BRASÍLIA - Ao determinar a anulação completa das provas do acordo de leniência da Odebrecht, o ministro do Supremo Tribunal Federal (STF), Dias Toffoli, desconsiderou, dentre outras informações, os dados do sistema criado pelo “setor de propinas” da construtora que apontou o pagamento de propina a políticos, entre eles o presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT).
O acordo de leniência, fechado na Operação Lava Jato, era mais abrangente dos que os termos de delação premiada dos executivos da empresa, pois continham provas de corroboração. O pedido foi feito ao Supremo em agosto de 2020 pelo então advogado de Lula Cristiano Zanin, que hoje é colega de Toffoli no Supremo. O processo está nas mãos hoje da mulher do ministro, Valeska Martins.
Na delação, por exemplo, um email do empresário Marcelo Odebrecht citou Toffoli, quando ele era Advogado-Geral da União (AGU) no segundo governo Lula, sem mencionar pagamentos. A mensagem foi enviada pelo empreiteiro a dois executivos e se referia a hidrelétricas do rio Madeira, em Rondônia. “Afinal vocês fecharam com o amigo do amigo de meu pai?”, questionou.
O acordo de leniência tem 22 páginas, nas quais estabelece as condições em que é assinado e define o que cabe a quem o assina. O conteúdo, onde estão as denúncias, está nos anexos.
Como parte do acordo, a construtora abriu ao Ministério Público Federal (MPF) as planilhas da contabilidade paralela, com registros de propinas a dezenas de políticos e funcionários públicos. A decisão de Toffoli abre caminho para a derrubada de investigações e ações civis, penais e eleitorais, no Brasil e no exterior, apoiadas em provas obtidas a partir do acordo.
Na decisão, o ministro destacou que os investigadores da Lava Jato “desrespeitaram o devido processo legal, descumpriram decisões judiciais superiores, subverteram provas, agiram com parcialidade e fora de sua esfera de competência”.
Veja alguns pontos da leniência que acabaram anulados:
Sistema Drousys
Era um sistema de comunicação dos funcionários para gerenciamento das requisições de pagamentos de propinas a políticos repassadas a entregadores. Funcionava no Setor de Operações Estruturadas da Odebrecht, conhecido como o “setor de propinas” da empresa. O sistema listava apelidos, valores e contas bancárias. Os codinomes eram associados a pessoas públicas de várias esferas e estados. A empreiteira mencionou 415 políticos de 26 partidos.
My Web Day
Era um sistema de contabilidade da Odebrecht adaptado para o “setor de propinas”. Nele, planilhas eram criadas e abastecidas para controlar e organizar a operacionalização do pagamento das vantagens a políticos. Ao relacionar nomes de mandatários ligados ao esquema de corrupção da empresa, o sistema servia como prova de envolvimento de políticos com o recebimento de pagamentos indevidos.
Funcionário da Odebrecht por 36 anos, até 2013, Eduardo José Mortani Barbosa relatou em depoimento no acordo de leniência que operacionalizava os pagamentos de propinas a partir de ordens de superiores com codinomes, valores e datas dos depósitos. As prestações de contas da contabilidade paralela, segundo ele, eram feitas por e-mails criptografados.
Propinas no exterior
No acordo de leniência, a Odebrecht também admitiu pagamento de propina no exterior. Os documentos que a empresa entregou ao MPF mostravam pagamento de caixa dois ao então marqueteiro da campanha de Lula, João Santana. Ele e a mulher, Mônica Moura, foram presos e condenados pelas acusações agora anuladas. A partir dos documentos, a Lava Jato fez tratativas com autoridades internacionais, como de EUA e Suíça, para obter mais informações. As negociações ocorreram sem considerar canais formais, segundo decisão do ministro Dias Toffoli, e por isso também foram anuladas.
Recibos de doação ao Instituto Lula
A Odebrecht entregou recibos de doações feitas por sua construtora ao Instituto Luiz Inácio Lula da Silva. A empresa relatou ter transferido R$ 2 milhões à entidade em duas parcelas de R$ 1 milhão cada. Uma em 16 de dezembro de 2013 e outra em 31 de março de 2014.
Terreno do Instituto Lula
A construtora pagou R$ 12 milhões para comprar o terreno onde seria construído o Instituto Lula, em São Paulo. Seria uma contrapartida pelo favorecimento da Odebrecht em contratos firmados pela Petrobras. A informação aparece nos sistemas da empresa e também em depoimentos de funcionários que teriam presenciado as tratativas, como o do ex-gerente de finanças João Alberto Lovera. Ele contou que, em julho de 2011, acompanhou uma visita de Paulo Melo, ex-executivo da Odebrecht, ao terreno e que Lula, a então primeira-dama Marisa Letícia, e o diretor do instituto, Paulo Okamotto, estavam presentes.
Metrô do Rio de Janeiro
O traçado do Metrô do Rio de Janeiro e a mudança na metodologia das obras executadas tiveram como base pareceres da Procuradoria do Estado do Rio de Janeiro elaborados a partir de pagamentos indevidos.
Transpetro e Belo Monte
As informações apresentadas pela Odebrecht no acordo apontavam pagamento de propinas para obtenção de contratos para obras da Transpetro e da hidrelétrica de Belo Monte. A família do ex-ministro Edison Lobão teria recebido pagamentos em espécie.
Medidas provisórias
Emílio Odebrecht afirmou em depoimento que procurou Lula, em 2010, para destravar duas medidas provisórias de interesse da construtora junto ao Ministério da Fazenda. O empresário disse que o filho dele, Marcelo, relatou o então chefe da pasta, Guido Mantega, “deu sequência” ao pleito. “Ele (Lula) ouviu e disse: ‘vou falar com o Guido (Mantega, então ministro da Fazenda) para verificar’”, relatou. “A informação que eu tive por parte do Marcelo (Odebrecht) é que o Guido deu sequência.”
A MP 470/09 permitia que empresas exportadoras parcelassem débitos decorrentes do aproveitamento indevido do crédito-prêmio do IPI. A MP 472/09 criava um regime especial para o desenvolvimento de infraestrutura da indústria petrolífera nas regiões Norte, Nordeste e Centro-Oeste. Apenas a segunda foi aprovada no Congresso e convertida em lei em junho de 2010.
Sítio de Atibaia
Um dos colaboradores da Odebrecht, Emyr Diniz Costa Júnior entregou uma documentação que comprovaria que ele havia recebido R$ 700 mil, em dezembro de 2010, para custear a compra de materiais e dos serviços da reforma do Sítio em Atibaia. Costa Júnior declarou que recebeu os valores em espécie no escritório de uma obra em que trabalhava na época, no ABC Paulista. O documento foi localizado pela equipe de perícia, pesquisa e análise da Procuradoria Geral da República, nos discos rígidos fornecidos pela Odebrecht ao Ministério Público Federal no âmbito do acordo de leniência.
O engenheiro civil Frederico Marcos de Almeida Horta, que aderiu ao acordo de leniência, confirmou que trabalhou nas obras do sítio. Ele afirmou que a Odebrecht não fechou contrato para a execução dos trabalhos, o que era incomum na empresa, e que os funcionários não podiam usar uniforme quando estavam no sítio. As notas fiscais para compra de material, segundo ele, também não podiam ser emitidas em nome da construtora. “Essa obra no sítio não poderia ser vista como uma obra da Odebrecht”, relatou ao Ministério Público em dezembro de 2017. A construtora, segundo o termo de depoimento, teria ficado responsável pela construção de quatro suítes e pelo reparo da piscina.
O acordo e a multa
O acordo de leniência, a delação premiada das empresas, foi fechado em dezembro de 2016. A Odebrecht se comprometeu a pagar uma multa de R$ 3,828 bilhões, em vinte e três parcelas anuais, com correção pela taxa Selic. O valor total alcançaria R$ 8,512 bilhões. A empresa também concordou em implantar um “programa de compliance efetivo” e se sujeitar a um “monitoramento independente”. A decisão de Toffoli não entra no mérito sobre se a multa será anulada.
“As causas que levaram à imprestabilidade dos elementos de prova obtidos a partir do Acordo de Leniência 5020175-34.2017.4.04.7000 celebrado pela Odebrecht são objetivas, não se restringindo ao universo subjetivo do reclamante (Lula), nem se subordinando às ações que estavam em curso contra ele na Justiça Federal do Paraná”, escreve Toffoli, para não deixar dúvida.
O processo sobre o acesso da defesa de Lula à íntegra do acordo da construtora se arrasta no STF há três anos, desde agosto de 2020, no que virou uma queda de braço entre o presidente e a extinta força-tarefa de Curitiba.
Duas versões estão em disputa. A defesa do presidente afirma que, antes de assinar o acordo com a Odebrecht, o Ministério Público Federal (MPF) começou uma negociação informal com autoridades dos Estados Unidos em busca de pistas para fechar o cerco a executivos da construtora.