O Senado Federal liberou consulta online facilitada a 72.719 cartas enviadas por brasileiros de todas as idades com sugestões, críticas e desabafos aos parlamentares que fizeram parte da Assembleia Constituinte entre 1986 e 1987 para promulgação da Constituição Federal de 1988, que está em vigor há 36 anos.
Entre os pedidos enviados no primeiro período pós-ditadura militar, destacam-se apelos por leis duras contra corrupção, Justiça com seriedade, pena de morte, abolir o aborto e divórcio, aumento do salário mínimo, faculdade para os pobres, reforma tributária e melhor distribuição de renda. Milhares de pedidos feitos na década de 1980 que se encontram com os desejos atuais da população brasileira. Clique aqui para acessar os documentos.
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“Até hoje, elas (cartas) permaneciam acessíveis apenas por meio de um banco de dados ainda pouco conhecido, no portal do Senado. A partir de agora, também poderão ser exploradas através de uma plataforma que facilita a busca por temas, cidades e nomes dos autores”, registrou a Agência Senado por meio de publicação de Florian Abreu Madruga, Silvio Burle e Tatiana Beltrão.
A ideia de uma participação mais próxima do cidadão partiu de um servidor do Senado da época chamado William Mendonça Dupin, que foi levado para frente por senadores. Um formulário foi enviado para os municípios brasileiros e ficaram disponíveis nas agências dos Correios, “mas também havia pontos de coleta em prefeituras e assembleias legislativas. Além disso, os partidos políticos puderam entregar formulários diretamente a seus filiados”, cita a Agência Senado. No total, à época, cinco milhões de formulários foram distribuídos.
O envolvimento da população brasileira foi grande. Em apenas uma semana, 13 mil cartas foram enviados ao Congresso Nacional, como mostrou o Estadão na edição de 9 de março de 1986.
“As sugestões são formuladas em até 25 linhas de um formulário em que também são indicados dados pessoais, como faixa etária, nível de escolaridade e atividade desenvolvida”, registrava trecho da reportagem do Estadão daquele domingo. “A identificação não é necessária, a menos que o autor da sugestão tenha interesse em receber resposta ou prefira que sua colaboração seja dirigida a um senador especificamente.”
O político mais citado nas cartas é Ulysses Guimarães, à época no MDB, que viria a disputar a Presidência da República em 1989, na primeira eleição direta para o cargo pós-ditadura militar. Guimarães morreu em 1992. De acordo com dados do Senado Federal, a maior participação foi entre pessoas com 30 a 39 anos (19,5% dos remetentes), seguido por jovens entre 15 e 19 anos (16,4%).
Entre os adolescentes daquela época está o então estudante do primeiro colegial (hoje ensino médio) Elias Ronei Magalhães, que endereçou uma carta ao deputado Ulysses Guimarães. “Eu quero saber: qual será a melhora no País com a constituinte? Eu queria detalhes sobre as novas leis e sua pessoal opinião sobre as mudanças que vão ocorrer. Sou aluno do 1º colegial e tenho meus próprios interesses”, escreveu Magalhães em 15 de agosto de 1986.
Hoje, o professor Ronei, como é conhecido em Altinópolis, cidade a cerca de 330 km da capital paulista, atua na Escola Estadual Professor Antônio Barreiros como coordenador geral pedagógico. Ao Estadão, o professor lembrou do período em que escreveu a carta. “Resolvi fazer meu papel de cidadão, aluno interessado em saber do futuro de nossa nação, e queria entender o que realmente, na prática, mudaria em nosso dia a dia”, cita o professor.
Magalhães lembra que gostava de política por ler o Estadão por influência de seu pai, Paulo Magalhães, que morreu em 2021. O professor lamenta ao comparar a geração daquela época com a atual. Isso porque, segundo ele, a juventude atual tem demonstrado pouco interesse em defender os próprios direitos.
“Também vejo que as mesmas reivindicações feitas em 1986 ainda perduram. Todos cobramos ainda educação, saúde, transporte, esporte, enfim, tudo com qualidade que a população merece. Fato que fica ainda mais marcante no ano em que tivemos o maior aporte financeiro aos partidos políticos nas eleições de prefeito e vereador (R$ 5 bilhões, do Fundo de Campanha). É muito triste sabermos e vermos que a Constituição trouxe, sim, muitas melhorias, mas que, em razão de nossas leis, de nossos políticos, os benefícios básicos ainda não chegaram para população, mesmo passados 38 anos (da carta). Uma pena”, finaliza Magalhães.
‘Com lobby, Constituição ficou extensa’, avalia historiador
Para o historiador Eduardo Lima, a participação popular ocorreu, mas o lobby existente naquele momento deixou a Constituição de 1988 extensa, o que não é ideal, segundo ele. “A Constituição se refletiu nesse monte de propostas, em uma das constituições mais longas do mundo. Existem trechos que não precisavam estar na Constituição, como por exemplo, questões tributárias. Era pra ser uma Carta de princípios, mas como o lobby foi grande, ela ficou extensa”, disse o especialista.
Lima avalia ainda que a Constituição Federal vigente foi apresentada às pressas porque o País havia saído de um período de ditadura. Para ele, o tempo de experiência do texto constitucional deveria, no mínimo, ter sido de uma década, o que não ocorreu. “A primeira revisão foi logo em 1993. Poxa, então sai de 1988 para 1993. É muito pouco tempo. Inclusive, em 1993, nós tivemos o plebiscito sobre forma de governo, republicano ou monarquia, e sistema de governo, presidencialismo ou parlamentarismo”, lembra.
O historiador ainda destaca que a Carta Magna brasileira trouxe um ponto importante que é a periodicidade na escolha dos políticos para cargos eletivos. “Ela colocou a participação popular em uma questão de periodicidade. Ou seja, a cada dois anos nós vamos às urnas. Então, a cada dois anos a população tem a condição de exercer a sua cidadania. E mais, a Constituição trouxe muitas coisas. Hoje a gente pode ter projeto de iniciativa popular. A gente ainda tem muito mais condições de participar, muito mais do que a gente participa”, disse Lima, que é mestre em história social pela Universidade Estadual Paulista (Unesp).
“A Constituição prevê uma participação, o que está faltando agora é o cidadão exercer, porque a Constituição, a nossa, ela tem duas partes. A primeira parte é o que ela é, e a segunda parte é o que ela quer se tornar, que são os objetivos. Falta a gente crescer como cidadão para alcançar esses objetivos. Os objetivos da Constituição, acabar com a pobreza, diminuir as desigualdades regionais, essas coisas estão em curso, portanto, a Constituição não é algo pronto, acabado, a Constituição prevê essa evolução do cidadão”, conclui Lima.