BRASÍLIA - Documento produzido durante a transição e até agora mantido restrito responsabiliza as Forças Armadas por um apagão da transparência no governo federal. Foram mapeados casos de reiterado descumprimento da Lei de Acesso à Informação durante a gestão do ex-presidente Jair Bolsonaro. De contratos a notas fiscais, passando por informações sobre a vida funcional de oficiais, os militares se negaram a tornar públicos documentos requeridos por cidadãos entre 2019 e 2022.
“Houve um significativo retrocesso no cumprimento da LAI pelas Forças Armadas durante o Governo Bolsonaro. Questões básicas como contratos, notas fiscais, relatórios de licitação são denegadas sob argumentos muito questionáveis, algumas vezes fundamentadas em portarias internas que não poderiam ou não deveriam se sobrepor à lei de acesso”, diz o documento.
O relatório foi produzido pelo grupo técnico da Transparência, Integridade e Controle. O documento estava restrito até então, mas foi obtido pelo Estadão por meio da LAI. As críticas à atuação das Forças Armadas foram omitidas do relatório geral, único documento oficial divulgado pela equipe de transição em dezembro do ano passado. O texto relacionado à transparência não citava Exército, Marinha nem Aeronáutica. Relatava apenas, de uma forma genérica, que houve um “desmantelamento dos órgãos de controle e defesa do Estado”.
Desde antes da posse, o governo petista tenta distensionar a relação com os militares. Lula já trocou o comandante do Exército e o ministro da Defesa, José Múcio, vem atuando para vencer resistências dentro da caserna em relação ao PT. Ao liberar o acesso ao relatório, a Controladoria Geral da União (CGU) fez uma ressalva que combina com movimento do governo de evitar novos atritos com os militares. A CGU informou que o documento não expressa necessariamente a opinião do órgão e “constitui-se como manifestação de natureza meramente opinativa, possuindo caráter de sugestão”.
‘Informações pessoais’
O grupo técnico da Transparência que produziu o documento foi chefiado pelo atual ministro-chefe da Advocacia-Geral da União (AGU), Jorge Messias. Também participaram da equipe o ex-ministro Eugênio Aragão e o ex-presidente da Comissão de Ética Pública (CEP) Mauro Menezes.
O relatório obtido pelo Estadão afirma que nos últimos anos foram colocados inúmeros obstáculos para se garantir a transparência e o acesso à informação. A equipe comandada por Messias diz ainda que as “autoridades burocráticas” do governo Bolsonaro atuaram às margens da lei e conseguiram “encurtar em muito o potencial da política de transparência pública”. Especificamente sobre as Forças Armadas, aponta uma “forte tendência de sempre ou quase sempre se considerar ‘pessoais’ informações sobre integrantes do Exército que não seriam informações pessoais para servidores civis”.
Como exemplos, o documento relata que o Exército negou acesso a notas fiscais de compras públicas, documentos de pregões eletrônicos, salários de servidores, lista de empresas que firmaram contratos com a Força, pareceres, notas técnicas, processos disciplinares e outros dados básicos. Em relação ao Comando da Aeronáutica, o grupo técnico critica a negativa de acesso à lista de passageiros e ao custo de voos oficiais. Por fim, relata que a Marinha mantém mais de 77 mil documentos em sigilo.
O diagnóstico traçado pelo governo de transição criticou também o sigilo de 100 anos inicialmente imposto ao processo administrativo do Exército contra o general Eduardo Pazuello, atual deputado federal, por ter participado de ato político ao lado do então presidente Jair Bolsonaro, em maio de 2021, no Rio de Janeiro. “O caso chamou atenção, pois, por se tratar de investigação concluída, não haveria justificativa para sigilo, sobretudo em razão de conter dados pessoais, e por um período tão extenso”, diz o texto.
Durante a última campanha, o presidente Lula prometeu revogar o sigilo no caso Pazuello, o que foi feito no mês passado por decisão da Controladoria-Geral da União (CGU). Os documentos vieram a público mostrando que o então comandante do Exército, Paulo Sergio Nogueira, alegou que tinha sido avisado por telefone sobre a ida de Pazuello ao ato político e o militar acabou absolvido no processo. O regimento militar veda que integrantes da caserna compareçam a manifestações políticas sem autorização superior.
“As Forças Armadas fizeram e fazem de tudo para resistir à transparência exigida pela redemocratização”, avalia a gerente de projetos da Transparência Brasil, Marina Atoji, ao Estadão. A especialista explica que a situação deixa Exército, Aeronáutica e Marinha longe do escrutínio público, não sendo possível realizar um controle social amplo sobre suas atividades e despesas.
Na avaliação de Atoji, mudar esse cenário a curto prazo passaria por algum grau de confronto. “Exige maior cobrança do cumprimento estrito da LAI e responsabilização por violações por parte da CGU e do Ministério da Defesa. Talvez até uma abordagem mais direta pelo próprio presidente, fazendo uso da hierarquia que as Forças prezam. Mas parece pouco provável agora, considerando os outros pontos de tensão existentes entre o novo governo e as Forças Armadas”.
Outro lado
Em nota, a Marinha informou que “cumpre rigorosamente as normas da Lei de Acesso à Informação” e reiterou o “firme propósito no cumprimento aos preceitos legais estabelecidos pela Constituição Federal”. O Comando da Aeronáutica também disse estar comprometido com a legislação e explicou que “eventuais informações solicitadas podem ser preservadas nas respostas concedidas, sempre com fundamento na legislação em vigor”.
Já o Exército afirmou que não teve acesso ao relatório da transição, mas contestou seu conteúdo. Disse que a premissa de que houve “descumprimento da Lei de Acesso à Informação” não se mostra verdadeira. Segundo a Força, os pedidos que foram negados têm amparo legal. “Ademais, o Exército Brasileiro cumpre a transparência ativa e disponibiliza uma gama de informações relevantes em sua página na internet, possibilitando ao interessado ter acesso a diversos assuntos atinentes à Força”.
O Exército disse ainda que desde a criação do Serviço de Informações ao Cidadão no Exército Brasileiro foram processadas mais de 13 mil demandas, “sem qualquer omissão” – o que, segundo a Força, atesta “um compromisso com a transparência pública, ativa e passiva, e com o fomento do desenvolvimento da cultura da transparência”.
O relatório da transição cita também casos de documentos cujo acesso foi negado por Itamaraty, Polícia Federal, Polícia Rodoviária Federal, Ministério da Justiça e Agência Brasileira de Inteligência (Abin). No caso da área de inteligência, o documento diz que o governo Bolsonaro tentou eximir a Abin de prestar contas. “Artigo da Lei da Abin passou a ser utilizado como fundamento para retirar do âmbito de incidência da LAI qualquer informação de inteligência, independe de classificação. Essa nova interpretação dada a esse dispositivo legal reverte um posicionamento histórico da CGU, segundo o qual informações da Abin não são necessariamente ou automaticamente dotadas de segredo, pela sua própria natureza”, pontuou o diagnóstico.