Rua Boa Vista, 20, Centro de São Paulo, sexta-feira, 6 de fevereiro de 1874. Três dias depois da instalação do Tribunal de Relação de São Paulo e Paraná, o primeiro processo começou a tramitar no antigo – e já demolido – prédio da Justiça recursal da então Província. O recurso em habeas corpus que começa a contar a história dos 150 anos do Tribunal de Justiça de São Paulo (TJ-SP), que se completam hoje, partiu da cidade de Caçapava, região de São José dos Campos, depois que um garoto de 14 anos foi preso por determinação do delegado do município para ser levado como recruta do Exército.
Na ação, José Francisco de Almeida aparece como réu. No entanto, ele é pai do adolescente, que não podia figurar como processado à época. O nome do garoto não consta nos autos. Ele é identificado apenas como “recruta do Exército”. Há, no entanto, o interrogatório pelo qual o adolescente foi submetido e uma breve descrição: branco, de olhos pretos, dentes cariados e cabelo liso. Para comprovar que não poderia ir para o Exército, consta nos autos que ele era escriturário de uma casa comercial.
Já naquele período, o recrutamento forçado mesmo sem nenhuma guerra em andamento era comum – o último grande conflito até então com participação brasileira havia sido a Guerra do Paraguai (1864-1870).
No julgamento do recurso, participaram o primeiro presidente do que viria em 1891 a se chamar TJ-SP, Tristão de Alencar Araripe, e os dois outros magistrados: Olegário Herculano de Aquino e Castro e José Norberto dos Santos. Os três votaram pela soltura do garoto, que ficou tranquilo em não voltar mais para cadêa (grafia da época). O delegado foi obrigado a arcar com as custas do processo. A primeira ação do TJ-SP conta com 27 páginas.
Tribunal do Júri e o fascínio popular
De tempos em tempos, o Tribunal do Júri ganha holofotes de jornais, TVs, rádios e portais diante de julgamentos que mexem com o apelo popular. Desde a escolha dos jurados, os debates e embates entre acusação e defesa para conseguir a condenação ou absolvição do réu até o veredito. Tudo isso por horas e dias causam, segundo o Tribunal de Justiça de SP, “forte apelo junto à opinião pública”.
Em São Paulo, nos 150 anos de história, não seria diferente. Crimes chocaram a opinião pública e acabaram no Tribunal do Júri. Enquanto populares acompanham o julgamento, a única dúvida que toma conta de todos: condenado ou absolvido?
Em uma exposição online no site do TJ-SP, qualquer pessoa pode saber um resumo de grandes histórias trágicas do século passado, como os casos de Gino Amleto Meneghetti (gato do telhado), Giuseppe Pistone (crime da mala), Arias de Oliveira (crime do restaurante chinês), Myriam Bandeiro de Mello, Theotônio Piza de Lara, João Acácio Pereira da Costa (Bandido da Luz Vermelha), José Paz Bezerra (Monstro do Morumbi), Elza Leoneti do Amaral, Francisco da Costa Rocha (Chico Picadinho), Benedito Moreira de Carvalho (Monstro de Guaianazes).
Italiano procurado na Itália e França é ‘punido’ com expulsão para o Brasil
O caso Meneghetti, por exemplo, é sombrio e curioso. Isso porque Gino Amleto Meneghetti nasceu na Itália (em 1878) e, ainda jovem, já era procurado pelas autoridades daquele país. Para escapar da prisão, se mudou para a França. No país vizinho, Meneghetti permaneceu por ao menos duas décadas. Preso, ele foi punido com a expulsão da França. E o destino foi justamente o Brasil. Como consta no TJ-SP, essa era punição comum da época.
Meneghetti chegou ao Brasil pelo porto de Santos, em 1913, e conheceu uma italiana chamada Concetta Tovani, com quem tem cinco filhos. Tentou levar a vida honestamente ao arrumar emprego como servente de pedreiro, mas brigou e agrediu o mestre de obras.
Em 1914 foi preso pela primeira vez no Brasil. Trabalhou como pedreiro na obra de construção da solitária da cadeia. Um dia, arrumou confusão e foi para solitária. Tudo premeditado. As grades feitas por ele estavam frouxas e ele fugiu. Foi para Rio de Janeiro, Porto Alegre e Juiz de Fora (MG). Foi responsável por roubos e mais roubos.
De volta a São Paulo, foi preso mais um vez em 1919, o que ainda aconteceria outras tantas vezes em sua vida. Em um dos roubos em um casa paulistana, Meneghetti foi pego pelos moradores. Ele conseguiu, em sua especialidade, fugir pelo telhado. No entanto, caiu em uma obra e, para continuar a fuga, teria matado o vigia João Honorato. Ação que jamais assumiu.
Tempos depois, Meneghetti foi reconhecido por policiais que o prenderam. Por todo histórico, ele foi condenado a 43 anos de prisão. A pena foi reduzida para 25 e, de fato, o criminoso passou quase 20 anos preso no antigo presídio do Carandiru. Solto, ele foi preso outras vezes por roubos e furtos até os 90 anos de idade. Meneghetti morreu aos 98 anos, em 1976, em São Paulo.
Primeira advogada a lecionar na USP atuou no Tribunal do Júri
Esther de Figueiredo Ferraz, primeira mulher a dar aulas e ocupar cargo de reitora da Universidade de São Paulo (USP), também faz parte do Tribunal do Júri do Judiciário paulista. Ela fez a defesa de Myriam Bandeira de Mello, acusada nos anos 1940 de atirar contra o marido Moacyr Augusto Bandeira de Mello.
Myriam foi denunciada por homicídio por supostamente ter atirado contra a cabeça do marido por volta das 23h do dia 4 de agosto de 1946, em um prédio da Rua Barão do Bananal, 1.092, onde o casal morava. Ré, Myriam defendeu-se negando o crime. Ela estava grávida à época e frágil.
Os fatos e a investigação levantaram dúvidas sobre o caso, que poderia também ser suicídio, segundo os documentos arquivados no Tribunal. Em um trecho (veja acima), há declaração de que Moacyr queixou-se de pesadelos e entregou documentos importantes para a então mulher dias antes de morrer. “A votação dos jurados foi favorável à ré, por isso lavrou-se a sentença absolutória (fls. 799). O Ministério Público, insatisfeito, apelou ao Tribunal. A 3ª Câmara Criminal do Tribunal de Justiça, por votação unânime, negou provimento ao recurso (fls. 932), confirmando a decisão absolutória do júri, desacolhendo as arguições de nulidades feitas na apelação”, diz trecho do registro do TJ.
De um pequeno prédio na Rua Boa Vista para o Palácio da Justiça, na Sé
Neste sábado, 3, o Tribunal de Justiça de São Paulo completa 150 anos sendo testemunha e permanecendo de pé diante de golpes, revoluções e diversas mudanças de leis. Desde 1874, o TJ-SP passou por todas as Constituições do Brasil (1824, 1891, 1934, 1937, 1967 e 1988) outorgadas ou promulgadas. Da Revolução Constitucionalista de 1932, quando São Paulo buscava o retorno da democracia após o golpe do ditador Getúlio Vargas, em 1930, oito combatentes tornaram-se anos depois desembargadores do Tribunal.
O Poder Judiciário paulista apenas cresceu no último século e meio, como a estrutura mostra, para dar guarida às necessidades de uma população que só aumentava. O TJ deixou a primeira instalação em um prédio pequeno no Centro de São Paulo para um Palácio, que fica na Sé, também no Centro. Entre a primeira morada e a atual, outros espaços serviram de instalação.
“Em razão de reforma no edifício da Rua Boa Vista, os juízes transferiram-se, em 1884, para um sobrado alugado, na Rua José Bonifácio, 13, onde o Tribunal funcionou por três anos. Os magistrados despachavam do segundo andar do prédio, cujo térreo era ocupado por estabelecimento comercial de roupas feitas por atacado. Em 1887, o Tribunal retornou para a sua primeira sede, onde se manteve até o ano de 1900. Na virada do século XX, o Tribunal passou a funcionar em um prédio alugado na Rua Marechal Deodoro, 8 (antiga Rua do Imperador, atualmente desaparecida com o alargamento da Praça da Sé), porém ainda sem as instalações adequadas”, informa o TJ.
Nos primeiros anos do século 20, Washington Luís, que mais tarde se tornaria presidente da República, foi o autor da decisão de construir um espaço para o Poder Judiciário paulista. “O projeto arquitetônico do renomado escritório de Ramos de Azevedo foi iniciado em 1911 e acompanhado de diversas especificações acerca das dependências relativas às suas seções principais, compreendendo o Fórum Cível e o Fórum Criminal. Nesse intervalo, em 1915, o Tribunal de Justiça foi transferido para a Rua Brigadeiro Tobias, 81, nas proximidades da Estação da Luz. Apesar da distância do Centro, era um solar antigo, amplo e arejado, de dois andares e sótão, onde foi também instalada a biblioteca da Corte”, informa o Tribunal.
A construção do Palácio da Justiça mostra como São Paulo cresceu de maneira rápida na vira das séculos 19 para 20 com a chegada de milhares de imigrantes. O espaço para sede do Judiciário projetado por Ramos de Azevedo contava com três andares, que na época eram suficientes para atender as demandas judiciais.
“O contínuo crescimento vegetativo dos litígios, nessa década, obrigou o Poder Público a acrescentar um novo andar – o quarto – àquele projeto, o qual se tornou também insuficiente, de maneira a motivar a construção de um pavimento intermediário, denominado mezanino, entre o segundo e o terceiro pavimentos, ampliando o espaço útil do prédio”, explica o TJ.
De acordo com os registros, os trabalhos para construção do Palácio da Justiça, como desocupação, expropriação e demolição das construções existentes no local onde ficava o velho Quartel de Linha, levaram nove anos. No entanto, ainda na década de 1920, parte do Fórum Cível foi instalado no local em novembro de 1926, e o Tribunal do Júri em abril de 1927. A inauguração parcial ocorreu em 2 de janeiro de 1933, poucos meses depois da Revolução de 1932. “Com a conclusão dos andares superiores, em especial aquele do Salão Nobre, houve uma segunda inauguração em 25 de janeiro de 1942, em homenagem ao 388º aniversário da cidade de São Paulo”, registra o Tribunal.
O primeiro presidente do TJ-SP era cearense
Tristão de Alencar Araripe (1821-1908) era um experiente magistrado quando o Tribunal de Relação de São Paulo e Paraná foi instalado. Primeiro presidente da Corte, ele permaneceu no cargo da fundação até 1890, quando foi para Corte superior. Foi durante sua gestão em São Paulo que o Judiciário testemunhou o fim da Monarquia e começo da República, em 1889.
Araripe, no entanto, não focou sua vida apenas ao Judiciário. Em um perfil do Arquivo Nacional, ele é definido como primeiro historiador do Ceará a entrar para o IHGB. “Pertenceu a várias associações científicas e culturais, como a Sociedade de Geografia do Rio de Janeiro e o Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro (IHGB), do qual foi sócio correspondente. Considerado o primeiro historiador do Ceará a ser admitido nos quadros do IHGB, teve uma extensa produção intelectual voltada aos temas jurídico, histórico e geográfico, com especial destaque para o esforço empreendido ao escrever a história de sua província, em um diálogo com a história nacional produzida pelo IHGB. De sua autoria destacam-se as seguintes obras: História da província do Ceará (desde os tempos primitivos até 1850), A questão religiosa (1873); Como cumpre escrever a história da pátria (1876); Patriarcas da Independência (1876); Consolidação do processo criminal do Império do Brasil (1876)”, diz trecho da apresentação escrita por Daniela Hoffbauer.
No formato online, o Tribunal de Justiça de São Paulo disponibilizou o primeiro discurso de Araripe, realizado na abertura dos trabalhos do Judiciário paulista há 150 anos. Leia a íntegra aqui.
A inteligência artificial e os desafios das próximas décadas
Titular da Comissão Especial de Comemoração do Sesquicentenário do Tribunal de Justiça, o desembargador Octavio Augusto Machado de Barros Filho avalia que a evolução tecnológica é o desafio de momento para o TJ e o Judiciário como um todo. Ele cita um fato histórico, quando a sentença deixou de ser manuscrita e passou para máquina de escrever. Em Minas Gerais, por exemplo, uma decisão foi anulada até que ficasse comprovado que um juiz era o autor do documento datilografado.
“A grande mudança é a ferramenta. Aprendi na máquina de escrever, a datilografar. A primeira a sentença era manuscrita, depois datilografada. Houve questionamento sobre autenticidade da sentença datilografada, que foi parar no Supremo da época. Mas nós passamos pelo fax, por exemplo, eu emitia alvará de soltura por fax e o documento apagava, então era necessário tirar xerox. Depois vieram os e-mails, hoje é WhatsApp. Na minha Câmara tudo é telepresencial, o que aumentou a produção. Produzimos muito mais que antes. Agora, cabe ao juiz examinar caso a caso antes da decisão no sentido de: sai do lugar comum ou não, valor da causa, as partes. Essa triagem é importante, porque nenhuma inteligência artificial vai fazer. Precisa de um olhar humano mesmo, experiência para saber se o caso será julgado de uma forma diferenciada. Esse é o grande desafio no momento. Adequar o trabalho feito até então com essa evolução repentina”, disse ao Estadão.
Formado em direito pela Universidade Mackenzie, em 1975, um ano depois de o TJ-SP completar 100 anos, Barros Filho tornou-se desembargador em maio de 2012.
“Tivemos crimes, julgamentos de repercussão, mas o Tribunal se manteve como veleiro no oceano. Vem a tempestade, mas ele continua. É inexplicável. Cada renovação, cada promoção, cada juiz novo, os advogados, promotores, defensores públicos formam uma solução justa. O tribunal é esse todo, essa massa jurídica, os operadores, todos. O que mais me tocou é incolumidade, porque o Tribunal chega a 150 anos com dignidade, cabeça erguida, com trabalho em dia, produção. O que me impressiona é a segurança em que a instituição é conduzida”, afirmou.
Serviço:
- Objetos e processos originais como a primeira ação a tramitar no TJ-SP e o inquérito MMDC, de 1932, podem ser vistos no Museu do Tribunal de Justiça, à Rua Conde de Sarzedas, na região da Sé. O local é aberto ao público de segunda a sexta, das 13h às 17h. Para visitas individuais ou de pequenos grupos de até 10 pessoas, basta comparecer diretamente no Palacete Conde de Sarzedas no horário de funcionamento. Informações no e-mail museutj@tjsp.jus.br ou telefone (11) 4635-9729.
- A exposição Condenados ou Absolvidos? com casos julgados pelo Tribunal do Júri pode ser acessada aqui.
- Conheça todos os desembargadores do Tribunal de Justiça de São Paulo ao clicar aqui.