A história por trás do surgimento do título de eleitor no Brasil caminha lado a lado com as definições do direito ao voto no País. Segundo registros, desde 1881 o documento passou por cerca de nove diferentes versões, com tamanhos e informações variáveis, até chegar a uma base de dados digitais.
O surgimento de um documento ligado ao direito de voto no Brasil data do ano de 1875, durante a regência de Dom Pedro II. No entanto, segundo o historiador e pesquisador da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), Claudio Henrique de Moraes Batalha, é controverso afirmar que o antigo Título de Qualificação tenha sido o primeiro título eleitoral na história política do País.
Durante a última década do Império, até o ano de 1881, o cenário eleitoral era definido por meio de eleições indiretas e contava com dois tipos de eleitores. Os de primeiro grau, chamados de votantes, elegiam um colégio eleitoral, que por sua vez definia as cadeiras da Câmara e do Senado.
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Para Batalha, a controvérsia se dá justamente pelo fato de o Título de Qualificação se restringir a uma parcela do eleitorado e não valer para um conjunto eleitoral. O documento, que qualificava apenas os homens com idade mínima de 25 anos, também incluía a exigência da comprovação de uma renda líquida de 200 mil réis para o cidadão poder votar. O critério era uma novidade para a época, apesar de o sistema censitário — que garantia o direito de escolha apenas para quem possuía receitas — valer desde a Constituição de 1824.
Reforma de Rui Barbosa
Anos depois, ainda durante o Império, o deputado Rui Barbosa, da Bahia, redigiu as regras para uma reforma eleitoral que ficou conhecida como Lei Saraiva, em referência ao presidente do Conselho de Ministros, José Antônio Saraiva.
A reforma de 1881 introduziu três mudanças significativas: o fim do voto indireto; o veto do direito de voto aos analfabetos, mesmo aqueles que já estavam registrados como eleitores; e a imposição de requisitos mais rigorosos para a comprovação de renda, exigindo uma série de documentos que muitos não conseguiram apresentar.
Segundo o pesquisador, a lei levou a uma drástica redução do eleitorado, que chegou a até 90%, embora esse percentual variasse de acordo com a região. “Por trás disso tudo estava o medo dos governantes, daqueles que compunham a Câmara e o Senado, pois havia um número cada vez maior de libertos, de ex-escravos, com direito de voto. Ao invés de estabelecer um critério explícito, cria-se um subterfúgio para excluir do voto trabalhadores, descendentes de escravizados e toda uma massa da população que tinha esse direito até 1881″, explica Batalha.
Identificação do eleitorado
A Lei Saraiva também estabeleceu a criação do título de eleitor, que passou a substituir o Título de Qualificação. O novo documento apresentava nome, idade, filiação, estado natal, profissão, domicílio e renda dos eleitores, além da assinatura do juiz de direito do local do alistamento eleitoral.
De acordo com o cientista político Jairo Nicolau, especialista em sistemas eleitorais, os títulos foram criados com o objetivo de servir como uma espécie de filtro que ajudasse a confirmar a identidade de quem aparecia para votar.
Batalha ressalta que o estabelecimento da reforma eleitoral, juntamente com a instituição do título, também teve como objetivo resolver o problema de identificação dos eleitores e coibir fraudes cometidas pelos chamados “fósforos”, indivíduos que votavam diversas vezes em diferentes localidades sem nenhuma exigência de documentação comprobatória.
O pesquisador explica que, antes de 1875, não havia a necessidade de apresentar documentos para votar, o que facilitava as práticas de fraude. A reforma introduziu mecanismos de identificação mais rigorosos, como a exigência de documentos que comprovassem a identidade do eleitor, embora o uso da fotografia ainda fosse inexistente.
Primeiro título da República
Com o fim do Império e a proclamação da República Federativa do Brasil, o decreto nº 6, de 19 de novembro de 1889, ampliou o perfil de eleitores qualificados a votar. A renda deixou de ser um critério para inclusão de adultos no processo eleitoral. Entretanto, os analfabetos continuaram a ser privados do direito, assim como as mulheres.
Decreto nº 6, de 19 de novembro de 1889, Governo Provisorio da Republica dos Estados Unidos do Brazil
Como forma de inibir fraudes durante o alistamento, os eleitores deveriam redigir uma solicitação escrita de próprio punho. O processo também exigia a presença de uma testemunha que pudesse comprovar a veracidade do pedido. Ainda assim, é possível que analfabetos residentes em cidades interioranas e fazendas tenham sido inscritos, como explica Jairo Nicolau. Na época, o País não contava com um sistema centralizado como o atual, e o voto não era obrigatório.
Três títulos simultâneos
A proclamação da República Federativa do Brasil deu aos Estados e Municípios um alto grau de autonomia, que se refletia em diversos aspectos da governança e do processo eleitoral. Durante esse período, o País chegou a contar com a existência de três diferentes títulos de eleitor, para as votações municipais, estaduais e nacionais.
Segundo Batalha, na época havia uma diversidade de nomenclaturas e funções políticas, como a variação do termo “intendente” para designar cargos diferentes em Estados distintos, além de diferentes formas de eleição ou nomeação de prefeitos. A descentralização permitia que cada estado e município tivesse suas próprias regras e normas para a administração local e para o processo eleitoral, criando um cenário sem uniformidade em todo o País.
Em 1904, o senador Rosa e Silva sugeriu a criação de um título de eleitor único para todas as eleições, por meio da Lei nº 1.269, também conhecida como Lei Rosa e Silva. A norma foi considerada inconstitucional pelo Supremo Tribunal Federal, mas mesmo assim vários Estados adotaram o sistema único de alistamento.
Foto de identificação
A Revolução Constitucionalista de 1932, liderada pelo Estado de São Paulo, foi outro momento que trouxe mudanças significativas para o cenário político brasileiro. O governo provisório de Getúlio Vargas implementou um novo Código Eleitoral, que estabeleceu que todos os cidadãos brasileiros com mais de 21 anos tinham o direito ao voto, independentemente do sexo.
No entanto, a reforma excluía pessoas em situação de vulnerabilidade social, analfabetos e membros das Forças Armadas, com exceção dos estudantes de escolas militares superiores.
O código também deu origem à Justiça Eleitoral, para organizar e fiscalizar as eleições, e instituiu o voto secreto. Outra novidade para a época foi a exigência da fotografia 3x4 para o registro eleitoral, além da impressão digital no título, com o objetivo de garantir a identificação precisa do eleitor.
A foto deixou de fazer parte do documento em uma versão empregada em 1945, quando o título apresentava assinatura de um juiz e do eleitor, e possuía um complemento que ficava sob a posse de um cartório. Em 1950, com a instituição do segundo Código Eleitoral brasileiro, a fotografia voltou a fazer parte dos elementos de identificação e permanece nas versões seguintes até o ano de 1986.
Título para mulheres
De acordo com Batalha, a implementação do voto feminino no Brasil em 1932 foi marcada por restrições. O historiador explica que se criou um mito de que o Brasil estava à frente em termos de direitos eleitorais femininos quando, na verdade, a participação efetiva das mulheres na política era extremamente limitada. ”As mulheres solteiras só podiam votar caso estivessem empregadas ou, no caso de mulheres casadas, com a autorização do marido”, conta o pesquisador.
As restrições para o voto das mulheres só deixam de existir em 1965, quando o voto feminino passa a ser obrigatório e o eleitorado passa a ter um peso maior no processo eleitoral. “Esse movimento, paradoxalmente, ocorre sob um regime militar, possivelmente influenciado pela crença de que o voto das mulheres tenderia a ser mais conservador”, diz o historiador.
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Atual modelo
Durante o ano de 1985, foram estabelecidas novas normas que atualizaram o formato de identificação dos eleitores e vigoram até hoje. Por meio de uma emenda constitucional, os analfabetos recuperaram o direito de votar, porém em caráter facultativo. Além disso, a Lei nº 7.444, do mesmo ano, introduziu o processamento eletrônico no alistamento eleitoral.
O título passou a contar com informações como nome, data de nascimento, número de inscrição, zona e seção eleitorais, município, Estado e data de emissão, mas deixou de incluir a imagem do eleitor. Em contrapartida, foi estabelecida a necessidade de apresentar um documento com foto junto durante a votação.
Desde 2008, a Justiça Eleitoral começou a recadastrar eleitores por meio da identificação biométrica, armazenando as fotos no Cadastro Nacional de Eleitores. Em 2017, o aplicativo para celular e-Título foi lançado pelo Tribunal Superior Eleitoral (TSE). Desde então, a via digital passou a ser um dos documentos que podem ser apresentados para votação.
Atualmente, o alistamento eleitoral é obrigatório para pessoas com idade entre 18 anos e 70 anos, segundo a Constituição Federal. A lei também prevê a participação facultativa no pleito para jovens de 16 e 17 anos e para idosos com mais de 70 anos.