Ao mesmo tempo em que anulou esta semana todos os atos da Lava Jato contra o empreiteiro Marcelo Odebrecht, o ministro do Supremo Tribunal Federal (STF) Dias Toffoli manteve a validade do acordo de delação do empresário. Com isso, garantiu a “blindagem” de Odebrecht contra eventuais processos no exterior, alerta o diretor-executivo da Transparência Internacional no Brasil, Bruno Brandão. A decisão de Toffoli foi tomada na terça-feira (21), em um despacho de 117 páginas.
Em seus acordos de delação premiada, aceitos em 2017 pelo Supremo Tribunal Federal, os executivos da empreiteira, hoje rebatizada de Novonor, admitiram o cometimento de crimes em dez países latino-americanos e dois da África – Moçambique e Angola. Desse conjunto de doze países, há investigações sobre possíveis casos de corrupção envolvendo a empreiteira em pelo menos nove deles: Venezuela, Equador, Argentina, Peru, Colômbia, Panamá, República Dominicana, México e Guatemala.
Os acordos como o de Marcelo Odebrecht incluem cláusulas que impedem o Brasil de compartilhar informações com outros países, a menos que estes se comprometam a não usar o material para investigar os executivos ou a empresa, mas apenas os políticos locais. “Essa condicionante absurda dura até hoje e, se o acordo fosse anulado, além de perderem todos os benefícios no Brasil, perderiam também essa blindagem internacional”, diz Brandão, que estuda há anos o caso Odebrecht.
Para o chefe da Transparência Internacional, esses países “jamais terão a perspectiva de justiça ou sequer de ter conhecimento dos crimes, porque essas provas foram enterradas no Brasil. O Brasil se tornou um grande cemitério de provas de corrupção transnacional. Depois de exportar corrupção, está exportando impunidade”, diz.
Segundo ele, a última decisão de Toffoli pode também contribuir para aprofundar o descrédito em relação ao Brasil no exterior, no que diz respeito ao combate à corrupção – um problema iniciado ainda na gestão de Jair Bolsonaro (PL), diz ele. A nova decisão do ministro é a última numa série de determinações sobre o tema. Em setembro passado, por exemplo, o ministro declarou juridicamente nulas todas as provas entregues pela empreiteira em seu acordo de leniência. No total, a empresa foi condenada a pagar R$ 11,2 bilhões em multas, do qual apenas uma fração já foi ressarcido.
“Agora, com essas decisões (de Toffoli), existem elementos concretos para comprovar a violação frontal dos compromissos assumidos pelo Brasil nesses fóruns. Com destaque para a Convenção da OCDE Contra o Suborno Transnacional (cuja próxima reunião será em junho, em Paris)”, diz.
Economista pela Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), Brandão é também mestre em Gestão Pública pela Universidade de York, no Reino Unido, e em relações internacionais pelo Instituto Barcelona de Estudos Internacionais.
Leia Também:
Leia abaixo os principais trechos da entrevista.
Que tipo de consequências a decisão de Toffoli pode ter para os outros 12 países onde a Odebrecht confessou ter pago propinas?
Os acordos assinados pela Odebrecht (de leniência) e seus executivos (de delação) incluíam cláusulas que impediam o Brasil de compartilhar provas com os países onde eles confessaram ter cometido crimes. Segundo essas cláusulas, só podiam usá-las para investigar seus corruptos locais. Essa condicionante absurda dura até hoje e, se a delação fosse anulada, além de perderem todos os benefícios no Brasil, (dirigentes da Odebrecht) perdem também essa blindagem internacional. Enquanto o acordo estiver vigente, os colaboradores têm todos os benefícios de não serem processados não só no Brasil, mas também no exterior. A situação se torna ainda mais grave com a decisão anterior de Toffoli, de invalidar todas as provas da delação da Odebrecht. Além das provas dos crimes cometidos no Brasil, ali estavam também as provas dos crimes cometidos em mais de uma dezena de países. E, com essas decisões recentes de Toffoli, todos esses países jamais terão a perspectiva de justiça ou sequer de ter conhecimento dos crimes, porque essas provas foram enterradas no Brasil. O Brasil se tornou um grande cemitério de provas de corrupção transnacional. Depois de exportar corrupção, está exportando impunidade.
Como a decisão monocrática do ministro impacta a imagem e credibilidade do Brasil no exterior?
O Brasil, já há alguns anos, tem a sua imagem bastante abalada no exterior por algumas razões. O governo de Jair Bolsonaro (PL) prejudicou enormemente a imagem do Brasil em diversas áreas, inclusive no combate à corrupção. Há mais de cinco anos nós estamos assistindo a uma destruição da capacidade do País de enfrentar a corrupção, com a perda de independência das instituições de controle; a interferência na Polícia Federal, com Bolsonaro mudando a direção da Polícia 5 vezes em quatro anos; a neutralização da Procuradoria-Geral da República com Augusto Aras. Então, o Brasil já estava numa posição muito ruim nos fóruns internacionais anticorrupção. Mas as decisões monocráticas desde setembro do ano passado do ministro Toffoli agravaram, e muito, esse quadro. E agora, com essas decisões, existem elementos concretos para comprovar a violação frontal dos compromissos assumidos pelo Brasil nesses fóruns. Com destaque para a Convenção da OCDE Contra o Suborno Transnacional. É uma situação de flagrante violação, e que vai ser certamente questionada na próxima plenária do Grupo de Trabalho Antissuborno da OCDE, em junho, em Paris (França). Essas provas e condenações que estão sendo anuladas no Brasil são parte de esquemas criminosos gigantescos, que alcançaram mais de uma dezena de países. São crimes de suborno transnacional que o Brasil é obrigado a investigar e processar.
Qual o contexto dessa decisão de Dias Toffoli?
Todas essas decisões de agora, que estão derrubando esses processos e anulando as provas de dezenas de réus, inclusive vários deles confessos, são resultado de decisões que beneficiaram o presidente Lula. Decisões que foram tomadas principalmente pelo (atual) ministro (da Justiça, Ricardo) Lewandowski, antes de se aposentar (do STF). Ele declarou (em junho de 2021) que as provas da Odebrecht eram imprestáveis no caso de Lula. Se eram imprestáveis no caso do Lula, é claro que as dezenas ou centenas de outros réus que foram objeto dessas delações dos executivos da Odebrecht pediriam o mesmo benefício. Até chegar à situação insólita na qual o próprio criminoso que entregou essas provas, o Marcelo Odebrecht, foi pedir o benefício. Então foi um efeito dominó, um efeito cascata. (Houve), no final, um efeito sistêmico, uma impunidade sistêmica que se abriu ali com dezenas e talvez centenas de réus que se beneficiaram. A decisão para Lula é que abriu o grande portal da impunidade. Esta decisão (de Dias Toffoli) foi tomada no âmbito de uma reclamação de anos atrás (de 2020) do ministro (do STF, Cristiano) Zanin, quando ele era advogado do presidente Lula (É também) com base nesta reclamação que todos eles estão podendo utilizar como quiserem, com acesso pleno, todas as mensagens roubadas, hackeadas, entre procurador e juiz (no caso que ficou conhecido como Vaza Jato). E estão usando isso como prova de defesa, apesar da Polícia Federal ter declarado que estas provas (as mensagens) não poderiam ser periciadas com garantia da cadeia de custódia.
Isto é, a Polícia Federal não pode atestar que aquelas mensagens estão incólumes, que não foram alteradas.
É exatamente essa a alegação que foi usada para anular as provas da Odebrecht. Numa das mensagens vazadas (apreendidas depois pela operação Spoofing, da Polícia Federal), os procuradores fazem comentários sobre o modo informal como foram levados os HDs externos (com os dados do setor de propinas da Odebrecht). Embora os HDs estivessem selados, e tenham sido entregues para a Suíça da mesma forma como foram entregues ao Brasil; apesar de terem sido entregues de forma voluntária, de não ter sido obtida através de investigação; apesar de tudo isso, elas foram anuladas completamente com a alegação de quebra de cadeia de custódia. Então, parece uma contradição. No caso das provas da Odebrecht, essa alegação frágil, de que houve quebra da cadeia de custódia, bastou para anulá-las. Agora, no caso das mensagens da Spoofing, que a própria Polícia Federal atesta que não pode periciar e garantir a cadeia de custódia, isso não importa. Servem para livrar todos esses réus, inclusive os confessos.
Ao que se sabe hoje, como funcionava a rede de corrupção da Odebrecht no exterior?
O Departamento de Justiça dos Estados Unidos chamou esse esquema de o maior esquema de corrupção transnacional da história. E é possível dizer que talvez tenha sido o mais bem organizado esquema de macro-corrupção da história do capitalismo. Porque era uma linha de produção de corrupção, que se assentava em quatro pilares principais. O primeiro deles era o chamado “departamento de suborno” (o chamado departamento de operações estruturadas da Odebrecht). O segundo pilar era a diplomacia presidencial. Então, o presidente Lula abria portas em países alinhados politicamente, azeitava a relação política com quem mandava naqueles países latinoamericanos e africanos. O terceiro pilar era o BNDES, com a sua linha de crédito de exportação de serviços. Um relatório do Tribunal de Contas da União mostrou que em uma década, 80% desse crédito do BNDES foi destinado a uma só empresa, a Odebrecht. Era um subsídio, com dinheiro público, para a exportação de corrupção. Há, por fim, a rede de marqueteiros (de campanhas políticas). É uma parte pouco tratada, mas importante também. Os marqueteiros eram os provedores de serviços ideais para a lavagem de dinheiro, para o financiamento ilícito de campanhas.