O governador Tarcísio de Freitas (Republicanos-SP) enfrentou dificuldades e desgastes na articulação política, mas chega ao final do primeiro ano de mandato com seus principais projetos na Assembleia Legislativa de São Paulo (Alesp) aprovados, entre eles a privatização da Sabesp. Eleito com o apoio de Jair Bolsonaro (PL), o governador teve problemas especialmente com os aliados do ex-presidente ao adotar um tom mais moderado em sua administração. Mesmo assim, o governo aprovou 18 das 26 propostas apresentadas, uma taxa de sucesso de 69% após um esforço concentrado para votar projetos em dezembro.
Embora tenha sido ministro da Infraestrutura e diretor-geral do Dnit, Tarcísio não tinha experiência em um cargo do Executivo e teve que fazer a primeira transição real de governo em quase 30 anos, período em que o Estado foi governado pelo PSDB.
Houve bate-cabeça entre secretários e deputados nos primeiros meses. Os parlamentares afirmam que no início não estava claro quem era o responsável pela articulação dos projetos enviados pelo governo. Isso atrasou a tramitação de alguns textos, que terminaram aprovados, e deixou outras matérias para 2024.
Outra dificuldade apontada é que a maioria dos secretários veio da iniciativa privada e demorou a se inteirar sobre como funcionava a máquina pública e a relação com os parlamentares. Como mostrou o Estadão, os secretários de Educação, Renato Feder, e de Saúde, Eleuses Paiva, são sócios de empresas que mantêm contratos com as próprias secretarias que comandam. Após a reportagem, Tarcísio proibiu novos contratos com a Multilaser, empresa de Feder.
“O que nós teremos no ano que vem com relação à base de governo é mais diálogo, conversa e entendimento”, disse Tarcísio em uma entrevista na terça-feira, 19. “A aprovação do projeto da Sabesp se deu porque nós dialogamos muito e trouxemos muitos argumentos para a base formar convicção [favorável à proposta]”, continuou o governador.
Além da autorização para vender a estatal de saneamento básico, ele também conseguiu aprovar a reforma administrativa, que cortou quase 5 mil cargos comissionados, a anistia das multas aplicadas durante a pandemia de Covid-19, que beneficiou Bolsonaro, e a entrada de São Paulo no Consórcio de Integração Sul e Sudeste (Cosud). Também foram aprovados reajustes para diferentes categorias do funcionalismo e uma emenda à Constituição que abre caminho para repassar uma parte maior da arrecadação com ICMS para cidades que preservam o meio ambiente.
A avaliação dos deputados é que se a relação estivesse mais azeitada também poderiam ter sido votadas neste ano a proposta de emenda à Constituição (PEC) que flexibiliza o gasto mínimo com educação e permite que 5 pontos percentuais sejam investidos na saúde, o Plano Plurianual, instrumento de planejamento das metas e gastos do governo de 2024 a 2027, e o projeto que de fato aumenta o repasse do ICMS Verde para os municípios. Os três projetos ficaram para o ano que vem.
Segundo Tarcísio, as prioridades em 2024 serão as áreas de saúde e de segurança. Ele vai enviar à Alesp projetos para regulamentar a polícia penal e para criar escolas cívico-militares no âmbito estadual. O projeto foi criado no governo Bolsonaro, mas descontinuado na gestão Lula (PT). “A gente vai tomar medidas, algumas de cunho legal, e demandar a Assembleia Legislativa, como é o caso dos temporários na Polícia Militar. Também vamos convocar militares da reserva para colocar mais gente na rua”, afirmou o chefe do Executivo paulista.
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Líder da bancada de oposição PT-PCdoB-PV, Paulo Fiorilo (PT-SP) avalia que a maior parte dos projetos que o governador conseguiu aprovar foram reajustes e benefícios aos servidores, que não enfrentaram oposição, enquanto teve que adiar ou desistir de projetos mais delicados, como o aumento da alíquota-base de ICMS no Estado. Segundo ele, o governo só conseguiu formar uma base quando passou a utilizar emendas voluntárias para conseguir apoio a partir de outubro.
“No fundo, o grande projeto que conseguiu aprovar foi a Sabesp e a um preço altíssimo, tanto do ponto de vista de emendas quanto da violência”, analisa o petista, que classifica a administração de Tarcísio como pendular. “Se por um lado é um governo eleito com apoio do Bolsonaro, por outro, com a história de ser técnico, sancionou a criação de feriado estadual no Dia da Consciência Negra e a distribuição de produtos à base de canabidiol para fins medicinais no SUS. Ao mesmo tempo, pressionado pelos bolsonaristas, vai fazer as escolas cívico-militares”, acrescenta Fiorilo.
Relação com bolsonaristas foi principal pedra no sapato
Politicamente, Tarcísio desagradou deputados bolsonaristas que se irritaram com o que consideram gestos do governador à esquerda. Entram no pacote o apoio à reforma tributária e a foto com o ministro Fernando Haddad (PT-SP), a sanção do projeto sobre o Dia da Consciência Negra, matéria proposta pelo deputado Teonilio Barba (PT), e o encontro com Graça Machel, viúva de Nelson Mandela, no Palácio dos Bandeirantes.
“Do ponto de vista operacional, eu acredito que o governador vai ter uma mudança de postura e os deputados da base serão mais prestigiados. Do ponto de vista político, a gente espera que o governador não avance à esquerda”, diz Lucas Bove (PL-SP), vice-líder do partido, que considera que o saldo do ano é “amplamente positivo” principalmente por causa Sabesp e a reforma administrativa.
O deputado avalia que não é possível esperar que Tarcísio se comporte como ele, Gil Diniz (PL-SP), Ricardo Salles (PL-SP) ou o próprio Bolsonaro, mas afirma que é papel dos parlamentares cobrar e fiscalizar para que o programa eleito nas urnas seja de fato implementado. “Ele é mais moderado”, diz Bove, comparando o governador aos bolsonaristas citados.
Na entrevista que fechou o ano, Tarcísio disse que não tem “grande preocupação” com os aliados de Bolsonaro que se declaram independentes na Alesp porque, como o governo adota uma linha que ele chamou de liberal e conservadora, dificilmente votam contra os projetos do Executivo paulista. O governador, no entanto, disse que tem “conversado bem” com o grupo e não vê “grandes atritos”.
Secretário de Governo, pasta responsável pelo relacionamento com os deputados, Gilberto Kassab (PSD-SP) também minimiza os problemas com os deputados mais próximos de Bolsonaro e considera natural que haja atritos. “O parlamentar sempre representa uma corrente ideológica, um setor ou uma região. Ele luta por suas ideias e programas e, às vezes, nessa luta que é legítima, existem momentos de tensão”, disse ele.
Oposição critica uso de emendas e falta de diálogo
Líder do PSOL, a deputada Monica Seixas (PSOL-SP) define o governo Tarcísio como “truculento”. Segundo ela, não há diálogo com a oposição e os parlamentares da base, sejam bolsonaristas ou do que ela chama de Centrão, também estão insatisfeitos com a articulação do governador.
De acordo com a parlamentar, Tarcísio tem a “chave do cofre” e consegue comprar o apoio dos deputados a seus projetos por meio das chamadas emendas voluntárias e a ameaça de vetar projetos de autoria deles. Isso teria acontecido, principalmente, na votação que autorizou a privatização da Sabesp. “Esse modelo [de articulação] não se sustenta por muito tempo. A partir do ano que vem isso começa a romper porque os deputados terão que lidar com a opinião pública durante as eleições”, diz ela.
Além das emendas impositivas, cujo pagamento é obrigatório, existem as chamadas emendas voluntárias, em que há margem para a negociação política. O instrumento já existia em gestões passadas, mas Tarcísio criou um portal de transparência onde é possível acompanhar quais deputados tiveram as indicações pagas pelo governo.
O governo pagou ou assinou convênios que somam R$ 354 milhões até o dia 18 de dezembro. O partido que mais recebeu recursos das indicações foi o PL (R$ 66 milhões). Com 18 deputados, o PT recebeu R$ 24,9 milhões, menos da metade do que o PSDB (R$ 58 milhões), que tem nove parlamentares. O Republicanos, partido do governador cuja bancada é formada por oito deputados, recebeu R$ 48 milhões.
Seixas afirma que o governo paulista tenta passar uma imagem democrática ao repassar recursos para integrantes de vários espectros políticos. Ela contesta a tentativa e aponta que há disparidade entre os valores pagos à oposição e a deputados da base, que votam com o governador. A federação PT-PCdoB-PV aceitou receber as indicações, mas PSOL e Rede se negaram. Todos são oposição.
Houve um acordo inicial para que deputados de oposição recebessem R$ 5,5 milhões e os da base, R$ 11 milhões. Porém, segundo Fiorilo, do PT, o governo prometeu mais R$ 20 milhões para os parlamentares que votassem pela privatização da Sabesp. “Só não sei se esses R$ 20 milhões terão a mesma transparência dos R$ 11 milhões [que estão no portal da transparência”, alertou o petista.
Procurado, o governo de São Paulo confirmou os valores do acordo inicial com os deputados, mas não disse nada sobre o suposto pagamento adicional por apoio na venda da Sabesp. “A liberação e execução das indicações parlamentares variam de acordo com a complexidade de tramitação de cada projeto. Indicações de Saúde beneficiando prefeituras são, em tese, mais ágeis para tramitar pois geralmente se concluem através de transferências fundo a fundo. Outros tipos de convênios e beneficiários possuem maior complexidade, geralmente requerendo maior prazo para devida instrução processual”, disse o governo, acrescentando que as indicações precisam seguir a lei e o portfólio de projetos da gestão.
Monica Seixas considera ainda que a Alesp se apequenou na gestão Tarcísio na comparação com o governo do antecessor João Doria. “Os projetos do governador quase nunca saíam daqui do jeito que chegavam. Com o Tarcísio, nunca se altera o texto”, disse a líder do PSOL.