No domingo, bolsonaristas radicais marcharam pela Esplanada dos Ministérios, em Brasília, e invadiram e depredaram as sedes dos Três Poderes. Os ataques evocaram com mais força expressões como terrorismo, golpe de Estado, intervenção federal e militar. O que, afinal, aconteceu na capital federal?
Para o professor docente do departamento de História da UFMG Rodrigo Patto Sá Motta, as ações praticadas por extremistas no último domingo podem ser classificadas como uma tentativa de golpe de Estado. Segundo ele, é preciso ainda descobrir se houve participação de agentes do Estado para avaliar a dimensão da investida golpista.
De acordo com a advogada criminalista Maíra Fernandes, professora convidada do curso de Direito da FGV-RJ, uma série de crimes, entre eles o de golpe de Estado, pode ser identificada nos atos de domingo. Entendimento similar é o do professor Thomaz Pereira, docente de Direito Constitucional, da mesma instituição. “São atos de vandalismo dentro de um contexto específico (tentativa de golpe de Estado)”, pontua ele.
Na avaliação de Carlos Fico, professor titular de História do Brasil da UFRJ, não é possível comparar o que ocorreu domingo com o golpe de 1964. Segundo Fico, houve pouquíssimas chances de sucesso e a investida estava fadada ao fracasso. “A avaliação de que seria possível derrubar o governo fazendo o que fizeram foi bastante precária.”
Veja como os especialistas entendem as expressões
Golpe de Estado
Diante dos ataques contra os maiores símbolos da democracia brasileira: os prédios do Judiciário, do Legislativo e do Executivo, os especialistas ouvidos pelo Estadão afirmam que o intuito dos radicais foi uma tentativa de golpe de Estado.
Com isso, de acordo com eles, o artigo 359-L, como traz o Código Penal, é violado. O conceito abarca as dimensões de se tentar, com emprego de violência ou grave ameaça, abolir o estado democrático de direito, impedindo ou restringindo o exercício dos Poderes constitucionais. A pena prevista é de reclusão, de quatro a oito anos, além da pena correspondente à violência.
Entre as pautas dos golpistas, por exemplo, está a destituição do presidente da República eleito democraticamente, ferindo também o artigo 359-M: “Tentar depor, por meio de violência ou grave ameaça, o governo legitimamente constituído”, com pena que vai desde a reclusão, até quatro a doze anos, além da pena correspondente à violência.
Motta, da UFMG, afirma que há escalas diferentes para um golpe ocorrer. Ele lembra que, em 1964, os militares tomaram a iniciativa, mas também foram seguidos por parte do Judiciário e do Poder Legislativo. “O Congresso argumentou a vacância do cargo da Presidência com o argumento que (o presidente João) Goulart estava fora do território nacional, mas ele estava no Rio Grande do Sul”, diz o professor, autor do livro Passados presentes – O golpe de 1964 e a ditadura militar.
“O golpe de Estado ocorre quando você tem situações em que determinados grupos fazem intervenção para interromper a normalidade institucional e atacar instituições”, diz. Ele afirma, a partir do que diz a Constituição, que os indivíduos com este intuito promovem ação política voltada para mudar, de maneira abrupta e violenta, a situação política de um país, derrubar um governo a força e um golpe contra as instituições, para instituir nova forma de poder.
Terrorismo
Para Carlos Fico, da UFRJ, dentro do ensaio golpista, é possível identificar expressões também do terrorismo. Fico diz ainda que a prática do crime tem a peculiaridade de impor o terror por meio de ações violentas para causar comoção.
“O Brasil tem uma Lei que disciplina o crime. Para tal, é preciso entender a motivação, que pode ser por xenofobia, intolerância religiosa, etnia, etc. O texto diz também que o indivíduo precisa transportar ou portar explosivos, químicos nucleares, sabotar funcionamento de meios de comunicação, transporte”, afirma Maíra, professora da FGV-RJ.
Em 2016, a então presidente Dilma Rousseff regulamentou o entendimento de terrorismo na Constituição Federal. O texto prevê como terrorismo usar ou ameaçar usar, transportar, guardar, portar ou trazer consigo explosivos, gases tóxicos, venenos, conteúdos biológicos, químicos, nucleares ou outros meios capazes de causar danos ou promover destruição em massa.
Vandalismo
Maíra destaca que os atos como os de domingo também vão além do vandalismo, visto que este tipo de prática não requer motivação política. “Pode ser esse crime de dano qualificado, esse quebra-quebra, também lesão ao patrimônio dos arquivos, dos bens, por exemplo.”
“O vandalismo puro acontece com ações sem fins políticos. Ontem (domingo) não foi apenas vandalismo”, analisa Motta. Segundo ele, houve, na verdade, ações de vandalismo conectadas a um projeto político autoritário e golpista do governo de Jair Bolsonaro.
Intervenção federal
O professor Thomaz Pereira lembra que a intervenção federal ocorre excepcionalmente em áreas que seriam de competência estadual ou distrital e passam para responsabilidade do governo federal, como ocorreu em 2018. À época, o então presidente Michel Temer decretou intervenção na segurança do Rio de Janeiro. No caso deste domingo, o decreto também vale para a segurança de Brasília.
“A intervenção federal existe e é regulada na Constituição, inclusive com os requisitos necessários para acontecer. A medida pode ser também controlada pelo próprio STF. Isso mostra que o dispositivo está dentro da lei, dentro do funcionamento das instituições”, reforça Pereira.
O historiador Fico lembra que, em outros períodos da história, sobretudo durante a Primeira República, a intervenção federal, regulada por outras constituições que não a atual, foi usada de forma abusiva e autoritária. Depois da CF de 1988, a medida foi regulada e prevista como exceção.
“Não haverá intervenção federal exceto nos casos previstos como grave comoção e comprometimento da ordem pública. O presidente foi bem ao recorrer a esse instrumento”, avalia o professor da UFRJ.
Intervenção militar
Motta diz que intervenção militar não é respaldada na Constituição. Segundo ele, os bolsonaristas radicais usam de um jogo de palavras para suavizar a real intenção de querer o regime para moldar a opinião pública.
Tem o mesmo entendimento Pereira. “O pedido ganhou difusão nas redes bolsonaristas. Esta interpretação é um absurdo. É um entendimento marginal, negacionismo jurídico.”
Fico salienta que o governo Bolsonaro ficou marcado pela “tradição brasileira intervencionista militar”. Isso ocorre, por exemplo, quando militares vão às redes sociais para opinar sobre a política do País. “A intervenção militar pode ocorrer de muitas formas. Não há respaldo. Mas já aconteceu no Brasil. A intervenção efetiva, o golpe de Estado, é uma tentativa de depor o presidente, fechar o Congresso ou o STF”, descreve.