BRASÍLIA - Um vídeo do Hino Nacional sendo performado com o uso da linguagem neutra durante um comício do candidato do PSOL à Prefeitura de São Paulo, Guilherme Boulos, repercutiu negativamente e virou a principal notícia da política paulistana na terça-feira, 27. O verso “dos filhos deste solo, és mãe gentil” se tornou “des filhes deste solo, és mãe gentil” na versão cantada no evento, que ocorreu no sábado, 24, e contou com a presença do presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT). As alterações buscaram incluir pessoas que não se sentem incluídos nos gêneros masculino e feminino.
A linguagem neutra foi criada para incluir pessoas não-binárias (que não se identificam como homem ou mulher) em diálogos. Os defensores do termo acreditam que a mudança na língua portuguesa abraça ainda pessoas com mais de um gênero e é uma alternativa para quando não se sabe qual pronome deve ser utilizado para se dialogar com determinado indivíduo.
A linguagem neutra também busca retirar predominância do gênero masculino da língua portuguesa. Quem a utiliza argumenta que os dois pronomes definidos de gênero presentes na língua portuguesa – “o” e “a”, para homens e mulheres, respectivamente –, não atendem a todas as pessoas falantes do idioma. Por isso, propõe a utilização da terminação “e” para palavras ambivalentes ou sem gênero intrínseco, além da inclusão da vogal como pronome definido de gênero neutro.
Um exemplo comumente usado é como se referir a um ambiente composto por nove mulheres e um homem: usa-se “todos” e não “todas”. O uso do termo “todes” busca aglomerar todos os gêneros, de forma neutra.
Na linguagem neutra falada, como foi empregado no comício eleitoral de Boulos, “dos” e das” se tornam “des”, “filhos” e “filhas” se tornam “filhes”. Há outros exemplos: “ele” ou “ela” viram “elu” e “amigo” ou “amiga” viram “amigue”.
Não há uma definição universal da forma de se utilizar a linguagem neutra em textos. Alguns utilizam a letra “X” símbolos para substituir pronomes em textos. Desta forma, “ele” e “ela” se tornam “elx” ou “el@” e “todos” e “todas” podem virar “todxs” ou “tod@s”.
Linguagem neutra não está prevista na norma padrão da língua portuguesa
Este tipo de linguagem não está previsto na norma padrão da língua portuguesa, que estabelece que o papel do pronome neutro é exercido pelo artigo masculino. Por isso, o uso em vestibulares e concursos públicos pode acarretar penalizações por desvios da utilização da grafia formal.
Porém, apesar de não estar na norma padrão, o uso da linguagem neutra não é proibido. Em fevereiro do ano passado, o STF derrubou uma lei que proibiu a utilização no Estado de Rondônia em livros didáticos. Os magistrados entenderam que as legislações interferem em diretrizes e bases da educação, que é de competência da União.
Em maio deste ano, o ministro Flávio Dino suspendeu uma lei do Amazonas semelhante a que vigorou em Rondônia. Na ocasião, Dino afirmou que a língua portuguesa é viva e “está sempre aberta a novas possibilidades”. “A gestão democrática da educação nacional exige, inclusive para adoção ou não da linguagem neutra, o amplo debate do tema entre a sociedade civil e órgãos estatais, sobretudo se envolver mudanças em normas vigentes”, afirmou.
Boulos apagou vídeo do comício e opositores criticaram uso da linguagem neutra
Horas depois da repercussão do Hino Nacional cantado com “des filhes deste solo, és mãe gentil” no comício de Boulos, o candidato do PSOL à Prefeitura apagou o vídeo do comício das redes sociais dele.
Para a Coluna do Estadão, a assessoria de imprensa do candidato afirmou que a campanha nunca solicitou ou autorizou a alteração na letra do Hino Nacional. A equipe de Boulos alegou que a “produtora, organizadora do evento, foi responsável pela contratação de todos os profissionais que trabalharam para a realização da atividade, incluindo a seleção e o convite à intérprete” responsável pela performance.
Políticos contrários à linguagem neutra utilizaram as redes sociais para criticar Boulos. Uma delas foi a economista Marina Helena (Novo), também candidata à Prefeitura de São Paulo, que repostou o trecho do Hino. “Essa é a extrema-esquerda lulista que quer assumir a Prefeitura de São Paulo: lacração, desrespeito e destruição de nossos símbolos nacionais mais sagrados”, afirmou a candidata no X (antigo Twitter).
Segundo a Lei nº 5.700 de 1971, “em qualquer hipótese, o Hino Nacional deverá ser executado integralmente e todos os presentes devem tomar atitude de respeito”. A norma determina que não haja alterações na letra ou na melodia do hino nem a “execução de quaisquer arranjos vocais do Hino Nacional”, sob pena de multa.
Também pelo X, o ex-ministro da Cultura e deputado federal Mário Frias (PL-SP) disse a modificação “não é apenas uma mudança de palavras — trata-se de um desrespeito aos símbolos nacionais, à nossa cultura e à nossa língua”.
“Nas imagens, Lula aparece ao lado do psolista quando a canção é distorcida, e o trecho ‘dos filhos deste solo’ é alterado para ‘des filhes deste solo’”, declarou a deputada Carla Zambelli (PL-SP).
“Em um só movimento a dupla Lula/Boulos conseguiu agredir o Hino Nacional, a língua portuguesa e o aparelho auditivo de quem foi submetido à ‘apresentação’. É de onde menos se espera que não vem nada mesmo...”, escreveu o senador Ciro Nogueira (PP-PI), ex-ministro da Casa Civil de Jair Bolsonaro e presidente do Progressistas.