Virou lugar-comum, a cada nova excrescência dita ou praticada por Jair Bolsonaro, se dizer, em análises nos jornais ou nas redes sociais, que aquilo causa surpresa em “zero pessoas”. E é verdade, geralmente. Mas a recente e disparatada declaração do presidente de que ninguém pode obrigar ninguém a se vacinar é exótica até para os padrões bastante elásticos dos absurdos bolsonaristas.
Primeiro porque, como tratou de mostrar prontamente a imprensa, não é verdade que se vacinar ou não seja uma escolha individual. Trata-se de uma questão de saúde pública e, como tal, passível, sim, de ser definida em lei. Tanto é assim que o próprio Bolsonaro sancionou em fevereiro uma lei que permite tornar compulsória a vacinação para covid-19 como forma de enfrentamento da pandemia.
O segundo motivo pelo qual é estapafúrdia a declaração – depois repetida com orgulho servil e propagandístico pelos canais da Secom – é econômico.
O mesmo governante que passou meses boicotando o distanciamento social e demais medidas protetivas, atitude que agravou em muito o combate ao novo coronavírus, porque isso significaria parar a economia, ignora o fato de que a única maneira de retomar as atividades completamente é vacinar mais de 70% da população e garantir a tão sonhada imunidade coletiva.
Disso dependerá a retomada da economia, que no segundo trimestre teve um tombo de 9,7%, acima do vendido pelo discurso poliana do governo. Não adianta fazer a picaretagem de tentar espetar essa conta nos governadores enquanto o presidente segue omisso, quando não jogando contra.
Brasileiros só poderão voltar a viajar para fora quando imunizados, porque hoje o consenso mundial é de que somos um celeiro de proliferação de Sars-Cov-2 descontrolado. Porque é isso que ainda somos, ainda que os números mostrem um lento e gradual recuo do contágio nas últimas semanas.
Do ponto de vista de explicação dos gastos públicos a frase de Bolsonaro é um acinte. Afinal, como ele mesmo disse na mesma frase (!) o governo está investindo bilhões na pesquisa e em parcerias para a produção da vacina. A afirmação do capitão significa dizer que está jogando dinheiro pela janela?
Isso além de tudo que foi gasto em auxílio emergencial, socorro aos Estados, etc. Só uma imunização massiva, com empenho total do governo federal para viabilizar a complexa logística para sua distribuição (aí sim, quem sabe, o general Pazuello mostre a que veio), vai garantir que se possa fechar a torneira de gastos extraordinários dos já depauperados cofres públicos.
Até tentar entender a declaração “antivax” do presidente no contexto da narrativa ideológica sem pé nem cabeça do bolsonarismo é difícil. Como alguém que faz campanha todo dia para medicamentos ineficazes para a covid-19 não conclama todos os cidadãos a se vacinarem? É consenso de médicos e pesquisadores que este é o único caminho garantido para a imunização segura contra um vírus que já ceifou mais de 120 mil vidas no País. Bolsonaro segue sua marcha da insensatez e da irresponsabilidade amparado na crença de que o respiro de popularidade obtido pelo auxílio emergencial que começa a minguar vai salvá-lo do escrutínio da História (e das urnas).
Só que a conta de algo da magnitude do que estamos vivendo chega mais cedo ou mais tarde, a despeito de qualquer estelionato narrativo. Ela já está aí, no número obsceno de mortos, na tragédia social, em traumas pessoais e geracionais, atraso educacional e recessão econômica.
Mas num país em que a população é induzida por falsários a duvidar até de registros fotográficos em nome da ideologia idiotizante, não admira que o presidente se sinta endossado para relativizar até a necessidade, sim, de todos se vacinarem.