BRASÍLIA - De janeiro de 2019 até junho deste ano, a Polícia Federal já abriu 30 inquéritos com base na Lei de Segurança Nacional (LSN). Nos últimos 20 anos do período democrático, esse é o maior número de procedimentos instaurados utilizando o instrumento jurídico que a ditadura militar impunha para silenciar seus opositores. Somente nos primeiros seis meses de 2020, 11 inquéritos foram abertos com base na lei.
Por se tratar de uma lei que deveria ser usada contra aqueles que atentam contra o estado de direito, a Lei de Segurança Nacional prevê penas mais duras, que vão de 3 a 30 anos de detenção, do que o Código Penal. Especialistas afirmam que o uso da lei tem ainda um peso simbólico: é o Estado condenando aqueles que estariam atentando contra sua pátria.
A PF não revela de onde partiu cada solicitação de abertura de investigação – se da Procuradoria-Geral da República, da Presidência ou do Ministério da Justiça, por exemplo. Mas os dados mostram como o número aumentou desde que Jair Bolsonaro assumiu o governo, em janeiro de 2019. Nos oito anos da gestão de Luiz Inácio Lula da Silva (2003-2010) foram instaurados 29 inquéritos com base nessa legislação. Sob Bolsonaro, em um ano e meio, a PF abriu 30.
O alvo mais recente foi o ministro Gilmar Mendes, do Supremo Tribunal Federal (STF). Gilmar disse que o Exército está se associando a um “genocídio” ao se referir à crise sanitária instalada no País com a pandemia do novo coronavírus. O pedido partiu do Ministério da Defesa. O caso foi levado à PGR, que pode solicitar que a PF abra mais um inquérito com base na Lei de Segurança Nacional.
Em junho, o ministro da Justiça, André Mendonça, mandou a PF investigar o cartunista Renato Aroeira por uma charge. A abertura da apuração foi informada pelo Twitter. “Solicitei à Polícia Federal e à PGR abertura de inquérito para investigar publicação reproduzida no Twitter Blog do Noblat, com alusão da suástica nazista ao presidente Jair Bolsonaro”, dizia a postagem de Mendonça, compartilhada pelo presidente.
Aroeira criticou a “inconsequência do governo”. “Fiquei muito tenso, porque, apesar de já ter sido processado, é a primeira vez que sou questionado pelo Estado. Nem na ditadura isso aconteceu. Até então, eu tive processos partindo de personalidades, autoridades, governadores, o escambau. Mas é a primeira vez que viro inimigo público. Isso me deixou angustiado e nervoso”, disse o cartunista ao Estadão.
A charge mostra uma cruz vermelha com as extremidades pintadas de preto. Bolsonaro aparece ao lado do símbolo nazista, segurando uma lata de tinta preta.
‘Excessos’
Professor de Direito Penal da Universidade de São Paulo (USP), o advogado Pierpaolo Cruz Bottini classificou a Lei de Segurança Nacional como “entulho autoritário” e alegou que o governo tem cometido “excessos” ao usar a regra contra críticos e opositores. “O uso contra liberdade de expressão é uma forma de intimidar, restringir, limitar o pensamento. Temos instrumentos para proteger a honra e até a ordem pública, no caso de incitação ao ódio. Tem um Código Penal para isso”, disse o advogado. Na avaliação de Bottini, a LSN é “incompatível” com a Constituição de 1988 e com o estado democrático de direito. “É inconstitucional, precisa ser remodelada ou revogada, pois prevê uma série de crimes que não fazem sentido. Um exemplo é o crime contra a honra do presidente da República, como se ele fosse diferente dos outros cidadãos”, destacou. A Lei da Segurança Nacional foi sancionada pelo presidente João Figueiredo em 1983, durante a ditadura, para listar crimes que afetam a ordem política e social. A lista inclui aqueles cometidos contra a democracia, a soberania nacional, as instituições e a pessoa do presidente.
No atual governo, a lei muitas vezes não é efetivamente aplicada nem dá origem a inquérito na PF. O dispositivo, no entanto, tem sido usado para paralisar qualquer atitude crítica ao governo. Há um mês, servidores lotados no gabinete do ministro interino da Saúde, Eduardo Pazuello, foram obrigados a assinar um termo de sigilo sob a ameaça de serem enquadrados na LSN. Todos foram alertados de que, na situação de emergência vivida com a pandemia, “a divulgação de imagens e informações poderia comprometer a soberania, integridade e democracia”.
Procurados pelo Estadão por quatro vezes, Planalto, Casa Civil e Ministério da Justiça não quiseram se manifestar.