Quase 60 anos depois, José Anselmo dos Santos, o cabo Anselmo, é ainda um enigma. A figura do ex-marinheiro que entregou seus companheiros de luta armada em troca de sua vida ao fechar um acordo com o delegado Sérgio Paranhos Fleury é um álibi atrás do qual parte da esquerda brasileira escondeu seus erros? Ou ele já era um agente provocador em 1964? Quais as mentiras que a narrativa do maior traidor da esquerda brasileira durante a ditadura militar escondem? O documentário Em Busca de Anselmo, que estreou na terça-feira, dia 12, na HBO, joga luz em um alguns dos episódios mais controversos da vida do líder da revolta dos marinheiros, na véspera da deposição do presidente João Goulart.
“Todas as suspeitas em relação a Anselmo, que nem sequer era cabo da Marinha, são válidas. Ele construiu a própria jornada e identidade de maneira confusa e nada confiável. Provar se Anselmo já era traidor, infiltrado ou agente da CIA é menos importante do que deixar clara a traição e os impactos de suas escolhas nas vidas de tanta gente”, afirmou Carlos Alberto Júnior, o idealizador do projeto, diretor e roteirista da série. Pronta desde 2018, a série entrevistou Anselmo dezenas de vezes. Também ouviu mais de 50 pessoas que conviveram com o ex-marinheiro – desde a infância até a morte, ocorrida em 15 de março.
O principal dos mistérios que a trajetória de Anselmo ainda guarda é quando ele começou a trabalhar para a polícia. Anselmo e os policiais do Departamento de Ordem Política e Social (Dops) garantem que isso só aconteceu em 1971. Essa é também a opinião da maioria dos marujos com os quais ele conviveu na Associação dos Marinheiros e Fuzileiros Navais antes do golpe. Por essa narrativa, transformar Anselmo em agente provocador já em 1964 diminuiria os pecados de quem buliu com a indisciplina nos quartéis, provocando a adesão de boa parte das Forças Armadas à ruptura democrática.
No dia 25 de março de 1964, Anselmo estava no Palácio do Aço, a sede do sindicato dos Metalúrgicos do Rio, onde falou para uma assembleia de mais de 2 mil marinheiros e fuzileiros, que se rebelaram contra a prisão de seus líderes. Seu discurso teria sido feito pelo PCB. Dois dos principais líderes sindicais do partido – Hércules Correa e Osvaldo Pacheco – participaram do encontro. O jornal Novos Rumos, uma das publicações do PCB, anunciava que a Nação inteira estava ao lado dos marinheiros amotinados. Na redação, o jornalista Luiz Mário Gazzaneo testemunhou quando o dirigente comunista Giocondo Dias viu a primeira página e disse: “Dessa vez ou nós vamos para o poder ou para a cadeia”.
A Marinha quis prender todos, mas não obteve o apoio do presidente Goulart. Seis dias depois, o presidente estava deposto. Naquele dia 25, o líder comunista Carlos Marighella telefonou à noite para um quadro do partido, o coronel Kardec Leme. Perguntou por que o oficial não estava no sindicato, onde se decidiria o destino do país. O coronel respondeu: “Se você ainda fosse marinheiro, eu poderia perder um minuto. Mas como você é uma pessoa informada politicamente, não vou te dar uma aula por telefone. Vou descer, tomar uma coca-cola e depois dormir.” Kardec Leme foi um dos cassados pelo Ato Institucional, assim como Marighella, Hércules e Pacheco.
Na série, Anselmo voltou ao Palácio do Aço. E releu o discurso de 25 de março. Levá-lo de volta aos lugares em que viveu sua história é um dos principais feitos do documentário. “Anselmo havia dito desde o início que iria a todos os lugares, menos a Cuba.” A volta aos endereços de sua trajetória tem o seu momento mais dramático quando Anselmo retorna ao antigo prédio do Dops de São Paulo, hoje transformado em Memorial da Resistência. Foi ali que ele conta como fechou seu acordo com o delegado Sérgio Paranhos Fleury para mudar de lado e se transformar no doutor Kimble, o informante que destruiu a Vanguarda Popular Revolucionária (VPR).
“Apesar de alguma descaracterização do local, a ala das celas permanece sem grandes alterações. A entrevista naquele local ajudou na reconstrução dos momentos em que ele passou sob custódia dos agentes da repressão. Realizamos filmagens com Anselmo nos Estados de São Paulo, Rio de Janeiro, Pernambuco e Sergipe”, contou o diretor. Para ele, a trajetória de Anselmo “é obscura por si só”. “Independentemente da escolha de recorte ou cronologia, estamos diante de um dos personagens mais sombrios da ditadura brasileira.”
O documentário explora ainda as histórias das vidas que cruzaram o caminho de Anselmo, concentrando-se sobre os seis militantes da VPR mortos no massacre da Chácara São Berto, em Pernambuco. Ocorrido em 1973, o episódio marcou o fim da atuação de Anselmo como traidor. Entre os militantes assassinados na arapuca montada pelo delegado Fleury com a ajuda do ex-marinheiro estava Soledad Barrett Viedma, então companheira de Anselmo, de quem estava grávida.
A série apoia-se apenas nas declarações dos entrevistados. Não há narrador. “Anselmo não precisa de ninguém para validar suas histórias. Ele sempre se mostrou orgulhoso das atrocidades, disposto não apenas a defendê-las, mas também a justificá-las”, afirmou o diretor. Depois da traição, Anselmo recebeu do Dops uma identidade falsa para fugir da vingança de antigos companheiros. Viveu clandestino por quase 50 anos. E foi assim, com o nome falso de Alexandre da Silva Montenegro, que acabaria enterrado em 16 de março, em Jundiaí, no interior paulista.