O senador Marcelo Castro (MDB-PI) destinou R$ 38,2 milhões para uma obra de saneamento básico tocada pela Construtora Jurema, de propriedade de um irmão dele, no município piauiense de Floriano. A obra já consumiu mais de R$ 105 milhões e é financiada com recursos federais, por meio de um convênio entre a prefeitura de Floriano e a Companhia de Desenvolvimento do Vale do São Francisco (Codevasf) no Piauí, chefiada por um filho do senador. Em 2019, a obra foi objeto de uma auditoria da Controladoria-Geral da União (CGU), que apontou indícios de superfaturamento nos trabalhos. Procurado, Castro negou ter sido responsável por enviar os recursos; e disse apenas que o Piauí não foi privilegiado na distribuição de verbas.
Com 62 mil habitantes, Floriano é a 5ª cidade mais populosa do Piauí e uma das mais importantes do interior do Estado. Os R$ 38,2 milhões foram empenhados no fim de outubro para a obra do esgotamento sanitário da cidade por meio de uma emenda orçamentária da Comissão de Desenvolvimento Regional e Turismo (CDR) do Senado Federal, presidida desde março deste ano por Marcelo Castro.
No ano passado, Castro foi o relator-geral do Orçamento de 2023. Alocou -- numa decisão que seria depois ratificada em votação pelo conjunto do Congresso -- 85% do total das emendas de comissão deste ano para a CDR, da qual ele se tornaria presidente em março de 2023. O senador piauiense diz que não sabia que seria eleito presidente da CDR até a data da eleição.
Ao longo de 2022, Castro já integrava a CDR do Senado, ainda que não como presidente do colegiado, e participou da elaboração das emendas da comissão para este ano. A emenda usada para enviar o dinheiro para a obra em Floriano é genérica: tem valor total de R$ 500 milhões e não específica quais municípios ou quais obras serão contempladas. Esta definição foi feita por Marcelo Castro este ano, já como presidente da comissão, numa negociação direta com o Poder Executivo.
O dinheiro para a obra em Floriano foi empenhado, isto é, reservado para pagamento, em 31 de outubro deste ano, pela Codevasf, uma empresa pública ligada ao Ministério da Integração e do Desenvolvimento Regional (MIDR). Apelidada de “estatal do Centrão”, a Codevasf expandiu sua área de atuação nos anos do governo de Jair Bolsonaro (PL) e é hoje uma das principais executoras das obras financiadas por emendas de congressistas ao Orçamento da União. O dinheiro ainda não foi transferido para a prefeitura.
A obra de esgotamento sanitário em Floriano é tocada pela Jurema através de um convênio entre a prefeitura de Floriano e a 7ª Superintendência Regional da Codevasf, chefiada pelo engenheiro agrônomo Marcelo Vaz da Costa Castro, filho do senador Marcelo Castro. Marcelo foi nomeado para o cargo em abril deste ano, com a assinatura do presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT). Ele substituiu no cargo Inaldo Pereira Guerra Neto, que era apadrinhado do senador Ciro Nogueira (PP-PI).
Em maio de 2019, uma auditoria da Controladoria Geral da União (CGU) analisou a execução dos trabalhos. Na época, a obra tinha consumido R$ 40,4 milhões – hoje, o montante pago já está em R$ 105 milhões, segundo informações do Portal da Transparência. Segundo os auditores, houve “superfaturamento e pagamento indevido” à Jurema, no montante de pouco mais de R$ 2 milhões. “Acerca da execução do contrato com a empreiteira, foram identificados superfaturamento e pagamento indevido, cujos montantes apurados importam em R$ 1.765.270,95 a liquidar e em R$ 555.736,51 já pagos à empreiteira”, diz um trecho.
A auditoria da CGU também avaliou o processo de contratação da construtora Jurema. Para os técnicos do órgão, não ficou claro qual a vantagem de contratar obras e equipamentos de um único fornecedor, ao invés de realizar duas licitações diferentes. “Com relação ao processo licitatório, a conclusão desta equipe foi pela ausência de comprovação da vantajosidade da contratação de obras civis e de fornecimento de equipamentos a partir de um único processo licitatório”, diz o relatório.
Como relator-geral do Orçamento de 2023, Castro inflou o valor das emendas de comissão deste ano, numa decisão que foi depois ratificada pelo conjunto do Congresso. O montante subiu 316% em relação ao Orçamento de 2022, atingindo a cifra de R$ 7,6 bilhões. E 85% deste montante (ou R$ 6,5 bilhões) foi alocado por Castro justamente na Comissão de Desenvolvimento Regional e Turismo (CDR) do Senado, da qual ele viria a se tornar presidente em março deste ano. Ou seja, todas as outras dezenas de comissões permanentes da Câmara e do Senado ficaram com os 15% restantes, como mostrou o Estadão. Castro diz que não sabia, de antemão, que se tornaria o presidente da CDR.
Emendas parlamentares são modificações feitas por congressistas ao Orçamento da União, de forma a enviar recursos para municípios onde eles têm votos. O dinheiro é usado para obras, como as de saneamento, ou para bancar serviços públicos. Formalmente, cabe a Marcelo Castro indicar ao governo para onde irão estes R$ 6,5 bilhões. Na prática, porém, a destinação dos recursos é pactuada com outros congressistas. Só o nome de Castro aparece, no entanto. É o mesmo problema do Orçamento Secreto: na época, todas as emendas eram assinadas pelo relator-geral do Orçamento, enquanto os nomes dos verdadeiros responsáveis pelas indicações permaneciam ocultos.
Em um post na sua conta no Instagram no dia 12 de dezembro, Marcelo Castro comemorou os R$ 6 bilhões em emendas distribuídos pela Comissão, alocados “por quase todos os Estados”, com “grande capilaridade”.
Assinado no fim de 2008, o convênio entre a Superintendência da Codevasf e o município de Floriano tinha o valor inicial de pouco mais de R$ 26 milhões. Depois da assinatura de vários termos aditivos, a validade do convênio se estendeu até maio de 2024, mais de 16 anos depois, e o valor autorizado chegou a R$ 105,8 milhões. Inicialmente, o objeto era a construção da rede de esgoto de três bacias (isto é, áreas da cidade). Hoje, já são seis.
A Jurema é considerada a segunda maior construtora do Piauí, com obras inclusive em outros Estados, principalmente da região Nordeste. É também uma das mais antigas do Piauí, contando mais de 50 anos. Até recentemente, era controlada por dois irmãos do senador Marcelo Castro: Humberto Costa e Castro e João Costa e Castro. Segundo a imprensa piauiense, os dois se desentenderam a respeito da estratégia de expansão dos negócios e Humberto, o “Beto”, decidiu deixar a empresa, fundando outra empreiteira. Hoje, a Jurema é de propriedade de João e de seu filho, João Eduardo Chaves Castro.
Natural de São Raimundo Nonato (PI), Marcelo Castro foi deputado federal durante vinte anos (de 1999 a fevereiro de 2019) antes de ser eleito senador nas Eleições de 2018. Foi também ministro da Saúde de Dilma Rousseff (PT) de outubro de 2015 a fevereiro de 2016. O senador nunca se envolveu nas atividades da Jurema, mas recebeu doações de campanha da empresa e dos irmãos. Em 2014, por exemplo, a Jurema e seus donos doaram R$ 180 mil para a campanha de Castro, em valores da época.
Procurado pelo Estadão, Marcelo Castro não negou ter enviado os recursos para a obra. Disse apenas que as indicações da Comissão de Desenvolvimento Regional e Turismo não privilegiaram o Piauí, uma vez que o Estado estaria em sétimo lugar na lista das unidades da federação com mais recursos destinados pelo colegiado este ano.
“O Congresso Nacional tem hoje 41 comissões permanentes. O senador Marcelo Castro é responsável apenas pela aprovação de emendas referentes à Comissão de Desenvolvimento Regional e Turismo (CDR), no biênio 2023-2024″, disse ele, em nota. “Em relação aos recursos indicados pela CDR durante a presidência do senador Marcelo Castro, até o dia 6 de dezembro (conforme tabela do SIOP) foram indicados cerca de R$ 185 milhões. O valor é o total de emendas indicadas por todos os parlamentares do Piauí. (...) O Estado do Piauí aparece na sétima posição entre os estados indicados pela CDR. Portanto, sem direcionamento desproporcional em relação aos demais Estados”.
R$ 53 milhões para o DER do Piauí
Além dos R$ 38,2 milhões para a obra em Floriano, Marcelo Castro também usou as emendas da Comissão de Desenvolvimento Regional e Turismo (CDR) para enviar 53,1 milhões para o Departamento de Estradas de Rodagem (DER) do Piauí, órgão que diversos contratos com a Jurema e outras construtoras pertencentes a parentes dele. Até o começo de 2022, o DER do Piauí era presidido por outro filho de Marcelo Castro, o engenheiro José Dias de Castro Neto – hoje ele é deputado federal pelo PSD do Piauí.
Quase metade dos empenhos para o DER do Piauí (R$ 24,4 milhões) aconteceram em dezembro, e o restante (R$ 28,7 milhões) no fim de outubro. Ao todo, o Portal da Transparência do Estado lista 30 contratos em andamento entre a Jurema e o DER, que somam um valor total de R$ 937,5 milhões. Só em 2023, a Jurema fechou três contratos com o DER-PI, que somam R$ 125,9 milhões. Com as informações disponíveis nas notas de empenho consultadas pelo Estadão, no entanto, não é possível precisar se os recursos empenhados irão para obras tocadas pela Jurema ou por outras empresas.
Em agosto deste ano, reportagem do jornal O Globo mostrou que parte dos recursos para uma obra viária da Jurema foi enviada por Marcelo Castro. Trata-se das obras na BR-235, estrada que ligará o Pará ao litoral de Sergipe, e que é executada pela Jurema no trecho que atravessa o Estado do Piauí. De R$ 62 milhões enviados para a obra, R$ 12 milhões chegaram por meio de uma emenda de Castro. O restante foi enviado por um aliado dele. O senador nega irregularidades e diz que se trata de uma obra importante.