A Câmara Municipal de São Paulo pode instalar em fevereiro, após o recesso parlamentar, uma Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI) para apurar a atuação de ONGs que atendem dependentes químicos na Cracolândia. De acordo com o vereador Rubinho Nunes (União Brasil), ex-integrante do Movimento Brasil Livre (MBL) e requerente da CPI, a iniciativa já conta as assinaturas necessárias e deve ter como principais alvos o padre Júlio Lancellotti, o Centro Social Nossa Senhora do Bom Parto (Bompar) e o movimento Craco Resiste.
“Os dependentes químicos precisam de programas de tratamento de alta qualidade para ajudar a superar o vício. Uma CPI pode avaliar a eficácia dos programas oferecidos pelas ONGs, determinando se elas estão alcançando os resultados desejados”, diz Rubinho no pedido de abertura da CPI. “Em algumas situações, pode haver preocupações éticas, como a exploração de dependentes químicos”, afirma o vereador no requerimento.
Nas redes sociais, no entanto, o tom é mais beligerante. No X (antigo Twitter), Rubinho Nunes afirmou que a CPI “vai esmiuçar todos os esquemas” da “máfia da miséria” que atua na região da Cracolândia. Segundo o vereador, “muitas ONGs e falsos padres” se aproveitam da vulnerabilidade social dos dependentes químicos para “ganhar politicamente”.
Rubinho Nunes é advogado e foi eleito vereador em 2020 com 33.038 votos. Ele permaneceu no Movimento Brasil Livre de 2014, na fundação do grupo, até 2022.
A CPI das ONGs pretende colocar em pauta a política de redução de danos, bandeira do pré-candidato a prefeito de São Paulo, deputado federal Guilherme Boulos (PSOL-SP), para o tratamento dos dependentes químicos da Cracolândia. De acordo com Rubinho Nunes, políticas do gênero incentivam os dependentes químicos a continuarem nessa condição.
No pedido de instalação da CPI, o vereador afirmou que medidas como distribuição de alimentos e kits de higiene geram um “ciclo vicioso” no qual o usuário não consegue largar a dependência química. Rubinho se refere a esse tipo de política pública como “bolsa crack” e diz que Lancellotti é o “padre do Boulos”.
Guilherme Boulos, que tem a pré-candidatura à Prefeitura apoiada pelo padre, reagiu com uma mensagem de aclamação a Júlio Lancellotti. “Estamos contigo”, publicou o deputado federal no Instagram.
Não é de hoje que Rubinho mira o pré-candidato a prefeito. Em outubro do ano passado, em meio às greves da categoria dos metroviários, Rubinho Nunes protocolou um requerimento convocando o deputado federal a prestar depoimento sobre o tema na Câmara Municipal. Boulos alegou que não havia embasamento legal para a convocação e não foi à sessão.
Lancellotti é alvo de longa data do MBL
Júlio Lancellotti, da Paróquia São Miguel Arcanjo, é conhecido pela assistência a pessoas em situação de rua e pela defesa dos direitos humanos. Em novembro de 2023, foi regulamentada pelo presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT) uma lei destinada à proteção da população em situação de rua que leva o seu nome. O sacerdote, porém, é alvo de críticas pela atuação na capital paulista e, frequentemente, é tachado de “padre esquerdista” por políticos da extrema direita.
O ex-deputado estadual Arthur do Val, coordenador do MBL, afirmou, em setembro de 2020, em entrevista à rádio Jovem Pan que Júlio Lancellotti era um “tranqueira”. Dias depois, no X, o então candidato a prefeito da capital disse que a conduta do padre era “deplorável” e chamou Lancellotti de “farsa” e “cafetão da miséria”. Do Val foi condenado pela Justiça Eleitoral por difamação e teve que apagar a publicação.
À reportagem, Arthur do Val disse que a CPI das ONGs é uma iniciativa alheia ao movimento. “Não temos nada a ver com a CPI, isso é coisa do Rubinho”, disse. O vereador não integra mais os quadros do MBL, mas herda do movimento a rivalidade com Lancellotti.
Pelo Patriota, legenda hoje fundida com o PTB para criar o PRD, Arthur do Val obteve o 5º lugar naquela eleição, com 522.210 votos. Meses depois, Do Val viria a ter o mandato de deputado estadual cassado em razão do vazamento de áudios sexistas, nos quais se referia às mulheres ucranianas como “fáceis, porque são pobres”.
MBL tem pré-candidato, mas cenário é incerto
Para as eleições deste ano, o líder do MBL e deputado federal Kim Kataguiri (União) se apresenta como pré-candidato a prefeito de São Paulo. No entanto, segundo interlocutores ouvidos pela Coluna do Estadão em dezembro, uma ala do União deseja manter a posição do partido nos cargos da Prefeitura e, eventualmente, pleitear a vaga de vice na chapa de Ricardo Nunes, atual prefeito.
Um acordo do partido de Kataguiri com o atual mandatário inviabilizaria sua candidatura, mas o líder do MBL permanece convicto de que pode vencer a convenção do União. “Apesar do choro e ranger de dentes, irei até o final”, disse Kim à Coluna.
O espaço do MBL para o arranjo eleitoral ainda não está definido – o movimento pode ter um candidato pelo União, ser abrigado por outra sigla ou mesmo compor com Ricardo Nunes –, mas o grupo segue nas críticas a Guilherme Boulos. Como demonstrado por um levantamento do Estadão, Boulos é o principal alvo de Kim Kataguiri nas redes sociais.
O que dizem os citados
Em nota divulgada nas redes sociais, a entidade A Craco Resiste informou que “não é uma ONG, e sim um projeto de militância” que atua na região da Cracolândia para “reduzir danos a partir de vínculos criados por atividades culturais e de lazer”.
No comunicado, a entidade rechaça a acusação de que lucra com a vulnerabilidade social da região. “Quem tenta lucrar com a miséria são esses homens brancos cheios de frases de efeito vazias que tentam usar a Cracolândia como vitrine para seus projetos pessoais. Não é o primeiro e sabemos que não será o último ataque desonesto contra A Craco Resiste”, diz a entidade.
Procurado pelo Estadão, Júlio Lancelloti declarou que a instalação de CPIs para investigar o uso de recursos públicos pelo terceiro setor é uma ação legítima do Poder Legislativo. Além disso, acrescentou que não faz parte de nenhuma organização conveniada à Prefeitura de São Paulo, mas, sim, da Paróquia São Miguel Arcanjo.
A reportagem não conseguiu contato com o Bompar. O espaço está aberto para a manifestação da entidade.