Se o governo de Luiz Inácio Lula da Silva permitir a invasão de terras produtivas, os proprietários rurais vão resistir. É o que diz o ex-presidente do Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra) Xico Graziano, de 70 anos. Ele afirma que os agricultores estão se organizando em vários cantos do País para enfrentar o que consideram uma ameaça promovida pelo Movimento dos Sem Terra (MST). “O estado democrático de direito vale para a esquerda e para a direita”, disse Graziano, que comandou o Incra no governo Fernando Henrique Cardoso (PSDB).
O País viu o MST invadir há cerca de 20 dias três fazendas da Suzano. Como criar consenso em vez de conflito na questão agrária?
Qual é o drama da agricultura hoje no Brasil? É o da exclusão tecnológica. Todos os estudos da Embrapa mostram que uma massa grande de agricultores não está conseguindo participar de um modelo virtuoso de produção. Como inserir essas pessoas no mundo tecnológico? É preciso romper a cultura que espera tudo do rei. Como incluir quem está no semiárido nordestino? Criar renda nas condições de lá é difícil. O que todo mundo devia pensar é que a mudança deve começar pela escola. A deficiência de nossa agricultura começa no banco escolar. Um grande programa educacional faria diferença: traria milhares de pequenos produtores para a modernidade. É preciso investir em conhecimento. Não é isso que o MST faz. Mas nós não estamos falando do fundamental.
E o que é o fundamental?
O fundamental é a Conab (Companhia Nacional de Abastecimento). É a chave do cofre. Isso já funcionou no governo anterior do Lula. Por meio dela, você compra arroz dos “MSTs”, faz projetos que se dizem agroecológicos, que o governo banca, gasta milhões. Essa é a estrutura de poder que se estabeleceu. O Incra tem um problema: nos Estados quem manda são as máquinas estaduais. No Incra do Pará quem manda é o (senador) Jader Barbalho (MDB). O Incra tem como fazer coisas, mas não muito. Agora, a Conab é empresa estatal e repassa o dinheiro ao esquema do MST. O arroz orgânico só foi bem por causa da Conab. Há uma máquina que se alimenta de recursos públicos e envolve centenas e milhares de agrônomos e cooperativas. É parecido com o “onguismo” da área ambiental.
Isso envolve milhares de pessoas e, portanto, votos. Como evitar isso?
Esse é o drama brasileiro. Não tem como. São currais eleitorais. Funcionava para a direita e funciona para a esquerda, nas periferias, etc. O que são os Tattos (família de políticos do PT) na zona sul? Não é a mesma coisa que o Milton (Leite, vereador do União Brasil) faz? Já viu kit construção? É dado pelo Milton Leite, pelo Arselino (Tatto, vereador do PT). Esse pessoal faz as pessoas invadirem.
O sr. acredita que, se o governo Lula tolerar invasões de terras, vai aumentar a polarização no País?
Se ele for tolerante com as invasões de terra, sim. Vai aumentar, e a informação que eu tenho de grupos é que os agricultores em vários cantos do País estão organizados para enfrentar invasões de terras. Estou muito preocupado com isso.
As pessoas estão se organizando de que forma?
É gente do bem, não são milicianos. Todo mundo vai pegar sua caminhonete e ir lá na frente dos caras: “Sai daqui”.
Com violência?
Não precisa ser com violência, mas com a imposição de que isso aqui é dos donos da propriedade, que vão reagir. Onde aconteceu isso, a polícia foi junto (com o proprietário).
É uma situação perigosa?
Perigosa e preocupante. Se fizerem isso na minha propriedade, vou lá também. É a defesa da propriedade. Ou o estado democrático defende a propriedade ou o proprietário vai ter de fazer isso. É simples. Isso significa uma regressão da civilização. O poder do Estado é justamente para isso. Então, Lula não vai fazer isso? Só que a ação de Lula e seu ministro da Justiça (Flávio Dino) é uma ação política. Quem tolera mais ou menos são os comandantes das forças policiais nos Estados, são os governadores. O governador da Bahia não pensa como o de Mato Grosso do Sul.
A tolerância com invasões pode afetar o agronegócio?
Francamente, dependendo da gravidade do que acontecer, se afugentar investimento, vai afetar. Eu não prevejo isso.
Na semana passada, o ministro Paulo Teixeira disse que o governo deve aceitar o pagamento de dívidas com o erário com terras. Acha que pode funcionar?
Não tenho ideia por que ele falou isso. Isso nunca apareceu em uma mesa de conversa sobre política agrária. De onde ele tirou isso eu não sei.
O sr. apoia a ação da oposição de fazer a CPI do MST?
Por que essa CPI está saindo? Ela é um freio político às invasões de terra.
Uma CPI seria o instrumento correto para isso?
Não sei. O certo seria a Justiça. Você entra na Justiça, que dá a reintegração de posse e a polícia vai lá e dá a reintegração. Aconteceu em Americana. A Justiça deu a reintegração de posse e o (governador) Tarcísio (de Freitas) mandou a polícia e foi feita. Neste momento, ou apostamos no estado democrático de direito, e vale para a esquerda e para a direita, ou estamos ferrados. Os caras do Bolsonaro invadem lá e cagam no busto de não sei quem e os caras daqui invadem as terras da Suzano. O princípio fundamental é o do estado democrático de direito. É inconcebível um país civilizado conviver com isso.
Relembre
Fernando Henrique Cardoso se relacionou com o MST e com o agronegócio. Qual a diferença da época do governo FHC com a forma de lidar com a questão agrária no governo Lula?
É simples. O Lula deu a chave da reforma agrária ao MST. Fui presidente do Incra. Qual o contexto? Você tinha um sistema latifundiário instalado no Brasil que estava em mudança. A modernização tecnológica da agricultura, a transformação capitalista da agricultura estavam acontecendo nos anos 1960 e 1970, com a Embrapa e o crédito agrícola. O Brasil importava 30% a 40% do que comia. Havia muita terra abandonada, devoluta e improdutiva. Há um período de transição, no qual o MST fica mais aguerrido para exigir a reforma agrária. O País havia sido redemocratizado. Fernando Henrique era o presidente. Fazia certo sentido não invadir terra. Aí começou a dar divergência política, divergência com o Fernando Henrique. O grande gosto dele era instalar a democracia, mais do que o Plano Real.
E no governo Lula?
Quando passa para o governo Lula, as terras improdutivas foram entrando em produção. A agricultura no Brasil foi crescendo. Agora não tem mais terra improdutiva no Brasil. O MST passou a assumir que a luta dele não era só pela reforma agrária, mas para mudar o regime agrário capitalista para o camponês cooperativista. E começaram a ir atrás de áreas em que havia dúvida de domínio. Hoje, o processo de modernização capitalista no campo está concluído. Acabou a janela para a reforma agrária.
Não há espaço para a reforma agrária nem como um programa social?
Isso já estava claro no início do século, quando Lula se elege. Tem de mudar o foco. Tem de se pensar em programa de crédito para a pequena agricultura e tratar dos territórios da agricultura familiar. O que eu dizia e digo é que pode ser um programa social, mas a que custo? O custo médio é de US$ 100 mil um lote de terra para uma família. Quer fazer política social a esse custo? Faça as contas. Você dá um pedaço de terra, você o condena ao sofrimento, por isso 70% a 80% em dois anos vendem a terra. Como fazer política social assim? A situação é trágica.
O sr. está dizendo que a reforma agrária não é uma pauta do século 21?
Com certeza. A reforma agrária não é pauta do século 21. Ela não tem mais sentido produtivo e muito menos é uma política social. Eu pego metade desse dinheiro e invisto em educação no campo. A forma de promover os pobres no campo é levar educação. Nunca se fez um programa de educação no campo. Pelo contrário, as escolas rurais foram fechando. A pesquisa de economia rural mostra que, se antes a terra era o principal fator de produção, hoje ele é a tecnologia.