BRASÍLIA - A assessoria de imprensa do presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT) afirmou ao Estadão que o relógio Piaget usado por ele, avaliado em cerca de R$ 80 mil, não foi um presente recebido enquanto era presidente nos seus dois primeiros mandatos.
A informação da equipe do Palácio do Planalto contradiz uma versão anterior de Lula apresentada por duas reportagens publicadas pela imprensa em 2022.
Segundo uma publicação do Metrópoles e outra da Folha de S. Paulo, Lula disse a aliados durante um evento no Rio de Janeiro, em março daquele ano, que ganhou o relógio de presente quando era presidente. Neste caso, Lula deveria ter declarado o bem no sistema da Presidência — o que não ocorreu.
Procurada para comentar a declaração anterior atribuída a Lula, a assessoria do presidente informou que se tratam de informações obtidas “em off”, jargão jornalístico que indica a não identificação de quem passa a informação, e por isso não poderiam ter veracidade confirmada.
“[O relógio Piaget] não foi recebido durante nenhum dos mandatos dele”, assinalou o Planalto. A assessoria do presidente não especificou, contudo, quando e quem presentou Lula com o relógio. A assessoria acrescentou que “tudo que o presidente recebeu na Presidência está catalogado conforme legislação”.
A existência do item considerado luxuoso veio à tona no início de 2022, quando Lula apareceu usando o relógio durante evento de comemoração do centenário do PC do B. Apesar das publicações anteriores de ambos os veículos, é a primeira vez que o entorno de Lula dá uma versão oficial sobre a origem do Piaget.
Até agora, as declarações públicas de Lula sobre a polêmica dos presentes oficiais recebidos por ele mesmo diziam respeito a um segundo relógio, um Cartier Santos Dumont avaliado em cerca de R$ 60 mil. Os valores citados são baseados nos preços em dólar apresentados nos sites de fabricantes e vendedores especializados.
Durante uma transmissão ao vivo do Conversa com o Presidente, em julho de 2023, Lula usava o Cartier e disse que ganhou o relógio em 2005 do então presidente da França, Jacques Chirac.
“Você sabe que esse relógio ficou perdido 25 anos? Eu não sabia onde estava. Agora, que eu fui mudar, fui abrir a gaveta, e ele estava lá”, afirmou, sem corrigir a menção ao período em que o item teria ficado perdido. De 2005 a 2023 são 18 anos.
O Cartier foi um dos itens que passaram por uma auditoria do Tribunal de Contas da União (TCU) em 2016. Na oportunidade, os fiscais constataram que o relógio foi registrado como um presente da própria fabricante, e não do presidente da França.
Uma confusão entre características e origens dos dois relógios têm sido comuns em publicações e debates sobre critérios para ida de presentes oficiais a acervos privados de presidentes da República.
O Cartier, objeto com caixa quadrada e borda prateada, foi declarado no acervo presidencial. O Piaget, redondo e margens douradas, nunca foi listado nem como acervo da União nem como acervo particular do presidente.
A equipe de comunicação do Planalto, até então, jamais negou publicamente que o Piaget tinha sido um presente oficial ao presidente nem havia pontuado que o presente não tem relação com o mandato. As reportagens do Metrópoles e da Folha não trouxeram manifestação do governo.
Bolsonaro explora divergências sobre origem do relógio de Lula
O ex-presidente Jair Bolsonaro (PL) usa o fato de a União não ter determinado a devolução de relógios de Lula para alegar uma suposta perseguição e um efeito de “dois pesos, duas medidas” no caso das joias. Ao afirmar que o relógio Piaget não tem a ver com a presidência, a equipe de Lula tenta esvaziar o discurso de Bolsonaro segundo o qual os casos têm semelhanças.
O ex-presidente, porém, ignora o fato de a investigação da PF apontar um esquema de venda de joias e presentes avaliados em mais de R$ 6,8 milhões, dentre os quais objetos não declarados como presentes ou que não poderiam ser considerados “personalíssimos”, condição que permitiria a ida dos presentes aos respectivos acervos privados.
Na primeira manifestação após o levantamento do sigilo do relatório da PF sobre Bolsonaro, a defesa do ex-presidente investigado citou o Piaget de Lula, mas misturou informações sobre o outro relógio, o Cartier.
“No curso desta mesma investigação, estranhamente direcionada apenas ao ex-presidente Bolsonaro, houve representação para a inclusão do atual presidente da República, tendo em vista as próprias declarações do mesmo de que, quando no exercício de mandato, havia recebido um relógio da sofisticada marca Piaget, presenteado pelo ex-presidente da República Francesa, Jacques Chirac”, diz nota da defesa de Jair Bolsonaro. O relógio que teria sido dado por Chirac é o Cartier – e que o TCU afirma ter sido um presente da fabricante.
Mas, afinal, por que Lula não devolveu o Cartier?
A situação do Cartier será apreciada pelo plenário do TCU em agosto. Entre membros da Corte, o julgamento é visto como sensível porque pode virar munição política para lulistas ou bolsonaristas, a depender do resultado.
Em 2016, o TCU determinou que Lula devolvesse à União mais de 500 presentes que haviam sido incorporados ao patrimônio privado dele. Na ocasião, o tribunal firmou o entendimento de que somente os itens de caráter personalíssimo (medalhas, por exemplo) ou de consumo próprio (roupas, perfumes, comidas) devem permanecer com os presidentes. Em seu voto, o ministro Walton Alencar acrescentou que presentes valiosos pertencem à União.
O Cartier, contudo, não foi devolvido. O acórdão foi considerado cumprido por duas vezes, em 2019 e em 2020.
Nesse sentido, a área técnica do TCU se manifestou, em 2023, entendendo que Lula não precisa devolver o Cartier de R$ 60 mil, conforme revelou o Estadão. Os auditores destacaram que o próprio tribunal considerou o acórdão cumprido por duas vezes e que o entendimento não pode ser aplicado de maneira retroativa, pois poderia representar insegurança jurídica. Eles reforçaram, porém, que a incorporação de presentes de luxo por ex-presidentes é imoral.
“Considera-se suficiente e oportuno ao presente caso, unicamente, dar ciência ao GP/PR que a incorporação ao acervo documental privado dos presidentes da República de itens de natureza personalíssima de elevado valor comercial, afronta os princípios constitucionais da administração pública, especialmente o da moralidade administrativa, bem como o da razoabilidade”, afirmou a área técnica.
Parte dos ministros do TCU avalia que a auditoria de 2016 deveria ter obrigado a devolução do item à União. Isso porque, para manter um presente no acervo privado, o item deve ter caráter personalíssimo e baixo valor. Os valiosos, ainda que entendidos como personalíssimos, precisam ser entregues.
A área técnica entendeu, ainda, que o tribunal não deve deliberar sobre o Piaget, apesar de a representação pedir uma análise sobre o relógio suíço, pois “não há elementos que indiquem que o referido objeto é bem público da União”.