O Tribunal de Contas da União abriu investigação para apurar irregularidades na atuação da Agência Nacional de Petróleo, Gás e Combustíveis (ANP) em casos relacionados à partilha bilionária de royalties da exploração de petróleo entre municípios. A “fiscalização na modalidade inspeção” foi aberta a partir de um parecer da auditoria da Corte sobre uma reportagem do Estadão a respeito do uso de uma entidade sem fins lucrativos para intervir junto ao órgão e à Justiça e mudar a distribuição dos valores a estas cidades.
Para entender o caso
- Contratos: Associação sem fins lucrativos, a Nupec celebra contratos sem licitação com prefeituras. A entidade atua no mercado de partilha de royalties da exploração de petróleo, que arrecadou R$ 74,4 bilhões no ano passado.
- Procurações: O município distribui procurações a advogados associados à Nupec para atuação no processo – na Justiça, eles conseguem decisões contra a Agência Nacional do Petróleo (ANP) que levam à redistribuição dos royalties.
- Investigação: O TCU avalia se a ANP agiu em defesa do interesse do órgão nas demandas judiciais citadas. Será investigado se houve injustiça na distribuição dos recursos após estas decisões, e se houve desvio de conduta de servidores públicos. Os processos administrativos do órgão também passarão pelo escrutínio da investigação.
Em setembro do ano passado, a reportagem do Estadão mostrou que advogados usaram a Associação Nupec para firmar contratos sem licitação com municípios e representá-los junto à Justiça e à ANP com o fim de enquadrá-los na distribuição dos royalties devidos a prefeituras que abrigam polos ou são atingidas pela exploração de petróleo. Segundo levantamento da reportagem, ao menos 20 municípios haviam firmado contratos com a entidade e conseguiram liminares para receber dinheiro em casos que envolviam R$ 1,5 bilhão. Os contratos preveem honorários de 20% sobre esta cifra.
À Justiça, os advogados ligados à entidade questionam a distribuição dos royalties. Após obterem liminares favoráveis às prefeituras, eles buscavam diretores da ANP acompanhados de políticos do Rio, onde o órgão é sediado, para tentar acelerar a liberação das verbas. Entre os associados da entidade está o advogado Vinícius Peixoto, que foi alvo da Operação Lava Jato por suspeita de lavagem de dinheiro de propinas de contratos da Usina Angra 3, e familiares de ministros do STJ e do STF. A ação contra Peixoto foi retirada da Justiça Criminal e repassada à Eleitoral em razão da conexão com supostos crimes eleitorais. Nesta vara caberá ao Ministério Público reformular a denúncia, o que não ocorreu até o momento.
Desdobramentos do caso
Após a reportagem, o subprocurador do MP junto ao TCU, Lucas Furtado, pediu a abertura da investigação. Ele afirma haver um “quadro sombrio de suspeitas que pesam sobre ações judiciais” e o “possível tráfico de influência junto a autoridades com poder decisório sobre a questão e atuação em desvio de finalidade de entidade sem fins lucrativos”. Ainda segundo Furtado, “não é de duvidar que possa se tratar de esquema orquestrado em nível mais amplo, desde a atuação da ANP”.
Após a representação, a auditoria da Corte analisou com mais profundidade o tema. Nesta etapa do processo, analisa-se se há materialidade, relevância e risco evidentes, além da competência para a Corte atuar.
Segundo o parecer, “caso haja irregularidades no âmbito da ANP relacionadas à distribuição de royalties do petróleo, cuja probabilidade de ocorrência não se afigura desprezível, a consequência poderá ser desde a ocorrência de elevadas injustiças na distribuição dos recursos entre entes federativos; custos de transação causado por judicializações; desvio de conduta de servidores públicos; e, se descobertos esquemas ilícitos, pode-se desencadear grave crise de confiança na Agência que regula o setor”.
De acordo com a auditoria, “consequências derivadas das alterações realizadas nos percentuais de distribuição desses royalties” teriam o poder de “causar impacto significativo e abrupto às receitas dos entes federados, com reflexo direto na vida dos munícipes”.
Quando uma decisão judicial interfere na partilha de royalties estipulada pela ANP, a agência dispõe de procuradores para correr às Cortes e pedir a suspensão destas ordens. Segundo a auditoria, é necessário analisar como a agência tem reagido a estas demandas jurídicas. “De posse das informações e processos, será possível avaliar se há contradição entre os argumentos apresentados nas ações, se a Agência tem recorrido ou acatado as decisões”, diz.
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Acolhendo o parecer da auditoria, o ministro do TCU Augusto Nardes afirmou que “é cabível a realização de fiscalização, na modalidade inspeção, com vistas a identificar possíveis falhas na atuação da Agência Nacional do Petróleo (ANP), tanto no âmbito dos processos administrativos, quanto com relação às decisões judiciais que têm determinado à redistribuição dos royalties”.
O que dizem a Nupec e a ANP
Questionada, a ANP afirmou que “está prestando ao TCU todos os esclarecimentos solicitados” e que determinou uma realização de auditoria interna em outubro de 2022. “Mesmo não tendo conhecimento de qualquer indício de envolvimento de servidores da Agência em irregularidades relacionadas à distribuição de royalties, com vistas a aprimorar o processo e buscar sanear qualquer possível impropriedade existente, a Diretoria Colegiada da ANP determinou, em outubro de 2022, a realização de auditoria interna, que está em andamento, a respeito desse assunto”, afirmou.
Em nota enviada à reportagem em setembro de 2022, a agência também disse “que utiliza de todos os recursos processuais que a lei lhe permite para defesa de seus entendimentos técnicos sobre todas as matérias de sua competência”, e que interpôs recursos contra todas as demandas judiciais mencionadas na reportagem. “Nesses recursos a ANP enfatiza a necessidade de dever ser prestigiada sua expertise, não devendo o Poder Judiciário se imiscuir em matérias extremamente técnicas da área de engenharia de petróleo e características de equipamentos.”
Sobre a distribuição dos valores, defendeu que calcula os porcentuais de participação dos municípios com base nos termos da legislação vigente e de decisões judiciais. Em setembro passado, a diretoria da ANP aprovou entrar com uma ação no Supremo Tribunal Federal contra decisões judiciais que enquadraram 181 municípios na partilha dos royalties do petróleo e gás. Segundo o órgão, estas decisões provocaram o pagamento de R$ 2,85 bilhões “indevidos” a prefeituras.
Na ocasião da publicação da reportagem do Estadão, A Associação Núcleo Universitário de Pesquisas, Estudos e Consultoria (Nupec) defendeu a legalidade de sua atuação e afirmou que os contratos são vantajosos para os municípios. Em nota, a entidade disse ser “uma das poucas especializadas em direito regulatório de petróleo e gás natural” e destacou que os “entes públicos, em virtude da excepcionalidade da demanda, optam por delegar sua representação judicial, tendo em vista que a matéria discutida é interdisciplinar e foge da atuação corriqueira da Procuradoria”. A entidade também disse seguir todas as regras previstas no estatuto da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB).
Ao Estadão, Vinícius Peixoto ressalta que o processo do TCU foi aberto para “apurar a ineficiência ou a irregularidade da ANP”. “A gente não foi intimado de nada relacionado a TCU, nada disso”
Peixoto nega ter uma boa relação ou trânsito na ANP. “Não há o menor favorecimento, ou o menor boa relação, pelo contrário, tanto é que a gente é mal recebido por eles. É sempre uma dificuldade muito grande. Não é nem só com a Nupec. Qualquer município brasileiro que tenha uma contenda com a ANP, ela tem por praxe agir dessa maneira”.
O advogado ainda critica a “ineficiência absurda da ANP”. “Isso está comprovado no TRF-1, no TRF-2, TRF-5, onde tem recebedor, tem jurisprudência contrária à ANP. E não é só no primeiro grau, é no primeiro, segundo, terceiro. Na realidade, eu vejo que é bom que o TCU esteja olhando porque a ANP tem de fazer o seu papel”.
A respeito da investigação na Operação Lava Jato, Peixoto afirma que o “processo não foi arquivado, mas saiu da Justiça Federal”. “Porque eles tentam colocar como réu, eu não sou réu. Foi levado para a Justiça Eleitoral. Justamente por lidar com áreas dessa magnitude, tentam sempre atrelar o nome da gente em alguma coisa, mas não tenho o menor receio porque não tenho nada a ver com isso. Porque não tenho menor ligação. O que tenho a ver com a área nuclear? Nada”, diz.
Investigações pedem para barrar R$ 277 milhões
Além do TCU, investigações conduzidas pelos Tribunais de Contas do Rio de Janeiro e de São Paulo levaram a decisões e recomendações que podem barrar até R$ 270 milhões em pagamentos de Prefeituras à Nupec em honorários advocatícios decorrentes de liberações de royalties de petróleo a estas cidades.
Um dos casos diz respeito à contratação da entidade e seus advogados associados pelas prefeituras de Guapimirim, Magé e São Gonçalo. A estas três cidades, a entidade garantiu na Justiça repasses de R$ 639 milhões, em contratos sem licitação, cujos honorários são de 20%. Ou seja, os honorários chegariam a até R$ 127 milhões.
Uma auditoria do TCE do Rio questiona o pagamento dos municípios à entidade após decisões liminares. Segundo o órgão, os pagamentos deveriam ocorrer somente após o julgamento final das ações, posto que liminares podem ser derrubadas a qualquer momento pelo Poder judiciário. O parecer recomenda atuação imediata da Corte antes que se “comprometa, de forma indevida, significativos recursos orçamentários, acarretando grave lesão ao erário”.O caso ainda não foi julgado pelo TCE.
Em São Paulo, uma auditoria do Tribunal de Contas de São Paulo também apontou irregularidades no contrato entre o município de São Sebastião e a Nupec. Em disputa judicial por R$ 700 milhões em royalties destinados pela ANP a Ilhabela, o município firmou contrato com a entidade, e pode pagar até R$ 700 milhões em honorários. Em uma ação popular movida por uma advogada, que juntou o parecer do TCE no processo, a Justiça de São Paulo mandou suspender pagamentos à entidade.