RIO — Com o poder do presidente da Câmara, Arthur Lira (PP-AL), limitado pela decisão do Supremo Tribunal Federal que considerou inconstitucional o orçamento secreto, o presidente eleito Luiz Inácio Lula da Silva precisa de MDB, União Brasil e PSD como fiadores da sua coalizão para levar seu governo para o centro, avalia o cientista político Sérgio Abranches.
Autor de Presidencialismo de coalizão: raízes e evolução do modelo político brasileiro, ele diz que, com esse movimento, Lula pode prescindir do apoio do Centrão. Para Abranches, sem o instrumento derrubado pelo Supremo, o chefe da Câmara perde a força que teve no governo de Jair Bolsonaro. “Sem fontes espúrias de poder, ele (Lira) é um presidente (da Câmara) como outro qualquer.”
Eleito, Lula abriu diálogo com o presidente da Câmara, Arthur Lira, para a aprovação da PEC da Transição. A articulação é uma prévia de como deve ser a relação entre o novo governo e o comando da Casa?
Não é necessariamente o modelo que deve se perpetuar no novo governo porque a correlação de forças na Câmara vai mudar. Temos cerca de 200 deputados que não vão voltar. Vai haver uma mudança no plenário que afeta a relação entre o presidente da República e o presidente da Câmara. O presidente precisa ter uma maioria, e aceitar determinadas modificações que não comprometam o teor de suas propostas. O que aconteceu com a PEC da Transição? No final, ele (Lula) conseguiu o que queria. Fizeram concessões. Esse é o modelo de relacionamento. Com esse Ministério, ele tem uma maioria dentro da coalizão majoritária, que prescinde dos partidos que apoiaram Bolsonaro ou mesmo o Centrão. Precisará de poucos acenos.
O presidente da Câmara assumiu protagonismo no governo Bolsonaro. Ele manterá o poder de barganha no mandato petista?
A maior parte do poder de Arthur Lira se divide em dois pontos. Um era a quantidade de pedidos de impeachment contra Bolsonaro. O segundo ponto é o orçamento secreto, que permitiu que o relator do Orçamento manipulasse recursos para seus apoiadores. Esse poder foi reduzido com as mudanças que o Supremo determinou. Sobrou um pedaço, mas com regras que já não têm tanta capacidade discricionária. O poder dele (Lira) daqui para frente deverá sair da sua própria capacidade de articular apoios e de defender os interesses da Câmara. Sem essas fontes espúrias de poder, ele é um presidente como outro qualquer. O poder do regimento não é desprezível. O Congresso tem vários componentes de distribuição de benesses que vão desde a distribuição de cargos até as salas na Casa. Isso define prestígio. Como o Lira vai se comportar? Ele é um político muito pragmático, muito oportunista e ambicioso que não vai confrontar um presidente forte.
Lula busca o apoio de Lira e de partidos de centro-direita para garantir a governabilidade. Qual o custo desses apoios para as pretensões do novo governo?
Temos que considerar se o governo será um governo petista ou da frente democrática. Lula tem dito que vai ser de frente democrática. Mostra uma tentativa razoável de aproximação de uma coalizão da frente, não apenas um governo do PT. Embora tenha uma grande participação do partido nos ministérios, o presidente não abrirá mão de colocar pessoas de confiança em postos-chave. O presidente não consegue governar sem uma coalizão. Com essa nova correlação de forças do novo Congresso, os partidos da coligação formal do Lula, que o apoiaram na eleição, não são suficientes para garantir a governabilidade. É absolutamente indispensável que ele agregue o MDB, o PSD e o União Brasil para poder fazer a maioria e levar o governo mais para o centro e, com isso, poder prescindir do Centrão, que ainda está muito contaminado pelo bolsonarismo. Essa maioria não significa necessariamente custo. Significa pré-requisito. Ele tem que fazer as concessões necessárias, mas dentro de um projeto central.
Quais devem ser as prioridades do governo neste primeiro ano de mandato?
Hoje está muito claro que Lula pretende colocar o combate à fome e à miséria como prioridade. Será o eixo organizador da ação governamental. A popularidade de Lula e o apoio social dele serão fundamentais para chegar ao final de 2023 com bons resultados na redução da fome, da pobreza e na recomposição da estrutura de transferência de renda e de assistência social. Essa área depende muito pouco do Congresso. Já na área ambiental, ele vai ter que mexer na legislação que afrouxou a grilagem e o desmatamento. Lula e Marina (Silva, futura ministra do Meio Ambiente) vão precisar de apoio no Congresso e negociação interna no governo. E a terceira área é a educação. Ele diz que quer focar na educação fundamental. O que ele está dizendo, na verdade, é que ele quer mexer na estrutura da escola pública. O governo vai enfrentar muita dificuldade e vai precisar de muito diálogo com o Congresso na área da saúde. O fortalecimento do SUS implica discussões técnicas que impactam na ponta, nos hospitais e postos de saúde, onde os políticos gostam de mexer.
Serão tomadas iniciativas para reverter medidas do governo Bolsonaro?
Ele (Bolsonaro) destruiu estruturas com tradições que perpassam os governos desde Fernando Henrique Cardoso. Esse primeiro ano será tomado por um trabalho de reconstrução.
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Bolsonaro foi eleito em 2018 dizendo que governaria sem o “toma lá dá cá” e se entregou ao Centrão. O presidente eleito terá o mesmo comportamento?
Bolsonaro foi o presidente que mais se entregou ao toma lá dá cá. O orçamento secreto é uma excrescência absurda. (Bolsonaro) passou a implementação do orçamento ao Lira e ao Congresso. Bolsonaro foi tocar sua agenda infraconstitucional. A relação do Lula será diferente. Primeiro, porque ele tem experiência na vida do Executivo com o Legislativo. Vai ter uma relação de negociação e de concessões, mas no limite dos planos de governo. Além disso, Lula vai evitar de todas as maneiras as acusações de que está comprando votos no Congresso. Esse lado das trocas mais espúrias, que podem dar margens para corrupção.
Como será a atuação da oposição ao governo Lula? Esses partidos não são ideológicos. São oportunistas. Imaginaram que Bolsonaro tinha uma força que ele não tem. Vão correr, boa parte, para os braços do governo vencedor. Gente como (Hamilton) Mourão, (Sérgio) Moro e (Deltan) Dallagnol pode ter papel na articulação de uma oposição mais ideológica. Tem uns que são apenas fanáticos e outros que são apenas oportunistas. Será um governo típico do chamado presidencialismo de coalizão?
Um dos problemas que a democracia brasileira tem hoje é que, em 2018, se rompeu o modelo de formação de governo e de oposição que vinha desde a primeira eleição de Fernando Henrique. Tínhamos a disputa entre PT e PSDB pela Presidência e os outros partidos faziam uma disputa multipartidária pela bancada do Congresso e para fazer parte da coalizão do governo ou parte da oposição. Agora não há um partido para disputar com o PT a Presidência da República. Falta um novo PSDB que faça o papel de disputar a Presidência, pela centro-direita ou pela centro-esquerda, como uma alternativa ao PT. (Que) Caso não vença as eleições, que organize a oposição. Uma oposição que se veja como futuro governo, que tenha ideias concretas. Esse tipo de gente extremista que foi eleita ao Congresso não é capaz de fazer isso.