BRASÍLIA - O Tribunal de Contas da União (TCU) determinou, nesta quarta-feira, 15, que o Exército cancele as autorizações concedidas a Caçadores, Atiradores e Colecionadores (CACs) que foram condenados ou que estejam com mandados de prisão em aberto. O julgamento é baseado na auditoria feita pela área técnica do tribunal – e revelada pelo Estadão – que apontou que o Exército liberou armas de fogo a pessoas condenadas por crimes como tráfico de drogas, homicídio e violência doméstica.
Apesar de ratificar a maior parte dos apontamentos da área técnica, o plenário da Corte de Contas poupou militares de investigações que pudessem responsabilizá-los por falhas no controle de armas. Um dos pontos desconsiderados foi o descumprimento de uma decisão de 2017 que obrigava o Exército a digitalizar o sistema de fiscalização de produtos controlados. Sete anos depois, a Força ganhou mais um ano para cumprir a ordem, prazo que poderá ser alargado, desde que justificado.
Em nota, o Exército informou que “aguarda a prolação do acórdão para que sejam adotadas as medidas administrativas com vistas ao cumprimento das recomendações e/ou determinações” do tribunal. Disse também que “pauta suas ações pela legalidade e transparência, e todas as medidas necessárias vem sendo adotadas para aprimorar seu Sistema de Fiscalização”.
A representação do Ministério Público junto ao TCU citou o processo como de “extrema relevância para a nação” e de “máxima urgência para a segurança pública do País”. Mesmo assim, o julgamento durou cerca de dez minutos, com apresentação do voto do relator, ministro Antônio Anastasia, de forma abreviada, sem manifestação de órgãos e entidades interessados e sem debate no plenário.
Durante a auditoria, a área técnica se deparou com o que definiu como “falta de dados confiáveis” do Exército e com uma “descentralização” de informações que “dificultou a avaliação e o monitoramento das atividades de fiscalização e vistoria”. Apesar do registro, o ministro relator destacou, no voto, a “atitude colaborativa” e o “total interesse da atual administração do comando do Exército em realizar esses ajustes”.
Além de determinar os cancelamentos, a Corte de Contas também obrigou os militares a consultarem bancos de dados das polícias e do Judiciário para verificar implicações criminais contra os que apresentam requerimentos para serem registrados como CACs. A auditoria mostrou casos em que os interessados apresentam documentos emitidos em estados onde não respondem a crimes.
Contudo, a inclusão desse procedimento de checagem nos bancos de dados só precisa começar dentro de seis meses, contados a partir da ciência sobre a decisão. O mesmo prazo foi definido para a inclusão de uma “trava” no sistema de controle de venda de munições que impeça registros com informações inválidas. A auditoria revelou compras em nome de pessoas falecidas e até sem que as armas dos compradores fossem identificadas.
Apesar dos novos prazos, o TCU também abriu ao Exército a “possibilidade de este Tribunal, mediante justificativas circunstanciadas apresentadas na fase de monitoramento, autorizar a programação das medidas corretivas mediante planos de ação, com prazos adequados à complexidade de cada objetivo”.
PF deve assumir fiscalização dos CACs em janeiro
As novas determinações do TCU não esclareceram como se dará o cumprimento das recomendações feitas ao Exército nas datas que vencem a partir de 2025. É que a partir de janeiro do próximo ano a atribuição de controle dos CACs deve ser assumida pela Polícia Federal, que ainda faz exigências de pessoal para poder executar a atividade.
Consultor do Instituto Sou da Paz e pesquisador de políticas armamentistas, Bruno Langeani afirmou que a decisão do TCU é “benevolente” com o Exército e abre margem para que os militares apenas esperem a transição do serviço para a PF.
“Já temos prazos muito alongados. Considerando que a fiscalização passa para a PF em janeiro, determinar medidas com 12 ou 18 meses para cumprimento permite o Exército ficar de braços cruzados e dizer que ficou inerte por 10 ou 20 anos, mas agora esse é um problema da PF. E essa negligência é premiada com o fato de não ser responsabilizado”, frisou.
A auditoria do TCU analisou o controle de armas por parte dos militares entre 2019 e 2022 e é considerada o mais amplo “raio-x” dos reflexos da liberação de armas para civis desde a CPI do Tráfico de Armas e Munições, de 2006.
De 2019 a 2022, 5.235 pessoas em cumprimento de pena puderam obter, renovar ou manter os chamados certificados de registro (CR) de CAC. Outras 2.690 pessoas conseguiram o registro mesmo com mandados de prisão em aberto. Também foram identificados 22.493 CACs suspeitos de serem laranjas – uma vez que estão no Cadastro Único (CadÚnico), base de dados do governo federal com pessoas de baixa renda – e 21.442 armas em nome de falecidos.
A análise do TCU foi realizada a partir de provocação da Comissão de Fiscalização Financeira e Controle da Câmara dos Deputados, a pedido do deputado Ivan Valente (PSOL-SP).
CACs e crime organizado
O número de CRs de CACs pulou de 191,4 mil, em 2018, para 898,3 mil no último ano do governo de Jair Bolsonaro (PL), uma alta de 469%. O grupo se tornou o maior segmento armado do Brasil, superior até ao conjunto de pessoal ativo de todas as polícias militares e Forças Armadas.
Desde que Bolsonaro passou a afrouxar critérios para acesso a armas por civis por meio dos CACs, inquéritos policiais vêm identificando intermediários da compra de armas para facções como o Primeiro Comando da Capital (PCC). Em São Paulo, um deles foi encontrado com arsenal avaliado em R$ 50 mil, apesar de renda declarada de R$ 2 mil.