Todos os dias, após checar as instalações do quartel, o comandante Guilherme Santana Ebre, do 1º Regimento de Cavalaria de Guardas (RCG), se dirige para o estábulo de um cavalo de cor baio e crina escura. “Ele reconhece a minha viatura. Eu vou chegando e ele já relincha”, disse. O carinho é recíproco: sempre que possível, Ebre leva consigo “um agrado” para o animal, uma cenoura ou um torrão de açúcar. O Baio número seis, como é conhecido no Regimento, é um cavalo avantajado: são 550 quilos, 1,65 de altura e 134 anos de história nas costas.
Aos 8 anos de idade, Âmbar, seu nome de batismo, é o último de uma linhagem de cavalos tão antiga quanto o Brasil republicano: desde a Proclamação da República, é escolhido a dedo o ocupante do posto seis do 1º RCG, de modo que o cavalo selecionado seja parecido com aquele em que Deodoro da Fonseca estava montado em 15 de novembro de 1889.
É um tributo seguido religiosamente há mais de 13 décadas. Como parte da homenagem, o Baio de número seis é o cavalo sobre o qual monta o comandante do Regimento. A principal atribuição dessa unidade militar é a guarnição e segurança dos presidentes do País. O atual Baio, de acordo com Guilherme Ebre, é um cavalo “afetivo, dócil e manso”. E foi justamente o temperamento manso que, em 1889, acabou por selar o destino do Baio original à história do Brasil.
Baio, herói por acaso
Deodoro da Fonseca sofria uma grave crise de dispneia na véspera do dia em que proclamou a República. Apesar do estado de saúde, o marechal insistiu, na manhã seguinte, em sair de casa e tomar o comando das tropas do Exército, que já estavam, naquela altura, se mobilizando na destituição do Império.
De charrete e na companhia do primo, o alferes Augusto Cincinato de Araújo, Deodoro foi até as tropas mobilizadas. Quando chegou ao Campo de Santana, onde fica, hoje, a Praça da República, no Rio de Janeiro (RJ), encontrou posicionado o 1º Regimento de Cavalaria. Deodoro desceu da charrete e pediu para montar a cavalo. Os oficiais, notando o estado de saúde do marechal, tentaram admoestá-lo, mas ele estava irredutível. Assim, decidiu-se por um meio-termo: o alferes Eduardo Barbosa cedeu o cavalo de número seis ao marechal. O animal de pelagem baio era considerado o mais comportado daquele esquadrão. Temia-se, afinal, que Deodoro da Fonseca, debilitado, não pudesse coordenar um cavalo muito agitado e arredio. E, montado no Baio número seis, Deodoro liderou os esforços que destituíram o Império do Brasil.
Lenda do Exército
Dessa forma, o Baio número seis passou de “café com leite” do Regimento a lenda e símbolo republicano, tendo sido eternizado no célebre óleo sobre tela de Henrique Bernardelli, de 1892. O cavalo havia sido admitido nas tropas aos 8 anos, em 13 de março de 1884; na Proclamação da República, portanto, tinha 13 anos, meia idade nos parâmetros equinos.
Até aquele momento, nem sequer tinha nome, sendo conhecido pela numeração ordinária pela qual eram catalogados os animais da cavalaria. Daquele dia em diante, foi batizado com a data em que se tornou herói: Quinze de Novembro. Deodoro adquiriu o Quinze e o doou de volta ao Regimento de Cavalaria. Dessa forma, o Baio original foi aposentado das funções militares e viveu tranquilo seus últimos anos de vida, até falecer, aos 28 anos, em 28 de fevereiro de 1904. Tinha pelagem clara, patas brancas e 1,48 metro de altura. Além disso, era castrado e não deixou descendentes.
Foi sepultado no picadeiro do local em que, hoje, se instala o 1º Batalhão de Guardas do Exército Brasileiro, no Rio. Em 1904, era no local que ficava o 1º RCG. Em seu funeral, recebeu honrarias militares e foi homenageado mais uma vez em 1967, quando os Dragões da Independência foram transferidos para Brasília, a nova capital do País.
E, se a linhagem do cavalo número seis é tão antiga quanto a República, o 1º Regimento de Cavalaria de Guardas é ainda mais antigo: fora criado em 1808. Além da guarda presidencial, os Dragões da Independência, como são conhecidos, são responsáveis pela segurança do Palácio do Planalto, sede do Executivo; do Alvorada, residência do presidente da República; do Jaburu, morada do vice-presidente; e da Granja do Torto, casa de veraneio presidencial.
A verdade sobre o Baio
O Baio se tornou uma lenda e, tal como outros mitos fundadores da República, muito tempo se passou até que os meandros de sua origem fossem, afinal, postos à luz dos fatos. A história do cavalo, especificamente, demorou mais de um século para ser desmistificada. O primeiro a descrever o papel do Baio número seis na Proclamação da República, sob um olhar irônico, errático e farsesco, foi o diplomata Manoel Pio Corrêa, em coluna publicada no jornal O Globo em 26 de julho de 1996. Na crônica, Pio Corrêa denuncia uma “injustiça flagrante, que urge corrigir” impetrada pelo escritor Henrique Maximiano Coelho Neto.
Em suas memórias, Coelho Neto havia dito que estava ao lado de Deodoro no dia 15 de novembro de 1889 e que se lembrava de ter visto o marechal montado em um “fogoso ginete negro”. Nem fogoso, nem negro: ao longo da crônica, Pio Corrêa disseca, numa irreverência irretocável, a verdade dos fatos históricos.
Conta, inclusive, que Deodoro da Fonseca, no estado de saúde em que estava, mal conseguia bolear a perna sob a sela do cavalo, tendo sido necessária a assistência de várias pessoas para içá-lo sobre o animal. Daí surge, afinal, o papel essencial do Baio número seis na Proclamação da República: só mesmo um cavalo manso e comportado para ter acolhido o marechal naquele dia.
Rotina da cavalaria
O cavalo Baio atual, com todo o seu “status”, tem um recanto separado dos demais animais do estábulo, mas sua rotina é semelhante à dos colegas. A dieta no Regimento, segundo Guilherme Ebre, é “balanceada, com horários definidos” e comum a todos os cavalos. “Tem ração, feno, verde in natura, sais minerais e muita hidratação”, afirmou.
Quanto ao condicionamento físico, cada cavalo do 1º RCG é submetido, três vezes na semana, à prática da equitação, ou seja, da montada guiada por um cavaleiro. É uma rotina importante para a saúde dos animais do Regimento e, no caso do Baio, ainda mais crucial, pois é ele quem puxa o esquadrão do 1º RCG em cerimônias especiais, como o Dia do Exército Brasileiro, em 25 de abril, o Dia do Soldado, em 19 de agosto, e a Independência do Brasil, em 7 de setembro.
Nesses ritos, quem vai montado no cavalo, como manda a tradição, é o comandante do 1º RCG. “Ele [o Baio] entende que está em um evento significativo e participa feliz por estar ali, representando nosso Regimento”, afirmou Guilherme Ebre.
De volta aos pampas
Não só de alimentação e exercícios regrados é feita a rotina da cavalaria: em determinados horários, os animais são soltos em potreiros e capineiras. O regime de soltura é importante para o condicionamento físico e, para o Baio, esse momento do dia tem também uma dimensão afetiva: é a chance de o cavalo se sentir de volta às pradarias gaúchas em que foi criado.
O sobrenome de Âmbar é “do Rincão”. Foi na Coudelaria do Rincão, em São Borja (RS), que o cavalo nasceu e foi amansado. Por lá, vale dizer, Âmbar foi concebido por meio da monta natural, ou seja, uma cópula entre macho e fêmea sem interferência humana. E é para lá que Âmbar voltará na “aposentadoria”, isto é, quando atingir uma idade avançada e for afastado do serviço militar. A partir daí, passará a receber cuidados e tratamentos especiais do Projeto Geriátrico do Exército Brasileiro.
Cara de um, focinho do outro. Do Quinze de Novembro, o Baio original, ao Âmbar, o último dessa longeva e honrosa linhagem equina, muitos cavalos já ocuparam o posto seis do 1º RCG, numa sucessão de gerações que nasceu junto com a República e só morre com ela.