e Sergio Cordeiro
Assessores de Bolsonaro, Max Guilherme e Sergio Cordeiro também foram presos preventivamente na Operação Venire. A PF afirma que os certificados de vacinação deles também foram fraudados nas vésperas de viagens internacionais para acompanhar o ex-presidente.
“O fato de os certificados terem sido gerados em língua inglesa evidencia o intuito de utilizá-lo fora do Brasil”, aponta a investigação.
Marcelo Costa Câmara
A PF acredita que o coronel do Exército Marcelo Câmara também administrou a conta de Bolsonaro no ConecteSUS. Isso porque, em 22 de dezembro de 2022, o e-mail dele foi vinculado ao perfil do ex-presidente. A data coincide com o período em que o militar, que era assessor especial da Presidência, foi indicado para assessorar Bolsonaro após o mandato. Essa é uma prerrogativa dos ex-presidentes.
Gutemberg Reis
O deputado federal Gutemberg Reis (MDB-RJ) é irmão do ex-prefeito de Duque de Caxias, Washington Reis (MDB). Ele teve o celular e o cartão de vacinação apreendidos pela PF.
A investigação aponta que o certificado de imunização do deputado também teria sido fraudado. Isso porque, no período em que teria tomado a vacina, supostamente aplicada em Duque de Caxias, Gutemberg publicou nas redes sociais que passou a semana trabalhando em Brasília.
A PF também chama atenção para o detalhe de que o profissional de saúde que teria aplicado a primeira dose no deputado não vacinou nenhuma outra pessoa no mesmo dia.
COM A PALAVRA, O EX-PRESIDENTE JAIR BOLSONARO
“A defesa do ex-presidente da República, Jair Bolsonaro, reitera que este, em linha com a posição que sempre manteve, nunca recebeu qualquer imunizante contra covid-19. Na constância de seu mandato somente ingressou em países estrangeiros que aceitassem tal condição ou se dessem por satisfeitos com a realização de teste viral, procedimento adotado em diversas ocasiões. A ex-primeira-dama, Dona Michelle, conforme amplamente divulgado, foi vacinada, com imunizante de dose única, no ano de 2021. A filha menor do casal, por sua vez, foi proibida de receber qualquer imunizante em razão de comorbidades preexistentes, situação sempre e devidamente atestada por médicos. A contrario sensu do quanto amplamente noticiado na data de hoje, não haveria qualquer motivo para que o Ex-Presidente promovesse ou determinasse a confecção de certificados falsos.”
Paulo Amador da Cunha Bueno, Daniel Bettamio Tesser e Fábio Wajngarten
COM A PALAVRA, O DEPUTADO GUTEMBERG REIS
Procurado pela reportagem, o deputado afirmou que teve um problema no ConecteSUS, mas negou ter falsificado os dados. Ele também informou que tem o cartão físico de vacinação. Reis afirmou ainda que fez ampla campanha pela imunização durante a pandemia e que é a favor da vacina.
A assessoria do deputado enviou seu cartão digital de vacinação. O documento lista quatro doses aplicadas entre julho de 2021 e novembro de 2022.
COM A PALAVRA, OS DEMAIS CITADOS
A reportagem busca contato com os citados. O espaço está aberto para manifestação (rayssa.motta@estadao.com, pepita.ortega@estadao.com e fausto.macedo@estadao.com).