O ministro do Supremo Tribunal Federal (STF) Dias Toffoli ignorou documentos que já estavam nos autos do processo ao dar a decisão que anulou provas do acordo de leniência da empreiteira Odebrecht. É o que aponta o procurador Ubiratan Cazetta, presidente da Associação Nacional dos Procuradores da República (ANPR).
Na decisão do dia 6 de setembro, Dias Toffoli invalidou as provas extraídas dos sistemas informatizados Drousys e MyWebDay – usados pela empreiteira baiana para contabilizar os pagamentos de propinas a políticos.
Segundo o ministro, as provas seriam imprestáveis porque os procuradores do Ministério Público Federal (MPF) não teriam feito o pedido formal às autoridades suíças, que obtiveram as informações ao investigar a empreiteira.
No entanto, documentos que provavam a realização do pedido já constavam dos autos do processo, uma Reclamação (a de número 43.007) movida pela defesa do presidente Lula (PT), diz Cazetta. A documentação foi juntada pela Corregedoria do MPF.
Pedidos de provas a autoridades de outros países são feitos por meio do Departamento de Recuperação de Ativos e Cooperação Internacional (DRCI) do Ministério da Justiça. Em resposta ao STF, o DRCI primeiro disse que não havia localizado os pedidos de cooperação do MPF. No começo desta semana, porém, o órgão voltou atrás, e informou que encontrou os documentos ao usar outro termo de busca.
Cazetta explica, ainda, que as provas dos sistemas Drousys e MyWebDay poderiam ser usadas mesmo sem o envio das autoridades suíças, uma vez que foram fornecidas meses antes, em 23 de março de 2017, pela própria Odebrecht, por meio de seu acordo de leniência. O material enviado pelas autoridades suíças em setembro de 2017 foi usado apenas para checar a integridade das provas fornecidas anteriormente pela Odebrecht, explica ele.
“Esta discussão toda é importante para trazer os fatos, mas nada disso altera as decisões do Supremo que declararam nulas as provas do Drousys e do MyWebDay. Estas decisões já transitaram em julgado. Certas ou erradas, elas estão afirmando uma nulidade. Já transitaram em julgado e não há como reiniciar o processo. Esta discussão não está sendo feita pela ANPR”, ressalta Cazetta.
“Não estamos buscando a recuperação da validade probatória. Estamos apenas dizendo que a atuação dos membros do MPF já foi objeto de investigação pela Corregedoria do MPF, que concluiu pela sua validade, e isso foi informado ao Supremo. Não se pode investigar de novo para punir estas pessoas, pois elas já foram investigadas e não há nada de irregular”, ressalta.
Em longa entrevista ao Estadão, Cazetta explica em detalhes o processo. Abaixo, os principais trechos:
O sr. poderia explicar o que é exatamente este acordo de cooperação Brasil x Suíça e por que Dias Toffoli anulou as provas dos sistemas Drousys e MyWebDay?
A decisão de Toffoli foi proferida num tipo de processo chamado de “reclamação”. No caso, é a Reclamação 43.007. Para que serve a (classe de processos chamada) reclamação? Ela é a possibilidade que qualquer pessoa tem de ir diretamente ao Supremo para pedir que uma decisão do Supremo que esteja sendo desrespeitada seja devidamente cumprida (...).
No caso específico dessa Reclamação 43.007, a defesa do hoje presidente Lula alega que havia uma decisão do STF dizendo que a defesa tinha direito a acessar o acordo de leniência entre o Ministério Público Federal e a empresa Odebrecht, e acessá-lo na íntegra (...).
Na primeira instância, o juiz Sergio Moro, segundo a defesa, sempre ouvia antes a própria Odebrecht e o Ministério Público Federal. A defesa então dizia “não, eu quero ter acesso ao acordo, independente do que pense a Odebrecht ou o MPF”. Este era o pedido original na reclamação. E aí veio a ordem do STF para a 13ª Vara da Justiça Federal em Curitiba dar acesso integral ao acordo.
Depois, numa outra decisão ainda dentro desta reclamação, o então relator, o ministro Ricardo Lewandowski, concedeu o que a gente chama de “habeas corpus de ofício”. Ele entendeu que a ação contra o presidente Lula (no caso do Instituto Lula) se baseava exclusivamente nas provas decorrentes dos dois sistemas que a Odebrecht mantinha, que eram o Drousys e o MyWebDay. E que, na visão da Segunda Turma (do STF), essas provas eram nulas, porque havia essa confusão toda sobre se elas tinham ou não tramitado por meio de um pedido formal de cooperação jurídica com a Suíça, com a intermediação do Ministério da Justiça. Portanto, a ação foi trancada e depois extinta.
E onde entra a decisão do Dias Toffoli?
No dia 6 de setembro, veio a decisão do ministro Toffoli dentro da Reclamação 43.007. E aí ele transcreveu várias decisões anteriores para dizer que aquela prova era nula; fez toda aquela argumentação em cima de uma série de outras questões; falou da perseguição ao presidente Lula; e fez uma série de determinações.
Primeiro, ele declarou que aquela prova era nula por conta da não triangulação pelo DRCI, em todo e qualquer processo em que ela tenha sido juntada. Seja criminal, cível, eleitoral, o que seja. E que cada juiz deveria olhar, em seus respectivos processos, se ainda há outras provas que permitem que o processo vá adiante.
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E ao lado dessa decisão, ele determinou a apuração sobre a atuação, do ponto de vista criminal, administrativo e correicional, dos agentes que atuaram no processo (como os procuradores do MPF). E também determinou que a União reconhecesse o dano causado por ela, União, por meio de seus agentes, e, se fosse o caso, entrasse com a chamada “Ação de Regresso”. A União paga para quem foi prejudicado e promove uma ação contra o seu servidor que promoveu o dano (...).
Por que o DRCI do Ministério da Justiça só encontrou agora os documentos do acordo de cooperação entre Brasil e Suíça?
Dentro da Reclamação 43.007, veio uma primeira resposta do DRCI dizendo “Olha, quando a gente busca pelo processo número tal, acordo de leniência número tal, com esses argumentos, a gente não encontrou nada. Não há nenhuma prova de que ocorreu o pedido de cooperação do Brasil para a Suíça, que tenha dado base para que (as informações destes) dois sistemas chegassem ao Brasil e fossem usadas”.
Após a decisão do Toffoli, nós (ANPR) fizemos uma nota dizendo que a apuração tinha sido correta e formal, e mencionamos dois ofícios. Um deles com o nome em inglês, do Brasil para a Suíça, e um ofício do DRCI para a PGR, um ano e meio depois, mandando o material e dizendo que o pedido de cooperação tinha sido cumprido pelas autoridades suíças.
A partir destes dados, o DRCI conseguiu fazer a pesquisa e atestou que existiu a cooperação. O que eles alegam para não ter atendido da primeira vez é que não havia nenhuma referência desse pedido com o acordo de leniência ou com o número do processo X (...).
Na verdade, essa informação (do DRCI) apenas ressalta algo que já estava no processo. Essa informação (sobre a cooperação Brasil x Suíça), ela já estava no processo. Não vinda do DRCI, mas vinda da corregedoria do MPF. Já estava na Reclamação 43.007. Isso já era conhecido, esses documentos já estavam ali, juntados (aos autos). O que veio agora é a confirmação pelo DRCI de que de fato tramitou por lá o pedido de cooperação (...).
O sr. poderia traçar uma linha do tempo deste caso?
Em 17 de maio de 2016 não havia acordo de leniência. Portanto, o pedido de cooperação nunca poderia se referir a este acordo. O processo não existia na época! O processo ao qual o Toffoli se refere (onde consta o acordo de leniência) é de 2017.
Em 1º de Dezembro de 2016, aí sim o Ministério Público Federal fez um acordo de leniência com a Odebrecht (...). E, em 23 de março de 2017, a Odebrecht começou a cumprir a obrigação que tinha assumido no acordo de leniência, e ela, Odebrecht, entregou ao MPF uma leva de HDs externos com os (dados dos) sistemas Drousys e MyWebDay.
E isso não teve nada a ver com a cooperação Brasil-Suíça. Isso foi a Odebrecht cumprindo seu acordo de leniência e entregando ao Estado brasileiro o material que era dela própria, Odebrecht, que eram os sistemas.
Como ela fez isso? Ela contratou uma empresa para fazer a extração dos dados seguindo todos os padrões forenses (...). Este material está no site do Estadão, que mantém até hoje a página (na internet) com os dados. Não precisava de cooperação para isso, porque a própria Odebrecht já entregou tudo (...).
Em 28 de setembro de 2017, o DRCI informou ao MPF que recebeu da Suíça o material que tinha sido pedido em maio de 2016. É uma outra cópia das mesmas bases de dados. Estamos falando de duas cópias da mesma base: uma foi entregue pela Odebrecht por conta do acordo de leniência; entregue ali em março de 2017; e a outra foi obtida através do DRCI em setembro de 2017.
São cópias de uma mesma coisa. Qual era a utilidade da segunda cópia? Fazer uma comparação com a que foi entregue pela Odebrecht para saber se ela era íntegra, se estava correta, ou se eventualmente alguém tinha retirado ou enxertado alguma coisa. A cópia que veio da Suíça era de comparação.