A sugestão do presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT) de que os votos no Supremo Tribunal Federal (STF) poderiam ser secretos pois a sociedade não precisa saber como vota um ministro, além de se distanciar da tradição que se construiu no Judiciário brasileiro, choca-se frontalmente com os planos do futuro presidente do Corte máxima do Judiciário brasileiro. O Estadão mostrou no último mês que, em palestras e encontros com interlocutores, Luís Roberto Barroso tem enfatizado que busca justamente ampliar o diálogo com a sociedade brasileira. A ideia do ministro, que toma posse no dia 28 de setembro, é aproximar mais o Supremo dos diversos setores que compõem a sociedade no momento em que é preciso desarmar o debate de ideias, profundamente contaminado pela polarização no Brasil.
No fundo, as propostas dos dois, embora opostas, buscam a solução para um mesmo diagnóstico: o de que grande parte da sociedade brasileira é hoje refratária ao papel exercido pelo Supremo. Ocorre, porém, que a causa do problema não é nem a falta de abertura nem o excesso de publicidade. A opinião pública por muitas vezes não entende ou pressiona a Corte pelo fato de não enxergar uma lógica nos posicionamentos julgamento após o julgamento. Em contextos políticos diferentes, o resultado parece diferente.
Casos como a decisão de Dias Toffoli sobre provas da Odebrecht e a operação Lava Jato dão um ótimo exemplo do que afeta a imagem do Judiciário. O despacho que anulou provas do acordo de leniência, carregado de adjetivos, definiu a prisão de Lula como uma “armação” ou um “erro histórico” e a ação de investigação como “verdadeira conspiração com o objetivo de colocar um inocente como tendo cometido crimes jamais por ele praticados”.
Em geral, o cidadão critica decisões com as quais não concorda e elogia as que vão de acordo com aquilo que acredita. Mas no caso em especial, independentemente da posição do ministro, chama atenção o quanto a opinião do magistrado mudou ao longo da história, na medida em que também mudou o clima político no Brasil. Em 2016, ao Estadão, quando críticas a excessos da operação já existiam, ele resumiu: “Não se pode falar que é golpe, exceção, que não é o juiz natural. Isso está tudo dentro do Estado democrático de direito. E todo mundo tem advogado, faz o seu recurso, apresenta a sua defesa, nas devidas instâncias judiciais”. Naquela mesma entrevista, disse não se impressionar com a dura posição do Ministério Público ao acusar Lula, no episódio que ficou conhecido como Power Point de Deltan Dallagnol. “É muito melhor um Estado democrático de direito em que o órgão acusador vai lá, e publicamente divulga a sua opinião, do que nós termos um regime de exceção, em que ninguém pode falar”.
Três anos depois, em 2019, ao mesmo Estadão, ele já tinha críticas, mas ainda defendia a lógica central da operação. “A Lava Jato foi muito importante, desvendou casos de corrupção, colocou pessoas na cadeia, colocou o Brasil numa outra dimensão do ponto de vista do combate à corrupção, não há dúvida. Mas destruiu empresas. Isso jamais aconteceria nos Estados Unidos. Jamais aconteceu na Alemanha”.
Depois, em 2020, em coletiva de balanço dos trabalhos na Corte, e quando decisões do STF já começavam a machucar a operação, sua posição foi externada dizendo que “não haveria a Lava Jato se não houvesse o STF”. “E uma ou outra decisão residual ou contrária (aos interesses da operação), é porque entendeu-se que houve ultrapassagem dos limites da Constituição e da legislação”.
A posição agora externada nos autos sobre a Lava Jato enterra quase todas essas ideias expostas publicamente por ele. E é isso que gera questionamentos, mais do que qualquer outra coisa.
É nesse contexto que interessa analisar a proposta de Lula. Esconder os votos dos ministros do Supremo seria, portanto, trabalhar não para ampliar esses canais em que a sociedade pudesse entender melhor o funcionamento da Justiça, ideia defendida por Barroso, mas livrar os ministros de críticas individuais por não fazerem aquilo que deles se espera, estando corretos ou não.
Não há como também não enxergar, pelo momento em que foi exposta, que a intenção de Lula parece carregada de uma certa dose de amargura pelo que ele viveu no passado em julgamentos no STF e também pelas críticas pesadas que seu último escolhido à Corte, o ministro Cristiano Zanin, tem sofrido exatamente da militância petista. A pressão em torno dos votos de Zanin tem impacto direto nas decisões de Lula, que viu ampliarem-se as cobranças em torno de sua próxima escolha à Corte. Grupos à esquerda têm feito campanha aberta pela indicação de uma mulher negra, usando exatamente os votos de Zanin, com teor mais conservador, como prova de que o presidente não deveria repetir a lógica de buscar um nome de confiança sem convergência com a pauta progressista.
Leia Também:
O fato é que Lula, menos preocupado com os ataques feitos a ministros da Corte, acredita que, tanto no caso do mensalão, no qual antigos parceiros de partido foram condenados, como no caso da autorização para sua prisão pela Lava Jato, a decisão teria sido diferente não houvesse tamanha pressão da sociedade. Exatamente sobre Barroso, aliás, recai grande dose de amargura dos aliados de Lula, em razão das posições na Lava Jato, após ter sido nomeado por Dilma Rousseff para a Corte. E também sobre Dias Toffoli, seu escolhido lá atrás, que uma dia chegou a proibir que ele fosse ao enterro do irmão quando estava detido pela operação que agora o ministro condena.
O fato é que, independentemente de haver, sim, modelos no mundo em que o Judiciário é mais fechado e menos propenso a essas pressões externas, no Brasil há uma tradição de transparência e publicidade na fase processual que abarca todas as instâncias e que só passa a ser problema quando se está diante do julgamento de poderosos. Fosse diferente, Lula estaria muito mais preocupado com o impacto que a cobertura de casos de grande repercussão pública têm sobre o júri popular de pessoas comuns ou o quanto o preconceito enraizado na sociedade contribui com a condenação de pretos e pobres país afora todos os dias. O que Lula quer é proteger a sua próxima escolha, evitando que apanhe quando um indicado seu, na independência de seu papel, tomar rumo diverso do que sua militância defende.
No caso do STF, parece muito mais adequado para enfrentar a pressão sobre os votos individuais de magistrados as medidas recentemente adotadas pela Corte que reforçam o princípio da colegialidade, seja limitando prazos de pedido de vista ou forçando a submissão imediata ao plenário ou turma de medidas cautelares definidas monocraticamente.
Da mesma forma, protegeria a Corte de ataques a escolha de ministros menos vinculados ao Executivo - como a de um advogado pessoal do presidente que mesmo com notório saber jurídico sempre vai estar no escrutínio público severo em razão de suas relações pretéritas. Como também protegeria que não houvesse tanta mudança na jurisprudência ou nas visões que os ministros possuem a cada alteração na conjuntura política nacional.