Próximo de completar seu aniversário de 55 anos, o golpe militar de 31 de março de 1964, que estabeleceu uma ditadura durante 21 anos no Brasil, voltou ao debate no poder Executivo após o Estado revelar que o presidente da República, Jair Bolsonaro, orientou quartéis ao redor do País a comemorarem a “data histórica” do ocorrido.
A informação foi confirmada posteriormente pelo porta-voz do Planalto (veja o vídeo aqui). Na quarta-feira, o teor do texto que será lido nos quartéis em 31 de março foi divulgado pelo Ministério da Defesa, citando “lições aprendidas” com o período e justificando a tomada de poder pelos militares.
A atitude causou repercussão, abrindo um novo episódio na crise do governo Bolsonaro. Os militares da reserva do primeiro escalão do Poder Executivo pediram cautela para evitar polêmicas em período de articulação para aprovação da proposta da reforma da Previdência no Congresso. O ministro da Defesa, general Fernando Azevedo e Silva, minimizou o evento, afirmando que o termo “comemoração” não seria o correto para designar o acontecimento. Após ampla repercussão, em 28 de março, Bolsonaro afirmou que falou em rememorar o golpe de 64, e não em comemorar.
O Ministério Público Federal (MPF) afirmou que festejar o golpe de 64 “é incompatível com o Estado Democrático de Direito”, alegando que tratou-se de um regime que “adotou políticas de violações sistemáticas aos direitos humanos e cometeu crimes internacionais”.
Uma ação popular também foi movida por um advogado para que a Presidência se abstenha de comemorar o golpe de 31 de março. Um dia depois, uma juíza se manifestou pedindo posicionamento em até cinco dias de Bolsonaro e da União. O presidente da República, na verdade, estará em viagem oficial a Israel no próximo dia 31.
Na quarta-feira, mais retaliações vieram à tona. A Ordem dos Advogados do Brasil (OAB) emitiu nota oficial afirmando que comemorar o golpe de 64 mira uma “estrada tenebrosa”. No Supremo Tribunal Federal (STF), vítimas e familiares de vítimas entraram com uma ação pública para que seja proibida a comemoração. O MPF enviou a 18 estados recomendação para que não se comemore a data.
Jair Bolsonaro também voltou a negar na quarta que tenha havido ditadura no Brasil, admitindo que houve “probleminhas” e comparando o regime a um casamento. Em viagem a São Paulo, ele deveria visitar a Universidade Presbiteriana Mackenzie, desistindo após estudantes se manifestarem na entrada da instituição contra suas alegações.
O presidente também foi alvo de protestos no Chile uma semana antes, durante sua viagem oficial, após ter mostrado apoio ao ditador chileno Augusto Pinochet, que ascendeu ao poder na década de 70. O atual presidente do País, Sebastian Piñera, foi cobrado pela oposição por ter se aliado ao presidente brasileiro.
O ministro das Relações Exteriores, Ernesto Araújo, enfatizou que a intervenção militar de 1964 não foi um golpe, enquanto o vice-presidente da República, Hamilton Mourão, defendeu uma “revisão histórica” do período através de análise de “historiadores isentos” para chegar a uma conclusão. Engrossando a troca de farpas de Jair Bolsonaro com Rodrigo Maia devido ao andamento da reforma da Previdência na Câmara, o presidente da Casa, ao ser questionado sobre as declarações, se resumiu a dizer que é “filho de exilado político”. Maia, inclusive, nasceu no Chile.
Desde o ano de 2011, eventos relacionados ao golpe de 64 foram proibidos pela então presidente Dilma Rousseff. Também foi sob seu governo a criação da Comissão da Verdade, voltada para investigar os crimes de Estado cometidos e o paradeiro de vítimas ainda desaparecidas. Em 2014, o órgão confirmou 224 mortes e 210 desaparecidos.
Há relatos de ameaças, sequestros, torturas e forjamento de suicídios, como o caso que ganhou repercussão do jornalista Vladimir Herzog. Na quarta-feira, a ONG Human Right’s Watch divulgou levantamento que aponta 20 mil torturados durante a ditadura. As Forças Armadas reconheceram, pela primeira vez, em ofício enviado à Comissão em 2014, as torturas e mortes cometidas pelo Estado durante o período.
Entenda o contexto do golpe de 64
Então presidente da República, João Goulart foi deposto no dia 31 de março de 1964. O estopim para a sua retirada foi uma revolta na Associação dos Marinheiros e Fuzileiros Navais, que reivindicavam melhores salários. Jango anistiou líderes presos por subversão de ordem, em discurso improvisado considerado subversivo, o que não foi visto com bons olhos pelo Congresso e pelas Forças Armadas. Em matéria publicada na edição de 31 de março, o Estado apontou que “A rebelião dos marinheiros e fuzileiros positivou, com uma clareza que desafia contestação, que a técnica foi rigidamente comunista”, além da “ostensiva infiltração comunista nas Forças Armadas”.
Na madrugada de 31 de março, tropas foram mobilizadas em Minas Gerais, estado sob o governo de José de Magalhães Pinto (UDN), um dos principais articuladores da mobilização. Seguiram para o Rio de Janeiro, enquanto o governador do estado da Guanabara, Carlos Lacerda (UDN), também se preparava para batalhar contra tropas favoráveis a Jango. A disputa nunca ocorreu. Em 1.º de abril, Jango saiu de Brasília em direção a Porto Alegre, último Estado a resistir contra o golpe. Seu próximo destino foi o exílio no Uruguai. Assim, o presidente da Câmara dos Deputados, Ranieri Mazzilli, assumiu a Presidência interinamente por 15 dias, antes da Junta Militar chegar ao poder.
É comum atribuir ao político gaúcho Leonel Brizola um dos motivos pela ascensão do regime militar em 1964. Brizola era cunhado de Jango, que, desde sua posse, em 1961, após a renúncia de Jânio Quadros, era visto como uma “ameaça comunista” ao País. Esse argumento quase impediu que Jango, eleito vice de Jânio, assumisse o cargo, como prevê a legislação. Ele estava em viagem oficial à China em meio à renúncia de Jânio.
Brizola rompeu relações com Jango em 1963, quando tentava se candidatar para o cargo no Ministério da Economia, em meio a uma crise econômica. Ele acreditava que o governo federal deveria se alinhar somente com partidos de esquerda, a fim de evitar radicalmente a mobilização dos militares, enquanto Jango tentava articular relações menos extremistas, com partidos não alinhados completamente à pauta da esquerda.
As declarações públicas de Brizola defendendo tanto uma revolução, quanto o fechamento do Congresso Nacional menos de um mês antes da derrubada de Jango, agravaram ainda mais a situação. Nos últimos dias de seu governo, João Goulart enfrentava forte pressão popular. Ele tentava mobilizar seus apoiadores para a aprovação de reformas “na lei ou na marra”, sendo acusado de tentar criar uma “república sindicalista”, ao defender a reforma agrária.
Também não foi vista com bons olhos a ida de Mazzilli a São Paulo no dia 31 de março. A viagem, segundo matéria do Estado, indicava “duplicidade do parlamento”, medida que poderia ser estabelecida após aprovação no Plenário da Câmara e do Senado. O presidente da Câmara tentava articular resistência do Congresso distante de Brasília, enquanto lideranças parlamentares falavam em resolver a crise em poucos dias.
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Mobilização militar teve apoio da população
A mobilização militar para derrubar o governo de João Goulart foi amplamente apoiada pela população, o que se mostrou em manifestações como a “Marcha da Família com Deus pela Liberdade”, que reuniu 500 mil pessoas em São Paulo em 19 de março. Sob o mesmo nome, uma outra mobilização ocorreu no Rio de Janeiro, no dia 2 de abril, que levou cerca de um milhão de pessoas às ruas.
É notável nos documentos oficiais da época o quanto a articulação militar somente se concretizou através da pressão popular. No texto do Ato Institucional I, de 9 de abril de 1964, consta que “Os Chefes da revolução vitoriosa, graças à ação das Forças Armadas e ao apoio inequívoco da Nação, representam o Povo e em seu nome exercem o Poder Constituinte, de que o Povo é o único titular”. Este trecho e outros similares são repetidos na redação do Ato Institucional II, de 27 de outubro de 1965.
Os militares assumiram sob a promessa de um governo provisório que iria convocar novas eleições. Consta no texto do AI-I eleição para presidente e vice-presidente da República com os membros do Congresso Nacional dois dias após a publicação do ato, portanto no dia 11 de abril. Assim o primeiro presidente militar foi eleito, Castelo Branco. Ele ficaria no poder até o fim de 1966. Para o próximo mandato, eleições regulares estavam agendadas para 3 de outubro de 1965, o que nunca se concretizou.
Já no AI-II, uma nova data limite foi agendada: o então presidente Castelo Branco deveria estabelecer uma data para as eleições que não ultrapassasse 3 de outubro de 1966. No mesmo documento, extinguiu-se os partidos políticos e seus registros.
Nova Constituição
Uma nova Constituição foi redigida em 1967, facilitando a declaração do Estado de Sítio pelo presidente da República. Sob essa premissa, era permitido “busca e apreensão em domicílio” para presos políticos, “suspensão da liberdade de reunião e de associação” e “censura de correspondência, da imprensa, das telecomunicações e diversões públicas”.
O Ato Institucional V, considerado o que levou ao auge da repressão militar, sob o governo do presidente Costa e Silva, estabelecia que o presidente poderia decretar o recesso do Congresso Nacional, Assembleias e Câmaras Municipais por Ato Complementar, por tempo indeterminado, como foi feito. O presidente também tinha em suas mãos o poder de suspender direitos políticos de cidadãos por 10 anos “sem as limitações previstas na Constituição”.
O pluripartidarismo somente foi restabelecido em 1979 e em janeiro de 1985, através de eleições indiretas, Tancredo Neves foi eleito Presidente da República. Ele faleceu em abril de 1985, e seu vice José Sarney assumiu o governo em março daquele ano.