BRASÍLIA – O orçamento secreto do presidente Jair Bolsonaro, revelado pelo Estadão, escancarou a permanência de velhos vícios na forma como os recursos públicos são tratados no Brasil. Pela Constituição, o Orçamento deve procurar atender às necessidades da sociedade. Mas Bolsonaro, descumprindo uma de suas mais destacadas promessa de campanha, reabilitou o toma lá, da cá que já produziu vários escândalos no País.
O Estadão entrevistou 16 renomados advogados, professores e economistas especializados em contas públicas para discutir o esquema montado para aumentar a base de apoio de Bolsonaro no Congresso e alternativas para evitar que o Orçamento seja usado pelo Executivo para barganhas com os congressistas.
Todos defendem investigação rigorosa e, entre eles, incluindo o ex-ministro da Fazenda Maílson da Nóbrega, há quem fale em indícios de crime de responsabilidade. A configuração pode levar ao impeachment do presidente Jair Bolsonaro por infração às leis orçamentárias e à Constituição, que exige transparência, equidade e impessoalidade no manejo das verbas.
Também é unânime a opinião segundo a qual o esquema criado por Bolsonaro é um retrocesso nos avanços obtidos após o escândalo dos Anões do Orçamento, que, na década de 90, desviou recursos de emendas.
Em 2019, Bolsonaro criou um mecanismo que permitiu a um grupo mandar bilhões de reais de emendas de relator (RP9) para suas bases eleitorais, tudo de forma sigilosa. Uma engenharia questionada pelos analistas.
Isso contraria a Constituição, que estabeleceu que o princípio da transparência deve reger a elaboração e a execução do Orçamento. Entre as atribuições do Congresso, uma das mais nobres é a aprovação do orçamento federal. É na lei orçamentária que, a cada ano, o País decide suas prioridades, em termos de alocação de recursos para políticas públicas, na busca do desenvolvimento e da melhoria do padrão de vida de seus habitantes.
Críticas e alternativas
'STF deve suspender de imediato'
Heleno Taveira Tôrres, professor de Direito Tributário da USP: As emendas de relator são todas inconstitucionais. Cabe ao STF, se provocado, suspender de imediato a execução. Por serem regimes excepcionais ao Orçamento, somente poderiam ser permitidas as emendas individuais ou de bancadas de Estados, segundo as limitações previstas no art. 166 da Constituição. A LDO não tem competência para criar despesas por ‘emendas de relator’, que só serviram para evitar as restrições quantitativas e materiais, como a de reservar 50% para a Saúde. Agora, com a Portaria 6.145, de 2021, tenta-se ‘salvar’ o impossível, que é a inconstitucionalidade dessas fontes de despesas. É tudo parte de uma grande luta eleitoral.
‘Constituição não fala em sigilo, segredo’
Carlos Ayres Britto, ex-ministro do Supremo Tribunal Federal: O TCU tomou uma boa medida, justa e jurídica (a Corte exigiu do governo acesso aos documentos do orçamento secreto). Queremos saber das coisas do poder. Quando a Constituição fala de maneira detalhada e minudente sobre Orçamento, em nenhum momento fala sobre sigilo. O artigo 165 da Constituição, sobre Orçamento, diz tudo, mas em nenhum momento fala em sigilo, segredo, bastidores, coxia. Quando você transfere recursos públicos a partir de uma postulação, é preciso vir a lume quem tomou a iniciativa do pedido, principalmente, se partiu de um agente público. Como é que um deputado e um senador vão se relacionar com o Executivo em sigilo?
‘Fere-se aqui uma lógica republicana’
Fernando Facury Scaff, professor de Direito Financeiro da USP: Tudo indica que a tendência moralizadora adotada a partir de 2005, no que se refere às emendas parlamentares, foi alterada com esse mecanismo criado ou ressurgido pelo governo atual. Por isso que várias pessoas apontam esse negócio todo como os Anões do Orçamento, porque já existia lá atrás. No geral, é gravíssimo, porque você retira transparência do processo, você retira legitimidade do processo e você acaba colocando o gasto público dirigido para finalidades políticas. Também se fere aqui uma lógica republicana, afinal o recurso público deve ser dirigido para quem mais precisa, e não parece ser o que está acontecendo.
‘Configura crime de responsabilidade’
Ricardo Lodi, professor de Direito Financeiro da Uerj e advogado: O chamado orçamento secreto, com a mera efetivação de transferência voluntária para os municípios sem a prévia publicação dos critérios distributivos, conforme determinado pelo artigo 77 da LDO de 2020, configura a tipificação do crime de responsabilidade.
Comprovada esta, restará também configurado o crime de responsabilidade pela utilização dos seus recursos para influenciar decisões parlamentares, além da própria Constituição, consagradora do princípio da publicidade e do caráter equânime e objetivo da distribuição dos recursos relativos às emendas. Restaria delineado o embasamento legal para o impeachment e a rejeição das contas de 2020.
‘Ilegais e inconsticionais’
Gil Castello Branco, economista, fundador da Associação Contas Abertas: As emendas do relator-geral, na forma como estão sendo utilizadas, são ilegais e inconstitucionais. O STF, a meu ver, se provocado, deverá suspender imediatamente a execução dos cerca de R$ 18 bilhões existentes no orçamento de 2021. A Lei de Diretrizes Orçamentárias de 2021 requer que as transferências voluntárias de recursos da União, cujos créditos orçamentários não identifiquem nominalmente a localidade,estejam condicionadas à préviadivulgação em sítio eletrônico e tenham aderência aos indicadores socioeconômicosda população beneficiada pela política pública. O artigo 37 da Constituição têm como princípios legalidade, impessoalidade, moralidade, publicidade e eficiência. Nenhum desses princípios está contemplado na liberação das ementas de relator, tal como ocorreu em 2020. A Portaria Interministerial 6.145, de 24 de maio, especificamente o artigo 40, tentou dar ares de legalidade ao que é flagrantemente ilegal. As indicações do Autor da Emenda não podem ser considerados critérios aderentes a indicadores socioeconômicos.
‘Constituição é violada com falta de transparência’
Irapuã Santana, doutor em Direito pela UERJ: A falta de transparência no que diz respeito ao orçamento público viola frontalmente o caput do artigo 37. da Constituição Federal (que exige na administração pública a obediência aos princípios de legalidade, impessoalidade, moralidade, publicidade). Em uma democracia, é necessário haver o exercício do controle social sobre os atos estatais, tendo em vista que o poder do Estado deva sempre ser limitado. Nessa perspectiva, vemos que a falta de observância desses parâmetros fundamentais fazem surgir crimes de responsabilidade, previstos na Lei 1.079, de 1950, em especial no artigo 7.º, inciso 9, no artigo 10, inciso 4, e no artigo 11, incisos 1 e 2.
‘Liberação não pode ser para aprovar projeto’
Tathiane Piscitelli, professora da FGV Direito SP: O critério para a liberação da emenda ou a liberação de recursos não deve ser o desejo do governo de aprovação de alguma matéria no Congresso, mas a necessidade específica de implementação de políticas públicas. Não se admite, no contexto da aprovação da lei orçamentária, remessas ou destinações de receitas que não sejam transparentes. Na medida em que se prove que esse orçamento era secreto e que os critérios de distribuição de recursos não estavam públicos e são pouco republicanos, pode-se dizer que não houve observância da condição estabelecida na Lei de Diretrizes Orçamentárias (LDO).
‘Emendas não têm a devida transparência’
Gustavo Fossati, professor da FGV Direito Rio: Com mudanças na Constituição entre 2015 e 2019, de um lado, as emendas individuais trouxeram avanço, transparência, aspecto equitativo e imparcialidade na distribuição de recursos pelo governo. Mas, de outro lado, apesar de todos os esforços, a Lei de Diretrizes Orçamentárias ampliou a possibilidade das emendas de relator-geral, não trazendo a transparência devida. É prematura, por ora, eventual pretensão de enquadramento do presidente em crime de responsabilidade fiscal, pois devemos aguardar a prestação de informações, em respeito à ampla defesa e ao contraditório. Mas eu diria que há indícios dignos de uma investigação acurada.
‘Transparência é princípio da administração’
Vital do Rêgo, ministro do Tribunal de Contas da União (TCU): O Orçamento avançou nos últimos dez anos com a equalização das emendas impositivas, porque isso dá ao Parlamento a independência que ele tem que ter. Essa novidade do empoderamento extraordinário ao relator tem que ser discutida porque, se você inclui esse tipo de diferenciação, efetivamente, você desequilibra aquilo que passou tanto tempo para conquistar. Mas o Congresso tem que se autorregular neste momento. Pode e deve fazer uma discussão. A transparência, para mim, é princípio da administração pública, em qualquer situação. Se você não tem uma postura, um exercício de transparência, você tem que efetivamente buscá-la.
‘Orçamento é usado para a reeleição’
Élida Graziane, procuradora do MP de Contas do Estado de São Paulo: Se, de fato, a liberação de recursos atendeu a ofícios de parlamentares, sem transparência e critérios técnicos, frustrou-se a Lei de Diretrizes Orçamentárias. Uma erosão das regras editadas desde 2015, em retrocesso que remonta os Anões do Orçamento. Retomar a lógica paroquial e obscura burla as regras impessoais de emendas individuais e de bancada impositivas. Sem observância ao devido processo legislativo orçamentário e sem planejamento, prevalecem o curto prazo eleitoral dos agentes políticos e o trato patrimonialista dos recursos públicos. Infelizmente, o Orçamento é tratado apenas como meio de assegurar a reeleição dos que já estão no poder.
‘É inequívoca a transgressão à lei orçamentária’
Maílson da Nóbrega, ex-ministro da Fazenda: A Lei de Diretrizes Orçamentárias de 2020 exige transparência e critérios justificadores da transferência de recursos, como as condições socioeconômicas. A transgressão a ela é inequívoca. Essas liberações foram feitas ao arrepio da lei orçamentária. No processo no TCU, pode ficar evidenciado que a distribuição e a aplicação de emendas do relator ocorreram sem a observância de princípios orçamentários sadios e previstos na Constituição e nas leis. Neste caso, pode-se arguir a transgressão de normas orçamentárias e, assim, justificar um processo de impeachment, o qual dependerá de condições políticas. Foi assim no caso de Dilma Rousseff.
‘Congresso tem de rever prática distorcida’
José Maurício Conti, professor de Direito Financeiro da USP: Na evolução do processo orçamentário, o artigo 77 da LDO 2020 trouxe critérios importantes para aperfeiçoar a distribuição justa dos recursos, mas há indicativos de que possa não ter sido ainda efetivamente implementado. É importante verificar se houve efetivamente falhas nesse processo, onde e quem as cometeu, para apurar as responsabilidades e melhorar o sistema. E a sistemática de distribuição dos recursos pela Comissão Mista de Orçamento por meio das emendas de relator, pelo que se divulgou, evidencia uma prática distorcida que o Congresso Nacional precisa rever, para que o processo orçamentário seja totalmente transparente.
‘Problema é mais sério e profundo’
Felipe Salto, diretor executivo da Instituição Fiscal Independente: A ideia do RP9 é um equívoco. Se o Congresso e o Executivo acham que deve haver mais espaço para emendas parlamentares, isso deveria ser feito por meio da ampliação da fatia das emendas individuais, que estão bem regulamentadas na Constituição. Da forma como está, o processo orçamentário distorce a lógica, a liturgia e a transparência. O RP9 não foi apenas para parlamentares, mas para abarcar demandas do próprio Executivo. Então, por que a PLOA de 2020 já não contemplou esse espaço? Claro, porque o teto não permitia. Estamos diante de um problema muito mais sério e profundo: a confusão do processo orçamentário e fiscal.
‘Toma lá dá cá, sem transparência e fora da lei’
Manoel Galdino, diretor-executivo da Transparência Brasil: O orçamento é secreto porque o critério é desconhecido. Parlamentares indicaram recursos, contrariando a lei, e não está na transparência ativa quais são os parlamentares que indicaram cada recurso. O debate sobre o orçamento depende da transparência. Eu não acho que é um problema fazer acordos políticos, desde que haja transparência e que se respeitem critérios técnicos mínimos. Para mim, de tudo o que é mais grave desse episódio é o desrespeito ao planejamento orçamentário. Porque a Lei de Diretrizes Orçamentárias é importante para esse planejamento. Se o governo veta um artigo da lei, que permitiria aos parlamentares escolher os beneficiários, não pode descumprir. Na minha visão, a Lei de Diretrizes Orçamentárias foi descumprida e, assim, é possível caracterizar crime de responsabilidade. Toma lá dá cá, sem transparência e fora da lei, está completamente errado.
‘É preciso apuração dos órgãos de controle’
Leonardo Ribeiro, analista do Senado e especialista em contas públicas: Há indícios de ilegalidade no ‘tratoraço’ que podem ensejar crime de responsabilidade - caso fique comprovado que recursos do orçamento federal foram transferidos desrespeitando limites ou condições previstas na Lei de Diretrizes Orçamentárias. O poder executivo federal não pode direcionar verbas do orçamento para emendas parlamentares com o intuito de influenciar a tramitação de proposições legislativas no Congresso Nacional. Nesse caso, a transparência deve ser máxima, inclusive no tocante aos critérios da distribuição dos recursos. Portanto, é importante que os órgãos de controle apurem o que aconteceu para que a sociedade tenha clareza do como os recursos públicos estão sendo aplicados. Me parece que o Tribunal de Contas da União está se movendo nesse sentido.
Falta de transparência nas emendas é incompatível com princípio republicano
Evandro Maciel Barbosa, procurador do Estado do Espírito Santo e doutorando em Direito Financeiro pela USP: A construção anual das leis orçamentárias requer ampla transparência durante seu processo de elaboração, o que inclui as emendas apresentadas ao orçamento, sendo incompatíveis com os princípios republicano e democrático qualquer ideia de sigilo ou falta de transparência na condução dos processos de emendas parlamentares. Um outro aspecto que chama a atenção é o fato de que a aprovação das emendas, ato de competência do Poder Legislativo, impõe que eventuais emendas ao orçamento sejam compatíveis com a Lei de Diretrizes Orçamentárias, conforme artigo 166, § 3º da Constituição. É ilógico o chefe do Executivo propor o projeto de lei de diretrizes, o Parlamento votá-lo, e posteriormente tais atores inobservem norma legal por eles mesmos estruturada, por ocasião da elaboração do orçamento. É preciso enfatizar que as leis orçamentárias previstas no artigo 165 da Constituição, quais sejam, o plano plurianual, a lei de diretrizes e a lei orçamentária, são normas que possuem uma relação de coordenação entre si, se integram, viabilizando a estruturação das ações governamentais de forma coesa e harmônica. Eventual inobservância de determinações previstas na LDO, quando da aprovação de emendas ao orçamento, fere norma constitucional expressa, viola o equilíbrio que deve sustentar o sistema de leis de caráter orçamentário brasileiro, mormente quando os processos de emenda não se revestem da transparência republicanamente exigida.