Por Samuel Lima e Levy Teles
Após vencer a disputa presidencial, o presidente eleito Luiz Inácio Lula da Silva (PT) enfrenta a primeira "prova de fogo" nas redes ao anunciar os grupos temáticos e os nomes da transição de governo. Para além da esperada rejeição na ala bolsonarista, a equipe do petista agora lida com cobranças públicas de partidos de esquerda e movimentos sociais, sobretudo em função da representatividade.
A Coalizão Negra por Direitos, por exemplo, destacou em sua conta no Twitter uma crítica de uma ativista na COP-27 a respeito da prioridade do combate ao racismo no novo governo. "Onde estão os quilombolas e indígenas na transição de governo? As pessoas negras no debate ambiental? Não estou vendo na transição, espero ver no governo", disse a advogada de direitos humanos Sheila de Carvalho.
Quatro dias antes, lideranças do movimento negro de nove partidos que apoiaram Lula no primeiro ou no segundo turno pediram a participação de negros de maneira transversal, ou seja, em todos os grupos temáticos, e não apenas na área da igualdade racial.
Levantamento do Estadão no Twitter encontrou diversas publicações de acadêmicos e ativistas cobrando maior representatividade da população negra, feminina, indígena e LGBT no grupo que prepara a chegada do terceiro mandato de Lula. A formação está prevista em lei e funciona como um esboço de como será o novo ministério -- frequentemente seus integrantes se tornam membros do primeiro escalão do governo eleito.
Denilde Holzhacker, cientista política e professora de relações internacionais da ESPM, entende que ainda é cedo para verificar se haverá um desbalanço em termos de representatividade na equipe de transição de Lula, mas de fato, na visão dela, este deve ser o primeiro questionamento entre os apoiadores. Essa preocupação está relacionada tanto com a participação ativa desses grupos durante a campanha quanto com os ataques recebidos e as situações de vulnerabilidade nos quatro anos de governo de Jair Bolsonaro (PL).
"Há uma expectativa entre esses grupos para que a agenda seja de fato incorporada, não apenas no discurso, mas também na prática, o que envolve ter diversidade no governo", analisa. Além disso, o debate sobre representatividade passa ainda pela nomeação de pessoas qualificadas para os mais diferentes postos, e não apenas em pastas ligadas aos direitos humanos, em uma "mudança de cultura".
Para a especialista, o maior desafio nesse sentido passa pela negociação do presidente eleito com o bloco de partidos que apoiou sua candidatura. "Muitos desses cargos serão indicados pela base, incluindo partidos de centro-direita, em que essas agendas não são tão prementes. E outro ponto é como absorver pautas amplas que encontram divergências mesmo no campo das esquerdas."
Procurada pelo Estadão, a assessoria da transição disse que apenas oito dos 31 grupos técnicos foram divulgados. Nesta quinta-feira, 10, a equipe ganhou o reforço de nomes como Anielle Franco, irmã da ex-vereadora do Rio assassinada Marielle Franco, o advogado Silvio Almeida, a ativista LGBT Janaína Barbosa de Oliveira, os ativistas da Coalizão Negra por Direitos Douglas Belchior e Thiago Tobias, a ex-ministra da Igualdade Racial Nilma Lino Gomes, a militante do Movimento Negro Unificado Ieda Leal e o assessor Rubens Linhares, que coordena o setor de Pessoa com Deficiência do PT.
Pressão social
A primeira onda de questionamentos surgiu com uma foto publicada pelo senador Humberto Costa (PT), que mostra uma reunião entre parlamentares para discutir o orçamento do próximo ano. O político escreveu no post a frase "começou a transição" e foi indagado por seguidores a respeito da composição da mesa. "Tá parecendo o ministério do (ex-presidente Michel) Temer", escreveu um usuário, que recebeu uma justificativa do petista.
"Enquanto feminista negra preciso fazer um reparo público. A equipe de transição federal é majoritariamente masculina e branca. Isso é um agravo", comentou a candidata ao governo do Distrito Federal pelo PSOL, Keka Bagno. "Ainda não tem posse, mas a história se repete", escreveu a gestora de programas do Instituto Marielle Franco, Marcelle Decothé. Ela questiona onde estão as mulheres, os negros, os nordestinos e os periféricos no grupo de transição.
As cobranças se estendem para outras minorias, como pessoas com deficiência e indígenas, além da distribuição regional de indicados. "Cadê as pessoas com deficiência, presidente Lula? Dezenas de milhões precisam dessa representatividade já na transição", afirmou o presidente da Comissão de Defesa da Pessoa Autista da OAB, Emerson Damasceno. "Acabei de receber a lista da equipe de transição da Educação e só tem pessoas maravilhosas e competentes. Mas, a não ser que eu tenha me enganado, não tem ninguém ligado à educação inclusiva. Seria muito importante", escreveu a deputada estadual eleita por São Paulo Andréa Werner (PSB).
referenceAs reações aparecem em uma lista divulgada pelo coordenador da equipe de transição e vice-presidente eleito, Geraldo Alckmin (PSB). Ao publicar uma relação de nomes ao lado do estado de origem, usuários no Twitter questionam o motivo de essas duas regiões contarem com apenas quatro nomes, de um total de 36. "Caro vice-presidente, o Brasil é bem maior que o Sul e Sudeste. Tenho certeza que há nomes com capacidades técnicas e profissionais no Norte e Nordeste também com competência para pensar o Brasil do futuro", advertiu uma seguidora.
Entre representantes indígenas, também houve cobranças antes do anúncio da criação do Ministério dos Povos Originários. Ao comentar a indicação de Guilherme Boulos (PSOL) para a equipe, a deputada federal eleita por Minas Gerais Célia Xakriabá, do mesmo partido, pediu uma presença indígena na equipe de transição.
Transição como prioridade
A transição de governo virou prioridade nas redes dos principais cabos eleitorais de Lula. Aliados como o deputado federal André Janones (Avante-MG) se esforçam para pautar a discussão nas redes em cima da PEC da Transição e outras movimentações nos bastidores, e a conta oficial do petista estimula a militância a entrar em grupos de disparo de mensagens no WhatsApp especificamente sobre o assunto.
Segundo o Monitor de Redes do Estadão, o debate envolveu cerca de 40 mil postagens por dia no Twitter esta semana com referências diretas ao grupo de transição, coordenado pelo vice-presidente eleito Geraldo Alckmin (PSB), e ao novo governo. No Facebook, o número de posts sobre o tema chega a 25 mil em uma semana, e no Instagram, outros 5 mil, segundo dados da ferramenta de monitoramento CrowdTangle, da Meta.
Entre as postagens mais relevantes aparecem tanto anúncios de Alckmin e de outros nomes da transição quanto críticas de apoiadores do presidente Jair Bolsonaro (PL), derrotado nas urnas. Guilherme Boulos, tido como radical pela direita por coordenar o Movimento dos Trabalhadores Sem Teto (MTST), e o senador Renan Calheiros (MDB) foram dois alvos frequentes. O grupo também critica integrantes da área econômica, como o ex-ministro da Fazenda do governo Dilma Rousseff (PT) Nelson Barbosa, e classifica a "PEC da Transição" de estelionato eleitoral.