BRASÍLIA - O policial militar Luiz Paulo Dominghetti, que disse ter desistido de vender vacinas ao Ministério da Saúde após receber um pedido de propina, chegou ao governo por meio de um oficial da reserva do Exército que integra a chamada "Abin paralela", grupo de informantes que o presidente Jair Bolsonaro afirma manter para não depender dos órgãos oficiais de informação. O coronel Roberto Criscuoli disse ao Estadão ter sido responsável por fazer a ponte entre a Davati Medical Supply, a quem Dominghetti dizia representar, com a pasta. A Davati, porém, nega que o policial tenha qualquer relação com a empresa.
"Eu fui procurado por um representante da empresa uma vez num hotel. Vieram falando que era porque eu conhecia muita gente no governo. É lícito vender vacinas, é um item que o governo estava comprando. Mas, como não sou lobista, só disse para procurarem o Rodrigo", disse o militar ao Estadão. O contato do coronel é Rodrigo de Lima Padilha, funcionário terceirizado do Ministério da Saúde ligado ao coronel Pedro Geraldo Pinheiro dos Santos, à época diretor do Departamento de Economia da Saúde, Investimentos e Desenvolvimento do ministério (DESID) - agora, superintendente da pasta no Rio de Janeiro.
Criscuoli, porém, afirmou não se lembrar do nome da pessoa que o procurou dizendo ser representante da empresa. Em entrevista ao jornal Folha de S. Paulo, Dominghetti disse ter aberto negociação com o governo em nome da Davati para vender 400 milhões de doses da vacina AstraZeneca. Segundo ele, o então diretor de Logística do Ministério da Saúde, Roberto Ferreira Dias, cobrou propina de US$ 1 por dose para que a negociação avançasse, o que acabou não ocorrendo.
A AstraZeneca nega, porém, que a Davati a represente – a empresa americana já foi desautorizada pelo laboratório no Canadá. Em nota, a Davati também nega que Dominghetti, que é cabo da Polícia Militar de Minas Gerais, seja seu representante, mas confirma a oferta de vacina ao governo brasileiro, que diz ter ficado sem resposta. A Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI) da Covid no Senado pretende ouvir Dominghetti na sexta-feira, 30.
Reportagens publicadas na imprensa mineira indicam que a Davatti pode estar fraudando o processo de compra de vacinas no Estado. Como mostrou o Estadão em março, a empresa foi citada em negociações com prefeituras, com o objetivo de conseguir uma carta de intenção demonstrando interesse na aquisição de imunizantes da AstraZeneca. Depois de conseguir a carta, porém, as conversas emperraram.
Criscuoli, que recebe R$ 27,7 mil mensais como oficial da reserva do Exército, vive no Rio de Janeiro, mas percorre gabinetes de seus amigos militares em Brasília. No Congresso, é visto como um dos homens que integram a rede informal de Bolsonaro responsável por coletar e transmitir informações de interesse do governo. O presidente já disse, em mais de uma oportunidade, utilizar este canal para se manter informado.
“É um colega de vocês da imprensa que com certeza eu tenho, é um sargento no batalhão de operações especiais no Rio, um capitão do Exército de um grupo de artilharia em Nioaque, um policial civil em Manaus. É um amigo que eu fiz em um determinado local faz anos, que liga pra mim e mantém contato pelo zap”, disse o presidente, no ano passado, ao ser questionado sobre seu sistema próprio de informação. “Descubro muitas coisas, que lamentavelmente não descubro via inteligência oficial, que é a PF, a Marinha, a Aeronáutica e a Abin.”
Na Saúde, Criscuoli mantinha canal livre com o ex-ministro Eduardo Pazuello e com o ex-secretário-executivo Élcio Franco. O primeiro foi seu aluno no curso de Ações de Comandos. O outro, colega de Forças Especiais, unidade de elite do Exército brasileiro.
Defensor ferrenho do atual governo, Criscuoli costuma dizer a pessoas próximas que está sempre à disposição para ajudar o Executivo contra a "corja" que tenta derrubar Bolsonaro.
O oficial disse que, ao ser procurado, avaliou como importante indicar algum contato, por se tratar de insumo com demanda urgente, mas não quis ser confundido com lobista. Por isso, somente recomendou que o interlocutor procurasse por Rodrigo, que confirmou ter repassado o contato.
Procurado pelo Estadão, Rodrigo confirmou o que disse ocoronel, e contou que reencaminhou o representante ao Departamento de Logística (DLOG), chefiado por Dias, setor que também tem a atribuição de providenciar insumos. "Ele (Criscuoli) me conhecia e só perguntou como fazer. Sei que ofertaram vacinas, mas não foi concretizada a venda", disse à reportagem. "Falei muito pouco com o representante. A última vez foi quando me informou que o ministério não quis assinar o contrato. Por isso perguntei ao servidor se ele sabia alguma coisa."
Rodrigo de Lima foi citado na CPI da Covid pelo servidor Luis Ricardo Miranda, que denunciou o que classificou como "pressão atípica" de seus superiores para agilizar o processo de importação de outra vacina, a indiana Covaxin, a única comprada pelo governo por meio de um intermediário. No depoimento à CPI, Miranda disse ter tomado conhecimento sobre um pedido de propina em negociação de vacinas por meio de Rodrigo. O funcionário terceirizado alega, porém, que a suspeita foi levantada informalmente, em uma "conversa de corredor", sem qualquer respaldo concreto.
Procurado, Roberto Ferreira Dias não se manifestou. Sua indicação ao cargo de diretor do DLOG do Ministério da Saúde é atribuída ao ex-deputado Alberto Lupion (DEM-PR), com respaldo do atual líder do governo na Câmara, Ricardo Barros (Progressitas-PR). Em tuíte publicado na noite desta terça, 29, Barros negou a indicação de Dias e a atribuiu à gestão de Luiz Henrique Mandetta no ministério. Dias demitido ontem da pasta. Sua exoneração foi publicada no Diário Oficial da União (DOU) desta quarta-feira, 30. / COLABOROU ANDRÉ SHALDERS