Weffort: ‘Bolsonaro não obedece às regras de um sistema democrático’


Na avaliação do cientista político, é muito difícil um país com o espírito regional forte, como o Brasil, virar uma ditadura

Por Marcelo Godoy

Como a democratização por via autoritária se manifesta em nosso dias e, particularmente, no governo de Jair Bolsonaro?

Essa ideia da democratização por via autoritária é uma noção para cobrir todo o processo que vem dos anos 1930 para cá. Meu entendimento é que Jair Bolsonaro é um subcapítulo desse processo. Ele repete, provavelmente sem saber, os procedimentos já adotados pelo Getúlio (Vargas) em 1930. Não vejo Bolsonaro como agente da democratização, ele fala que é democrata e que a democracia está ameaçada, mas não o comparo a nenhum dos líderes autoritários democráticos que já tivemos.

Cientista político Francisco Weffort. Foto: Tiago Queiroz/Estadão - 02/07/2019
continua após a publicidade

O sr. quer dizer que a democracia para Bolsonaro teria um caráter meramente instrumental?

Eu creio que sim: instrumental e propagandístico, porque efetivamente ele fala de uma democracia que a gente não vê acontecer. A única medida que mais ou menos assemelha o governo Bolsonaro à essa tradição brasileira é o auxílio emergencial, algo típico da democracia autoritária. Claro que o Estado deve dar o auxílio, mas isso é um gesto democrático que vem de fonte autoritária.

O sr. trabalha a ideia de que a democratização por via autoritária torna difuso o conceito de que a política se realiza à parte da sociedade. E também dá como herança outra ideia, a de que a vontade do líder vale mais do que o respeito às leis, de que a política só se efetiva quando autoritária...

continua após a publicidade

A política só se efetiva quando ela fala, se expressa pelo líder, pelo chefe, pelo comandante. Essa é a ideia básica. O Bolsonaro acredita que deve opinar sobre tudo como se pudesse entender de tudo. Estamos em uma pandemia e ele agora decide da cabeça dele que não é necessário usar máscara para quem já foi vacinado. Ou seja, não obedece às regras habituais de um sistema democrático. Nesse sentido é autoritário.

O sr. também descreve no livro surgimento de dissidências oligárquicas. Bolsonaro não é um dissidente. Como ele se situa dentro dessa tradição?

Ele é um caso à parte. Nesse sentido ele é um ponto fora da curva. Ele é ex-membro de uma organização de Estado. As dissidências oligárquicas têm relação com os chefes políticos regionais, da tradição oligárquica brasileiro. Ele é um ex-oficial que fala como ex-oficial.

continua após a publicidade

Ele se insere dentro da tradição de uma parte da burocracia estatal, o Exército, de intervir na vida política da República?

Eu diria que ele quer relembrar tradição. Ele quer convocar essa tradição a favor dele, mas é muito diferente, como significado político, de toda essa tradição, pois ela é a tradição do tenentismo. É a que vem de antes do fim do Império, muito antiga, que fala dentro do Exército. Ele é excluído do Exército e fala da memória de ter sido. Ele não é bem esse personagem, mas quer lembrar essa tradição em nome dele. Então diz: ‘O meu Exército’.

Tenta reeditar a ideia de uma reforma institucional que passe pela moralização da política?

continua após a publicidade

Exatamente. Isso sim. Se você lembrar bem, a Revolução de 1930 foi uma revolução em nome da moralidade pública, um grande movimento de opinião pública que passou pelas Forças Armadas e entrou na tradição militar. É verdadeiramente da tradição brasileira. É curioso, mas a Revolução de 1930 é uma luta pela democracia, pois a democracia que tínhamos era restrita, era oligárquica. Fica na tradição a lembrança da democracia vencendo. É parte do discurso oficial brasileiro, parte do sonho brasileiro – digamos assim –; o fantasma brasileiro, da ilusão brasileira da democracia. E parte das tradições de origem militar.

O sr. descreve ainda o impacto do comparecimento às urnas e as ilusões com o voto obrigatório no processo político brasileiro. O comparecimento às eleições serve de limite à tendência autoritária na democratização do País?

O lado democrático disso é que Getúlio e Jânio (Quadros) ganharam eleições. O próprio Bolsonaro fala de eleições e fraude em eleição. É uma disputa em torno de eleição. Tanto assim, que ele quer mudar o sistema de voto atual, um dos mais completos e modernos do mundo. Ou seja, é em torno desses mesmos valores que estão lá atrás na história que ele fala. Aumentar o eleitorado e abrir para as eleições é uma virtude democrática nessa tradição brasileira, afrouxando limites de idade e permitindo o voto aos analfabetos. A ideia é de que todos participem da democracia por meio do voto, o que é um limite ao autoritarismo, mas ao mesmo tempo foi promovido pelo autoritarismo.

continua após a publicidade

O que de novo Bolsonaro traz para o populismo de direita em relação ao passado?

Não vejo muitas novidades no Bolsonaro. Ele repete a retórica. Há, no entanto uma diferença, que é a retórica privatista, o que é mais parecido com o Jânio. Mas todos os outros (Getúlio e Adhemar) eram mais estatistas. Nisso o Bolsonaro não é muito parecido com o passado. Ele fala em privatismo, mas não sei se vai privatizar. Outra diferença importante é a política exterior. Nela, ele é de direita. O Jânio, que tinha muita semelhança com Bolsonaro, não mexe na política externa brasileira e estimula um certo pluralismo; falava com (Gamal) Nasser, com (Jawaharlal) Nehru. A tradição brasileira é mais à esquerda na política internacional, com exceção do período de confronto com o comunismo.

O sr. diz no seu texto que ainda seremos uma democracia plena. Qual a razão desse otimismo?

continua após a publicidade

(Risos) Em toda previsão há um tanto de vontade do futuro, de wishful thinking. É claro que eu identifico com a ideia de um Brasil democrático no futuro. Eu acho que o Brasil tem se democratizado. Esse é o ponto. De 1930 para cá, e talvez nem mesmo apenas a partir de 1930, mas antes inclusive, apesar de todos os vaivéns, o País se democratizou muito.

O sr. acha que esse processo não se interrompe?

Não. Nesse momento, nós estamos em um lusco-fusco. Pode haver uma tentativa de interrupção agora, mas eu não acredito que ela se firme, porque esse é o sonho brasileiro. Ou você sonha com a democracia ou você tem a ilusão da democracia. A ilusão da democracia está entre nós. Desde 1930. Inclusive o golpe de 1964 foi dado em nome da democracia. Foi dado contra a possibilidade de um comunismo golpista que viria do outro lado. Tanto assim que, imediatamente, depois do golpe, uma parte importante da opinião que o apoiou ficou contra, pois não aceitava, não queria a ditadura. Uma das coisas gloriosas do Estadão a meu ver foi isso. (Carlos) Lacerda queria ser candidato a presidente. Estou me referindo a figuras que foram protagonistas de um golpe de Estado, contudo, queriam a democracia de alguma maneira. Juscelino (Kubitschek) votou pela eleição de Castelo (Branco). O Brasil é complicadíssimo. Eu, pessoalmente, acredito que nós teremos a democracia. Nós como Nação. Vamos ter de ser democratas. Somos parte da economia do mundo. Não era e ficou parte da economia da Suécia, da Alemanha, dos Estados Unidos, do Japão. Somos um grande mercado consumidor e produtor para o mundo. Nosso relacionamento é com o mundo, com a China. Esse País é importante. Participamos da economia mundial de diversas maneiras. E ele é muito diferenciado internamente. As nossas regiões têm definições culturais muito fortes. A Bahia está aí desde sempre. Minas, esses Estados todos. O espírito regional no País é forte, dai a necessidade do federalismo, do Senado. E o sistema de representação mais ou menos dá um certo equilíbrio ao jogo de poder dos Estados, o que tem prejudicado São Paulo, que é maior do que a Argentina. Ou seja, é muito difícil um País com essas características, a essa altura, virar uma ditadura. Nós não somos uma república das bananas. Aqui tem muito mais do que bananas. É por isso que acredito e sonho com país plural e democrático no futuro, mas isso não é uma veleidade, mas uma chance real que o País tem.

Ao mesmo tempo, temos um predomínio do Executivo, que favorece o contato direto do líder com as massas...

Desde Pedro II, desde o Império. Nós temos uma tradição muito interessante na cabeça brasileira. Nós temos uma herança monárquica. Esse é o único País da América que teve tanto tempo de monarquia. Não quero dizer que temos uma vocação monárquica, mas mesmo no plebiscito sobre sistema de governo houve uma expressiva votação para a filia monarquista no espírito brasileiro. É uma parte da tradição: nós precisamos ter um líder central. Mas esse cara precisa ser controlado.

Ele não pode ser uma autoridade irresponsável como o imperador no sentido de não poder ser responsabilizado pelos atos?

Não pode. No sentido legal, no sentido em que se dava a essa palavra naquela época. Ele tem de ser responsável. Um Bolsonaro qualquer não pode querer ser um Pedro I. Ele pretende ser arbitrário como Pedro I. Ninguém pode no Brasil fazer isso. Getúlio não conseguiu. O sonho da democracia é o meu sonho e a minha ilusão, mas tem algo na realidade. Não é pura loucura da minha parte.

O sr. trata também da sobrevivência do corporativismo e a semi-representação no País. O sr. acha que eles são fundamentais para entender Bolsonaro?

No caso de Bolsonaro, o corporativismo existente é o corporativismo militar. Alguns dizem que ele é sindicalista militar. Ele é um corporativista que está no Estado, servindo a uma burocracia de Estado. Neste espírito genérico, o corporativismo tem uma variedade de formas e estilos extraordinários. Até as igrejas são corporativistas; lutam o tempo todo pela condições institucionais de propagação de sua fé. Somos também muito diferenciados por corporações.

Em que sentido?

No sentido que temos corporação da soja, da carne, a turma do agro. Essas corporações se manifestam dentro do Congresso, como se fossem bancadas. Uma das dificuldades de se fazer partido no Brasil é que o partido político exige uma fidelidade mais geral do que a corporação.

Essa falta efetiva de representação nos partidos leva a um déficit de legitimidade na política. O sr. acredita que, por isso, as forças políticas veem seus oponentes como uma ameaça à democracia. Em que medida essa falta de legitimidade ajuda o discurso do medo justificar a violência e o autoritarismo na política?

O Brasil é muito corporativo, mas ele quer ser Brasil. A única coisa que pode prevalecer sobre isso é a democracia. Os Estados Unidos também são extremamente corporativos. A diferença é que eles são democráticos.

O sr. acha que apesar de tudo, esse espírito nacional pode dar consistência à nossa casa comum?

Eu acho. Esse espírito nacional e o povo. Todo esse corporativismo vem desde a Idade Média; é muito antigo. De qualquer modo, mesmo no grande passado, ele defendia os mais pobres. A diferença entre o rico e o pobre, a participação do rico e do pobre têm de se resolver de algum jeito. E quem resolve isso é a democracia.

Quando se fala em medo, pensamos nos afetos, de como medo, o ressentimento e outros sentimentos são mobilizados pelas forças políticas. O sr. acha que estamos vivendo um momento em que os afetos assumiram uma importância maior que tiveram no passado? Estaríamos vivendo um momento mais agudo, percebidos pela pessoas como a polarização na política?

A meu ver o período da Guerra Fria foi muito mais pesado. Vivíamos sob a ameaça da guerra atômica. Em um determinado momento, a oposição entre a União Soviética e os Estados Unidos era terrível, e nós pagamos um preço por isso, inclusive em nossa política interna, com o comunismo e o anticomunismo. Era medo de lá e de cá. Um tinha medo do outro. Esse período foi muito ruim, pois nasce de outra fase de medo terrível, que foi a 2.ª Grande Guerra, algo surpreendente para todos, com a bomba atômica e, sobretudo, o morticínio e o holocausto. O nível de brutalidade a que se chegou a na 2.ª Grande Guerra nos deixou com 50 anos de medo para frente. Ou seja. O que fomos nós, os homens, capazes de fazer na 2.ª Grande Guerra nos permite fazer qualquer coisa. Esse é que é o medo. O medo vem de perder o controle e, por isso, de novo é a democracia que tem de controlar. O que você não consegue dizer em público, não faça, pois certamente você vai provocar o medo ou a indignação do outro. Então, não faça. Não se pode afrontar o senso comum e a consciência comum de maneira brutal. Nós herdamos das grandes guerras o medo daquilo que nós somos capazes de fazer. E isso passa como herança. Mas não a briga Bolsonaro e Lula. Essa polarização nós já a tivemos na política brasileira em nível regional, com uma ferocidade incrível. Em São Paulo, a oposição Jânio e Adhemar ou em plano nacional a oposição Getúlio e UDN. Não creio que essa ferocidade seja maior hoje. O que há é que nós temos de nós organizar de algum jeito para termos controle sobre nós mesmos.

Daí a necessidade da defesa das instituições democráticas?

Defesa intransigente. A UDN tinha uma frase que repetia muito: ‘O preço de liberdade é a terna vigilância’. Essa frase é uma frase da tradição democrática americana e é verdade. Toda democracia é frágil. É só dormir. Outros moralistas políticos têm tratado disso. O problema não é quem faz o mal, mas a preguiça de quem faz o bem e não se mexe.

O sr. está se referindo ao La Boétie?

A (obra Discurso da) Servidão Voluntária, do Étienne de La Boétie. São coisas antigas que estão na cultura humana que já foram teorizadas suficientemente. No Brasil, nós somos extremamente ignorantes. O Brasil não é especialmente brutal, mas é especialmente ignorante. Ou seja, estamos caminhando, estamos melhorando, mas somos atrasados mais do que alguns outros países, inclusive latino-americanos, sem comparar com a Argentina, pois a brutalidade do regime militar da Argentina, a tradição brasileira é suficiente doce para impedir. Não chegamos àquele nível.

Há uma tradição que impediu que chegássemos à opção pelo massacre no regime militar?

Não levou ao extremo de outros lugares.

Mas esses extremos criaram as condições para que a repetição histórica do autoritarismo militar seja superado nesses países pela memória coletiva criada, a exemplo do que se passou na Alemanha. No Brasil, por não termos chegados a esses extremos, a perspectiva autoritária ainda estaria presente?

A nossa tradição autoritária é forte, mas nós não chegamos nem ao Chile nem à Argentina. O Chile tem uma tradição democrática maior do que a nossa, mas chegaram muito mais longe no regime militar. A nossa tradição não é apenas política, é uma tradição do mundo rural, da cidade pequena, das famílias extensas; há um tradicionalismo nosso que nos defende do tradicionalismo mais brutal, porque não o admite. Mesmo no regime militar que tivemos houve tentativas militares de copiar o Chile e a Argentina que foram recusadas no meio militar por causa do tradicionalismo nosso. Nós não fazemos isso. Não sei se você conhece uma frase atribuída a Caxias, que é muito nossa. A Guerra do Paraguai foi muito terrível e houve um momento em que Caxias se desentendeu com o imperador na linha de estratégia do Brasil. Ele foi substituído pelo Conde d’Eu. Caxias não achava fundamental caçar o ditador do Paraguai (Solano López) e, como achava que a guerra já estava vencida, disse: ‘Agora estamos guerreando com criança e eu não estou aqui para fazer guerra a meninos’. É um tipo de coisa que escapa a qualquer noção de disciplina; é uma noção moral. Eu não brigo com criança. Esse é um tipo de critério moral que está na nossa tradição. É da tradição familística, das grandes famílias no Brasil. A responsabilidade começa a partir de um certo ponto da vida. Garoto não tem responsabilidade, garoto é garoto. Esse paradigma moral, que é um paradigma de tipo tradicional, tem raízes profundas na tradição brasileira. Além de um certo ponto não se vai. Não se aguenta a violência além de um certo ponto; ela é insuportável moralmente. Isso é tradicional. Países de grande tradição democrática não permitem que um militar obedeça a uma ordem fora da lei, mas, como o Brasil não tem essa grande tradição, o que nós temos é outra, que leva à mesma coisa. A alternativa é a democracia; traduzir esses princípios para a democracia.

O sr. acredita que as condições para a superação da crise aberta pela eleição de Jair Bolsonaro existem dentro da sociedade?

Sim. Não dá pra fazer qualquer coisa no Brasil. O Brasil tem razões econômicas, estruturais e históricas e inclusive culturais. Nós não vamos além de um certo ponto. Não admitimos certas coisas. Os militares não permitiram no Brasil a Operação Condor. Não é porque são bonzinhos, mas porque eles são brasileiros.

Como a democratização por via autoritária se manifesta em nosso dias e, particularmente, no governo de Jair Bolsonaro?

Essa ideia da democratização por via autoritária é uma noção para cobrir todo o processo que vem dos anos 1930 para cá. Meu entendimento é que Jair Bolsonaro é um subcapítulo desse processo. Ele repete, provavelmente sem saber, os procedimentos já adotados pelo Getúlio (Vargas) em 1930. Não vejo Bolsonaro como agente da democratização, ele fala que é democrata e que a democracia está ameaçada, mas não o comparo a nenhum dos líderes autoritários democráticos que já tivemos.

Cientista político Francisco Weffort. Foto: Tiago Queiroz/Estadão - 02/07/2019

O sr. quer dizer que a democracia para Bolsonaro teria um caráter meramente instrumental?

Eu creio que sim: instrumental e propagandístico, porque efetivamente ele fala de uma democracia que a gente não vê acontecer. A única medida que mais ou menos assemelha o governo Bolsonaro à essa tradição brasileira é o auxílio emergencial, algo típico da democracia autoritária. Claro que o Estado deve dar o auxílio, mas isso é um gesto democrático que vem de fonte autoritária.

O sr. trabalha a ideia de que a democratização por via autoritária torna difuso o conceito de que a política se realiza à parte da sociedade. E também dá como herança outra ideia, a de que a vontade do líder vale mais do que o respeito às leis, de que a política só se efetiva quando autoritária...

A política só se efetiva quando ela fala, se expressa pelo líder, pelo chefe, pelo comandante. Essa é a ideia básica. O Bolsonaro acredita que deve opinar sobre tudo como se pudesse entender de tudo. Estamos em uma pandemia e ele agora decide da cabeça dele que não é necessário usar máscara para quem já foi vacinado. Ou seja, não obedece às regras habituais de um sistema democrático. Nesse sentido é autoritário.

O sr. também descreve no livro surgimento de dissidências oligárquicas. Bolsonaro não é um dissidente. Como ele se situa dentro dessa tradição?

Ele é um caso à parte. Nesse sentido ele é um ponto fora da curva. Ele é ex-membro de uma organização de Estado. As dissidências oligárquicas têm relação com os chefes políticos regionais, da tradição oligárquica brasileiro. Ele é um ex-oficial que fala como ex-oficial.

Ele se insere dentro da tradição de uma parte da burocracia estatal, o Exército, de intervir na vida política da República?

Eu diria que ele quer relembrar tradição. Ele quer convocar essa tradição a favor dele, mas é muito diferente, como significado político, de toda essa tradição, pois ela é a tradição do tenentismo. É a que vem de antes do fim do Império, muito antiga, que fala dentro do Exército. Ele é excluído do Exército e fala da memória de ter sido. Ele não é bem esse personagem, mas quer lembrar essa tradição em nome dele. Então diz: ‘O meu Exército’.

Tenta reeditar a ideia de uma reforma institucional que passe pela moralização da política?

Exatamente. Isso sim. Se você lembrar bem, a Revolução de 1930 foi uma revolução em nome da moralidade pública, um grande movimento de opinião pública que passou pelas Forças Armadas e entrou na tradição militar. É verdadeiramente da tradição brasileira. É curioso, mas a Revolução de 1930 é uma luta pela democracia, pois a democracia que tínhamos era restrita, era oligárquica. Fica na tradição a lembrança da democracia vencendo. É parte do discurso oficial brasileiro, parte do sonho brasileiro – digamos assim –; o fantasma brasileiro, da ilusão brasileira da democracia. E parte das tradições de origem militar.

O sr. descreve ainda o impacto do comparecimento às urnas e as ilusões com o voto obrigatório no processo político brasileiro. O comparecimento às eleições serve de limite à tendência autoritária na democratização do País?

O lado democrático disso é que Getúlio e Jânio (Quadros) ganharam eleições. O próprio Bolsonaro fala de eleições e fraude em eleição. É uma disputa em torno de eleição. Tanto assim, que ele quer mudar o sistema de voto atual, um dos mais completos e modernos do mundo. Ou seja, é em torno desses mesmos valores que estão lá atrás na história que ele fala. Aumentar o eleitorado e abrir para as eleições é uma virtude democrática nessa tradição brasileira, afrouxando limites de idade e permitindo o voto aos analfabetos. A ideia é de que todos participem da democracia por meio do voto, o que é um limite ao autoritarismo, mas ao mesmo tempo foi promovido pelo autoritarismo.

O que de novo Bolsonaro traz para o populismo de direita em relação ao passado?

Não vejo muitas novidades no Bolsonaro. Ele repete a retórica. Há, no entanto uma diferença, que é a retórica privatista, o que é mais parecido com o Jânio. Mas todos os outros (Getúlio e Adhemar) eram mais estatistas. Nisso o Bolsonaro não é muito parecido com o passado. Ele fala em privatismo, mas não sei se vai privatizar. Outra diferença importante é a política exterior. Nela, ele é de direita. O Jânio, que tinha muita semelhança com Bolsonaro, não mexe na política externa brasileira e estimula um certo pluralismo; falava com (Gamal) Nasser, com (Jawaharlal) Nehru. A tradição brasileira é mais à esquerda na política internacional, com exceção do período de confronto com o comunismo.

O sr. diz no seu texto que ainda seremos uma democracia plena. Qual a razão desse otimismo?

(Risos) Em toda previsão há um tanto de vontade do futuro, de wishful thinking. É claro que eu identifico com a ideia de um Brasil democrático no futuro. Eu acho que o Brasil tem se democratizado. Esse é o ponto. De 1930 para cá, e talvez nem mesmo apenas a partir de 1930, mas antes inclusive, apesar de todos os vaivéns, o País se democratizou muito.

O sr. acha que esse processo não se interrompe?

Não. Nesse momento, nós estamos em um lusco-fusco. Pode haver uma tentativa de interrupção agora, mas eu não acredito que ela se firme, porque esse é o sonho brasileiro. Ou você sonha com a democracia ou você tem a ilusão da democracia. A ilusão da democracia está entre nós. Desde 1930. Inclusive o golpe de 1964 foi dado em nome da democracia. Foi dado contra a possibilidade de um comunismo golpista que viria do outro lado. Tanto assim que, imediatamente, depois do golpe, uma parte importante da opinião que o apoiou ficou contra, pois não aceitava, não queria a ditadura. Uma das coisas gloriosas do Estadão a meu ver foi isso. (Carlos) Lacerda queria ser candidato a presidente. Estou me referindo a figuras que foram protagonistas de um golpe de Estado, contudo, queriam a democracia de alguma maneira. Juscelino (Kubitschek) votou pela eleição de Castelo (Branco). O Brasil é complicadíssimo. Eu, pessoalmente, acredito que nós teremos a democracia. Nós como Nação. Vamos ter de ser democratas. Somos parte da economia do mundo. Não era e ficou parte da economia da Suécia, da Alemanha, dos Estados Unidos, do Japão. Somos um grande mercado consumidor e produtor para o mundo. Nosso relacionamento é com o mundo, com a China. Esse País é importante. Participamos da economia mundial de diversas maneiras. E ele é muito diferenciado internamente. As nossas regiões têm definições culturais muito fortes. A Bahia está aí desde sempre. Minas, esses Estados todos. O espírito regional no País é forte, dai a necessidade do federalismo, do Senado. E o sistema de representação mais ou menos dá um certo equilíbrio ao jogo de poder dos Estados, o que tem prejudicado São Paulo, que é maior do que a Argentina. Ou seja, é muito difícil um País com essas características, a essa altura, virar uma ditadura. Nós não somos uma república das bananas. Aqui tem muito mais do que bananas. É por isso que acredito e sonho com país plural e democrático no futuro, mas isso não é uma veleidade, mas uma chance real que o País tem.

Ao mesmo tempo, temos um predomínio do Executivo, que favorece o contato direto do líder com as massas...

Desde Pedro II, desde o Império. Nós temos uma tradição muito interessante na cabeça brasileira. Nós temos uma herança monárquica. Esse é o único País da América que teve tanto tempo de monarquia. Não quero dizer que temos uma vocação monárquica, mas mesmo no plebiscito sobre sistema de governo houve uma expressiva votação para a filia monarquista no espírito brasileiro. É uma parte da tradição: nós precisamos ter um líder central. Mas esse cara precisa ser controlado.

Ele não pode ser uma autoridade irresponsável como o imperador no sentido de não poder ser responsabilizado pelos atos?

Não pode. No sentido legal, no sentido em que se dava a essa palavra naquela época. Ele tem de ser responsável. Um Bolsonaro qualquer não pode querer ser um Pedro I. Ele pretende ser arbitrário como Pedro I. Ninguém pode no Brasil fazer isso. Getúlio não conseguiu. O sonho da democracia é o meu sonho e a minha ilusão, mas tem algo na realidade. Não é pura loucura da minha parte.

O sr. trata também da sobrevivência do corporativismo e a semi-representação no País. O sr. acha que eles são fundamentais para entender Bolsonaro?

No caso de Bolsonaro, o corporativismo existente é o corporativismo militar. Alguns dizem que ele é sindicalista militar. Ele é um corporativista que está no Estado, servindo a uma burocracia de Estado. Neste espírito genérico, o corporativismo tem uma variedade de formas e estilos extraordinários. Até as igrejas são corporativistas; lutam o tempo todo pela condições institucionais de propagação de sua fé. Somos também muito diferenciados por corporações.

Em que sentido?

No sentido que temos corporação da soja, da carne, a turma do agro. Essas corporações se manifestam dentro do Congresso, como se fossem bancadas. Uma das dificuldades de se fazer partido no Brasil é que o partido político exige uma fidelidade mais geral do que a corporação.

Essa falta efetiva de representação nos partidos leva a um déficit de legitimidade na política. O sr. acredita que, por isso, as forças políticas veem seus oponentes como uma ameaça à democracia. Em que medida essa falta de legitimidade ajuda o discurso do medo justificar a violência e o autoritarismo na política?

O Brasil é muito corporativo, mas ele quer ser Brasil. A única coisa que pode prevalecer sobre isso é a democracia. Os Estados Unidos também são extremamente corporativos. A diferença é que eles são democráticos.

O sr. acha que apesar de tudo, esse espírito nacional pode dar consistência à nossa casa comum?

Eu acho. Esse espírito nacional e o povo. Todo esse corporativismo vem desde a Idade Média; é muito antigo. De qualquer modo, mesmo no grande passado, ele defendia os mais pobres. A diferença entre o rico e o pobre, a participação do rico e do pobre têm de se resolver de algum jeito. E quem resolve isso é a democracia.

Quando se fala em medo, pensamos nos afetos, de como medo, o ressentimento e outros sentimentos são mobilizados pelas forças políticas. O sr. acha que estamos vivendo um momento em que os afetos assumiram uma importância maior que tiveram no passado? Estaríamos vivendo um momento mais agudo, percebidos pela pessoas como a polarização na política?

A meu ver o período da Guerra Fria foi muito mais pesado. Vivíamos sob a ameaça da guerra atômica. Em um determinado momento, a oposição entre a União Soviética e os Estados Unidos era terrível, e nós pagamos um preço por isso, inclusive em nossa política interna, com o comunismo e o anticomunismo. Era medo de lá e de cá. Um tinha medo do outro. Esse período foi muito ruim, pois nasce de outra fase de medo terrível, que foi a 2.ª Grande Guerra, algo surpreendente para todos, com a bomba atômica e, sobretudo, o morticínio e o holocausto. O nível de brutalidade a que se chegou a na 2.ª Grande Guerra nos deixou com 50 anos de medo para frente. Ou seja. O que fomos nós, os homens, capazes de fazer na 2.ª Grande Guerra nos permite fazer qualquer coisa. Esse é que é o medo. O medo vem de perder o controle e, por isso, de novo é a democracia que tem de controlar. O que você não consegue dizer em público, não faça, pois certamente você vai provocar o medo ou a indignação do outro. Então, não faça. Não se pode afrontar o senso comum e a consciência comum de maneira brutal. Nós herdamos das grandes guerras o medo daquilo que nós somos capazes de fazer. E isso passa como herança. Mas não a briga Bolsonaro e Lula. Essa polarização nós já a tivemos na política brasileira em nível regional, com uma ferocidade incrível. Em São Paulo, a oposição Jânio e Adhemar ou em plano nacional a oposição Getúlio e UDN. Não creio que essa ferocidade seja maior hoje. O que há é que nós temos de nós organizar de algum jeito para termos controle sobre nós mesmos.

Daí a necessidade da defesa das instituições democráticas?

Defesa intransigente. A UDN tinha uma frase que repetia muito: ‘O preço de liberdade é a terna vigilância’. Essa frase é uma frase da tradição democrática americana e é verdade. Toda democracia é frágil. É só dormir. Outros moralistas políticos têm tratado disso. O problema não é quem faz o mal, mas a preguiça de quem faz o bem e não se mexe.

O sr. está se referindo ao La Boétie?

A (obra Discurso da) Servidão Voluntária, do Étienne de La Boétie. São coisas antigas que estão na cultura humana que já foram teorizadas suficientemente. No Brasil, nós somos extremamente ignorantes. O Brasil não é especialmente brutal, mas é especialmente ignorante. Ou seja, estamos caminhando, estamos melhorando, mas somos atrasados mais do que alguns outros países, inclusive latino-americanos, sem comparar com a Argentina, pois a brutalidade do regime militar da Argentina, a tradição brasileira é suficiente doce para impedir. Não chegamos àquele nível.

Há uma tradição que impediu que chegássemos à opção pelo massacre no regime militar?

Não levou ao extremo de outros lugares.

Mas esses extremos criaram as condições para que a repetição histórica do autoritarismo militar seja superado nesses países pela memória coletiva criada, a exemplo do que se passou na Alemanha. No Brasil, por não termos chegados a esses extremos, a perspectiva autoritária ainda estaria presente?

A nossa tradição autoritária é forte, mas nós não chegamos nem ao Chile nem à Argentina. O Chile tem uma tradição democrática maior do que a nossa, mas chegaram muito mais longe no regime militar. A nossa tradição não é apenas política, é uma tradição do mundo rural, da cidade pequena, das famílias extensas; há um tradicionalismo nosso que nos defende do tradicionalismo mais brutal, porque não o admite. Mesmo no regime militar que tivemos houve tentativas militares de copiar o Chile e a Argentina que foram recusadas no meio militar por causa do tradicionalismo nosso. Nós não fazemos isso. Não sei se você conhece uma frase atribuída a Caxias, que é muito nossa. A Guerra do Paraguai foi muito terrível e houve um momento em que Caxias se desentendeu com o imperador na linha de estratégia do Brasil. Ele foi substituído pelo Conde d’Eu. Caxias não achava fundamental caçar o ditador do Paraguai (Solano López) e, como achava que a guerra já estava vencida, disse: ‘Agora estamos guerreando com criança e eu não estou aqui para fazer guerra a meninos’. É um tipo de coisa que escapa a qualquer noção de disciplina; é uma noção moral. Eu não brigo com criança. Esse é um tipo de critério moral que está na nossa tradição. É da tradição familística, das grandes famílias no Brasil. A responsabilidade começa a partir de um certo ponto da vida. Garoto não tem responsabilidade, garoto é garoto. Esse paradigma moral, que é um paradigma de tipo tradicional, tem raízes profundas na tradição brasileira. Além de um certo ponto não se vai. Não se aguenta a violência além de um certo ponto; ela é insuportável moralmente. Isso é tradicional. Países de grande tradição democrática não permitem que um militar obedeça a uma ordem fora da lei, mas, como o Brasil não tem essa grande tradição, o que nós temos é outra, que leva à mesma coisa. A alternativa é a democracia; traduzir esses princípios para a democracia.

O sr. acredita que as condições para a superação da crise aberta pela eleição de Jair Bolsonaro existem dentro da sociedade?

Sim. Não dá pra fazer qualquer coisa no Brasil. O Brasil tem razões econômicas, estruturais e históricas e inclusive culturais. Nós não vamos além de um certo ponto. Não admitimos certas coisas. Os militares não permitiram no Brasil a Operação Condor. Não é porque são bonzinhos, mas porque eles são brasileiros.

Como a democratização por via autoritária se manifesta em nosso dias e, particularmente, no governo de Jair Bolsonaro?

Essa ideia da democratização por via autoritária é uma noção para cobrir todo o processo que vem dos anos 1930 para cá. Meu entendimento é que Jair Bolsonaro é um subcapítulo desse processo. Ele repete, provavelmente sem saber, os procedimentos já adotados pelo Getúlio (Vargas) em 1930. Não vejo Bolsonaro como agente da democratização, ele fala que é democrata e que a democracia está ameaçada, mas não o comparo a nenhum dos líderes autoritários democráticos que já tivemos.

Cientista político Francisco Weffort. Foto: Tiago Queiroz/Estadão - 02/07/2019

O sr. quer dizer que a democracia para Bolsonaro teria um caráter meramente instrumental?

Eu creio que sim: instrumental e propagandístico, porque efetivamente ele fala de uma democracia que a gente não vê acontecer. A única medida que mais ou menos assemelha o governo Bolsonaro à essa tradição brasileira é o auxílio emergencial, algo típico da democracia autoritária. Claro que o Estado deve dar o auxílio, mas isso é um gesto democrático que vem de fonte autoritária.

O sr. trabalha a ideia de que a democratização por via autoritária torna difuso o conceito de que a política se realiza à parte da sociedade. E também dá como herança outra ideia, a de que a vontade do líder vale mais do que o respeito às leis, de que a política só se efetiva quando autoritária...

A política só se efetiva quando ela fala, se expressa pelo líder, pelo chefe, pelo comandante. Essa é a ideia básica. O Bolsonaro acredita que deve opinar sobre tudo como se pudesse entender de tudo. Estamos em uma pandemia e ele agora decide da cabeça dele que não é necessário usar máscara para quem já foi vacinado. Ou seja, não obedece às regras habituais de um sistema democrático. Nesse sentido é autoritário.

O sr. também descreve no livro surgimento de dissidências oligárquicas. Bolsonaro não é um dissidente. Como ele se situa dentro dessa tradição?

Ele é um caso à parte. Nesse sentido ele é um ponto fora da curva. Ele é ex-membro de uma organização de Estado. As dissidências oligárquicas têm relação com os chefes políticos regionais, da tradição oligárquica brasileiro. Ele é um ex-oficial que fala como ex-oficial.

Ele se insere dentro da tradição de uma parte da burocracia estatal, o Exército, de intervir na vida política da República?

Eu diria que ele quer relembrar tradição. Ele quer convocar essa tradição a favor dele, mas é muito diferente, como significado político, de toda essa tradição, pois ela é a tradição do tenentismo. É a que vem de antes do fim do Império, muito antiga, que fala dentro do Exército. Ele é excluído do Exército e fala da memória de ter sido. Ele não é bem esse personagem, mas quer lembrar essa tradição em nome dele. Então diz: ‘O meu Exército’.

Tenta reeditar a ideia de uma reforma institucional que passe pela moralização da política?

Exatamente. Isso sim. Se você lembrar bem, a Revolução de 1930 foi uma revolução em nome da moralidade pública, um grande movimento de opinião pública que passou pelas Forças Armadas e entrou na tradição militar. É verdadeiramente da tradição brasileira. É curioso, mas a Revolução de 1930 é uma luta pela democracia, pois a democracia que tínhamos era restrita, era oligárquica. Fica na tradição a lembrança da democracia vencendo. É parte do discurso oficial brasileiro, parte do sonho brasileiro – digamos assim –; o fantasma brasileiro, da ilusão brasileira da democracia. E parte das tradições de origem militar.

O sr. descreve ainda o impacto do comparecimento às urnas e as ilusões com o voto obrigatório no processo político brasileiro. O comparecimento às eleições serve de limite à tendência autoritária na democratização do País?

O lado democrático disso é que Getúlio e Jânio (Quadros) ganharam eleições. O próprio Bolsonaro fala de eleições e fraude em eleição. É uma disputa em torno de eleição. Tanto assim, que ele quer mudar o sistema de voto atual, um dos mais completos e modernos do mundo. Ou seja, é em torno desses mesmos valores que estão lá atrás na história que ele fala. Aumentar o eleitorado e abrir para as eleições é uma virtude democrática nessa tradição brasileira, afrouxando limites de idade e permitindo o voto aos analfabetos. A ideia é de que todos participem da democracia por meio do voto, o que é um limite ao autoritarismo, mas ao mesmo tempo foi promovido pelo autoritarismo.

O que de novo Bolsonaro traz para o populismo de direita em relação ao passado?

Não vejo muitas novidades no Bolsonaro. Ele repete a retórica. Há, no entanto uma diferença, que é a retórica privatista, o que é mais parecido com o Jânio. Mas todos os outros (Getúlio e Adhemar) eram mais estatistas. Nisso o Bolsonaro não é muito parecido com o passado. Ele fala em privatismo, mas não sei se vai privatizar. Outra diferença importante é a política exterior. Nela, ele é de direita. O Jânio, que tinha muita semelhança com Bolsonaro, não mexe na política externa brasileira e estimula um certo pluralismo; falava com (Gamal) Nasser, com (Jawaharlal) Nehru. A tradição brasileira é mais à esquerda na política internacional, com exceção do período de confronto com o comunismo.

O sr. diz no seu texto que ainda seremos uma democracia plena. Qual a razão desse otimismo?

(Risos) Em toda previsão há um tanto de vontade do futuro, de wishful thinking. É claro que eu identifico com a ideia de um Brasil democrático no futuro. Eu acho que o Brasil tem se democratizado. Esse é o ponto. De 1930 para cá, e talvez nem mesmo apenas a partir de 1930, mas antes inclusive, apesar de todos os vaivéns, o País se democratizou muito.

O sr. acha que esse processo não se interrompe?

Não. Nesse momento, nós estamos em um lusco-fusco. Pode haver uma tentativa de interrupção agora, mas eu não acredito que ela se firme, porque esse é o sonho brasileiro. Ou você sonha com a democracia ou você tem a ilusão da democracia. A ilusão da democracia está entre nós. Desde 1930. Inclusive o golpe de 1964 foi dado em nome da democracia. Foi dado contra a possibilidade de um comunismo golpista que viria do outro lado. Tanto assim que, imediatamente, depois do golpe, uma parte importante da opinião que o apoiou ficou contra, pois não aceitava, não queria a ditadura. Uma das coisas gloriosas do Estadão a meu ver foi isso. (Carlos) Lacerda queria ser candidato a presidente. Estou me referindo a figuras que foram protagonistas de um golpe de Estado, contudo, queriam a democracia de alguma maneira. Juscelino (Kubitschek) votou pela eleição de Castelo (Branco). O Brasil é complicadíssimo. Eu, pessoalmente, acredito que nós teremos a democracia. Nós como Nação. Vamos ter de ser democratas. Somos parte da economia do mundo. Não era e ficou parte da economia da Suécia, da Alemanha, dos Estados Unidos, do Japão. Somos um grande mercado consumidor e produtor para o mundo. Nosso relacionamento é com o mundo, com a China. Esse País é importante. Participamos da economia mundial de diversas maneiras. E ele é muito diferenciado internamente. As nossas regiões têm definições culturais muito fortes. A Bahia está aí desde sempre. Minas, esses Estados todos. O espírito regional no País é forte, dai a necessidade do federalismo, do Senado. E o sistema de representação mais ou menos dá um certo equilíbrio ao jogo de poder dos Estados, o que tem prejudicado São Paulo, que é maior do que a Argentina. Ou seja, é muito difícil um País com essas características, a essa altura, virar uma ditadura. Nós não somos uma república das bananas. Aqui tem muito mais do que bananas. É por isso que acredito e sonho com país plural e democrático no futuro, mas isso não é uma veleidade, mas uma chance real que o País tem.

Ao mesmo tempo, temos um predomínio do Executivo, que favorece o contato direto do líder com as massas...

Desde Pedro II, desde o Império. Nós temos uma tradição muito interessante na cabeça brasileira. Nós temos uma herança monárquica. Esse é o único País da América que teve tanto tempo de monarquia. Não quero dizer que temos uma vocação monárquica, mas mesmo no plebiscito sobre sistema de governo houve uma expressiva votação para a filia monarquista no espírito brasileiro. É uma parte da tradição: nós precisamos ter um líder central. Mas esse cara precisa ser controlado.

Ele não pode ser uma autoridade irresponsável como o imperador no sentido de não poder ser responsabilizado pelos atos?

Não pode. No sentido legal, no sentido em que se dava a essa palavra naquela época. Ele tem de ser responsável. Um Bolsonaro qualquer não pode querer ser um Pedro I. Ele pretende ser arbitrário como Pedro I. Ninguém pode no Brasil fazer isso. Getúlio não conseguiu. O sonho da democracia é o meu sonho e a minha ilusão, mas tem algo na realidade. Não é pura loucura da minha parte.

O sr. trata também da sobrevivência do corporativismo e a semi-representação no País. O sr. acha que eles são fundamentais para entender Bolsonaro?

No caso de Bolsonaro, o corporativismo existente é o corporativismo militar. Alguns dizem que ele é sindicalista militar. Ele é um corporativista que está no Estado, servindo a uma burocracia de Estado. Neste espírito genérico, o corporativismo tem uma variedade de formas e estilos extraordinários. Até as igrejas são corporativistas; lutam o tempo todo pela condições institucionais de propagação de sua fé. Somos também muito diferenciados por corporações.

Em que sentido?

No sentido que temos corporação da soja, da carne, a turma do agro. Essas corporações se manifestam dentro do Congresso, como se fossem bancadas. Uma das dificuldades de se fazer partido no Brasil é que o partido político exige uma fidelidade mais geral do que a corporação.

Essa falta efetiva de representação nos partidos leva a um déficit de legitimidade na política. O sr. acredita que, por isso, as forças políticas veem seus oponentes como uma ameaça à democracia. Em que medida essa falta de legitimidade ajuda o discurso do medo justificar a violência e o autoritarismo na política?

O Brasil é muito corporativo, mas ele quer ser Brasil. A única coisa que pode prevalecer sobre isso é a democracia. Os Estados Unidos também são extremamente corporativos. A diferença é que eles são democráticos.

O sr. acha que apesar de tudo, esse espírito nacional pode dar consistência à nossa casa comum?

Eu acho. Esse espírito nacional e o povo. Todo esse corporativismo vem desde a Idade Média; é muito antigo. De qualquer modo, mesmo no grande passado, ele defendia os mais pobres. A diferença entre o rico e o pobre, a participação do rico e do pobre têm de se resolver de algum jeito. E quem resolve isso é a democracia.

Quando se fala em medo, pensamos nos afetos, de como medo, o ressentimento e outros sentimentos são mobilizados pelas forças políticas. O sr. acha que estamos vivendo um momento em que os afetos assumiram uma importância maior que tiveram no passado? Estaríamos vivendo um momento mais agudo, percebidos pela pessoas como a polarização na política?

A meu ver o período da Guerra Fria foi muito mais pesado. Vivíamos sob a ameaça da guerra atômica. Em um determinado momento, a oposição entre a União Soviética e os Estados Unidos era terrível, e nós pagamos um preço por isso, inclusive em nossa política interna, com o comunismo e o anticomunismo. Era medo de lá e de cá. Um tinha medo do outro. Esse período foi muito ruim, pois nasce de outra fase de medo terrível, que foi a 2.ª Grande Guerra, algo surpreendente para todos, com a bomba atômica e, sobretudo, o morticínio e o holocausto. O nível de brutalidade a que se chegou a na 2.ª Grande Guerra nos deixou com 50 anos de medo para frente. Ou seja. O que fomos nós, os homens, capazes de fazer na 2.ª Grande Guerra nos permite fazer qualquer coisa. Esse é que é o medo. O medo vem de perder o controle e, por isso, de novo é a democracia que tem de controlar. O que você não consegue dizer em público, não faça, pois certamente você vai provocar o medo ou a indignação do outro. Então, não faça. Não se pode afrontar o senso comum e a consciência comum de maneira brutal. Nós herdamos das grandes guerras o medo daquilo que nós somos capazes de fazer. E isso passa como herança. Mas não a briga Bolsonaro e Lula. Essa polarização nós já a tivemos na política brasileira em nível regional, com uma ferocidade incrível. Em São Paulo, a oposição Jânio e Adhemar ou em plano nacional a oposição Getúlio e UDN. Não creio que essa ferocidade seja maior hoje. O que há é que nós temos de nós organizar de algum jeito para termos controle sobre nós mesmos.

Daí a necessidade da defesa das instituições democráticas?

Defesa intransigente. A UDN tinha uma frase que repetia muito: ‘O preço de liberdade é a terna vigilância’. Essa frase é uma frase da tradição democrática americana e é verdade. Toda democracia é frágil. É só dormir. Outros moralistas políticos têm tratado disso. O problema não é quem faz o mal, mas a preguiça de quem faz o bem e não se mexe.

O sr. está se referindo ao La Boétie?

A (obra Discurso da) Servidão Voluntária, do Étienne de La Boétie. São coisas antigas que estão na cultura humana que já foram teorizadas suficientemente. No Brasil, nós somos extremamente ignorantes. O Brasil não é especialmente brutal, mas é especialmente ignorante. Ou seja, estamos caminhando, estamos melhorando, mas somos atrasados mais do que alguns outros países, inclusive latino-americanos, sem comparar com a Argentina, pois a brutalidade do regime militar da Argentina, a tradição brasileira é suficiente doce para impedir. Não chegamos àquele nível.

Há uma tradição que impediu que chegássemos à opção pelo massacre no regime militar?

Não levou ao extremo de outros lugares.

Mas esses extremos criaram as condições para que a repetição histórica do autoritarismo militar seja superado nesses países pela memória coletiva criada, a exemplo do que se passou na Alemanha. No Brasil, por não termos chegados a esses extremos, a perspectiva autoritária ainda estaria presente?

A nossa tradição autoritária é forte, mas nós não chegamos nem ao Chile nem à Argentina. O Chile tem uma tradição democrática maior do que a nossa, mas chegaram muito mais longe no regime militar. A nossa tradição não é apenas política, é uma tradição do mundo rural, da cidade pequena, das famílias extensas; há um tradicionalismo nosso que nos defende do tradicionalismo mais brutal, porque não o admite. Mesmo no regime militar que tivemos houve tentativas militares de copiar o Chile e a Argentina que foram recusadas no meio militar por causa do tradicionalismo nosso. Nós não fazemos isso. Não sei se você conhece uma frase atribuída a Caxias, que é muito nossa. A Guerra do Paraguai foi muito terrível e houve um momento em que Caxias se desentendeu com o imperador na linha de estratégia do Brasil. Ele foi substituído pelo Conde d’Eu. Caxias não achava fundamental caçar o ditador do Paraguai (Solano López) e, como achava que a guerra já estava vencida, disse: ‘Agora estamos guerreando com criança e eu não estou aqui para fazer guerra a meninos’. É um tipo de coisa que escapa a qualquer noção de disciplina; é uma noção moral. Eu não brigo com criança. Esse é um tipo de critério moral que está na nossa tradição. É da tradição familística, das grandes famílias no Brasil. A responsabilidade começa a partir de um certo ponto da vida. Garoto não tem responsabilidade, garoto é garoto. Esse paradigma moral, que é um paradigma de tipo tradicional, tem raízes profundas na tradição brasileira. Além de um certo ponto não se vai. Não se aguenta a violência além de um certo ponto; ela é insuportável moralmente. Isso é tradicional. Países de grande tradição democrática não permitem que um militar obedeça a uma ordem fora da lei, mas, como o Brasil não tem essa grande tradição, o que nós temos é outra, que leva à mesma coisa. A alternativa é a democracia; traduzir esses princípios para a democracia.

O sr. acredita que as condições para a superação da crise aberta pela eleição de Jair Bolsonaro existem dentro da sociedade?

Sim. Não dá pra fazer qualquer coisa no Brasil. O Brasil tem razões econômicas, estruturais e históricas e inclusive culturais. Nós não vamos além de um certo ponto. Não admitimos certas coisas. Os militares não permitiram no Brasil a Operação Condor. Não é porque são bonzinhos, mas porque eles são brasileiros.

Como a democratização por via autoritária se manifesta em nosso dias e, particularmente, no governo de Jair Bolsonaro?

Essa ideia da democratização por via autoritária é uma noção para cobrir todo o processo que vem dos anos 1930 para cá. Meu entendimento é que Jair Bolsonaro é um subcapítulo desse processo. Ele repete, provavelmente sem saber, os procedimentos já adotados pelo Getúlio (Vargas) em 1930. Não vejo Bolsonaro como agente da democratização, ele fala que é democrata e que a democracia está ameaçada, mas não o comparo a nenhum dos líderes autoritários democráticos que já tivemos.

Cientista político Francisco Weffort. Foto: Tiago Queiroz/Estadão - 02/07/2019

O sr. quer dizer que a democracia para Bolsonaro teria um caráter meramente instrumental?

Eu creio que sim: instrumental e propagandístico, porque efetivamente ele fala de uma democracia que a gente não vê acontecer. A única medida que mais ou menos assemelha o governo Bolsonaro à essa tradição brasileira é o auxílio emergencial, algo típico da democracia autoritária. Claro que o Estado deve dar o auxílio, mas isso é um gesto democrático que vem de fonte autoritária.

O sr. trabalha a ideia de que a democratização por via autoritária torna difuso o conceito de que a política se realiza à parte da sociedade. E também dá como herança outra ideia, a de que a vontade do líder vale mais do que o respeito às leis, de que a política só se efetiva quando autoritária...

A política só se efetiva quando ela fala, se expressa pelo líder, pelo chefe, pelo comandante. Essa é a ideia básica. O Bolsonaro acredita que deve opinar sobre tudo como se pudesse entender de tudo. Estamos em uma pandemia e ele agora decide da cabeça dele que não é necessário usar máscara para quem já foi vacinado. Ou seja, não obedece às regras habituais de um sistema democrático. Nesse sentido é autoritário.

O sr. também descreve no livro surgimento de dissidências oligárquicas. Bolsonaro não é um dissidente. Como ele se situa dentro dessa tradição?

Ele é um caso à parte. Nesse sentido ele é um ponto fora da curva. Ele é ex-membro de uma organização de Estado. As dissidências oligárquicas têm relação com os chefes políticos regionais, da tradição oligárquica brasileiro. Ele é um ex-oficial que fala como ex-oficial.

Ele se insere dentro da tradição de uma parte da burocracia estatal, o Exército, de intervir na vida política da República?

Eu diria que ele quer relembrar tradição. Ele quer convocar essa tradição a favor dele, mas é muito diferente, como significado político, de toda essa tradição, pois ela é a tradição do tenentismo. É a que vem de antes do fim do Império, muito antiga, que fala dentro do Exército. Ele é excluído do Exército e fala da memória de ter sido. Ele não é bem esse personagem, mas quer lembrar essa tradição em nome dele. Então diz: ‘O meu Exército’.

Tenta reeditar a ideia de uma reforma institucional que passe pela moralização da política?

Exatamente. Isso sim. Se você lembrar bem, a Revolução de 1930 foi uma revolução em nome da moralidade pública, um grande movimento de opinião pública que passou pelas Forças Armadas e entrou na tradição militar. É verdadeiramente da tradição brasileira. É curioso, mas a Revolução de 1930 é uma luta pela democracia, pois a democracia que tínhamos era restrita, era oligárquica. Fica na tradição a lembrança da democracia vencendo. É parte do discurso oficial brasileiro, parte do sonho brasileiro – digamos assim –; o fantasma brasileiro, da ilusão brasileira da democracia. E parte das tradições de origem militar.

O sr. descreve ainda o impacto do comparecimento às urnas e as ilusões com o voto obrigatório no processo político brasileiro. O comparecimento às eleições serve de limite à tendência autoritária na democratização do País?

O lado democrático disso é que Getúlio e Jânio (Quadros) ganharam eleições. O próprio Bolsonaro fala de eleições e fraude em eleição. É uma disputa em torno de eleição. Tanto assim, que ele quer mudar o sistema de voto atual, um dos mais completos e modernos do mundo. Ou seja, é em torno desses mesmos valores que estão lá atrás na história que ele fala. Aumentar o eleitorado e abrir para as eleições é uma virtude democrática nessa tradição brasileira, afrouxando limites de idade e permitindo o voto aos analfabetos. A ideia é de que todos participem da democracia por meio do voto, o que é um limite ao autoritarismo, mas ao mesmo tempo foi promovido pelo autoritarismo.

O que de novo Bolsonaro traz para o populismo de direita em relação ao passado?

Não vejo muitas novidades no Bolsonaro. Ele repete a retórica. Há, no entanto uma diferença, que é a retórica privatista, o que é mais parecido com o Jânio. Mas todos os outros (Getúlio e Adhemar) eram mais estatistas. Nisso o Bolsonaro não é muito parecido com o passado. Ele fala em privatismo, mas não sei se vai privatizar. Outra diferença importante é a política exterior. Nela, ele é de direita. O Jânio, que tinha muita semelhança com Bolsonaro, não mexe na política externa brasileira e estimula um certo pluralismo; falava com (Gamal) Nasser, com (Jawaharlal) Nehru. A tradição brasileira é mais à esquerda na política internacional, com exceção do período de confronto com o comunismo.

O sr. diz no seu texto que ainda seremos uma democracia plena. Qual a razão desse otimismo?

(Risos) Em toda previsão há um tanto de vontade do futuro, de wishful thinking. É claro que eu identifico com a ideia de um Brasil democrático no futuro. Eu acho que o Brasil tem se democratizado. Esse é o ponto. De 1930 para cá, e talvez nem mesmo apenas a partir de 1930, mas antes inclusive, apesar de todos os vaivéns, o País se democratizou muito.

O sr. acha que esse processo não se interrompe?

Não. Nesse momento, nós estamos em um lusco-fusco. Pode haver uma tentativa de interrupção agora, mas eu não acredito que ela se firme, porque esse é o sonho brasileiro. Ou você sonha com a democracia ou você tem a ilusão da democracia. A ilusão da democracia está entre nós. Desde 1930. Inclusive o golpe de 1964 foi dado em nome da democracia. Foi dado contra a possibilidade de um comunismo golpista que viria do outro lado. Tanto assim que, imediatamente, depois do golpe, uma parte importante da opinião que o apoiou ficou contra, pois não aceitava, não queria a ditadura. Uma das coisas gloriosas do Estadão a meu ver foi isso. (Carlos) Lacerda queria ser candidato a presidente. Estou me referindo a figuras que foram protagonistas de um golpe de Estado, contudo, queriam a democracia de alguma maneira. Juscelino (Kubitschek) votou pela eleição de Castelo (Branco). O Brasil é complicadíssimo. Eu, pessoalmente, acredito que nós teremos a democracia. Nós como Nação. Vamos ter de ser democratas. Somos parte da economia do mundo. Não era e ficou parte da economia da Suécia, da Alemanha, dos Estados Unidos, do Japão. Somos um grande mercado consumidor e produtor para o mundo. Nosso relacionamento é com o mundo, com a China. Esse País é importante. Participamos da economia mundial de diversas maneiras. E ele é muito diferenciado internamente. As nossas regiões têm definições culturais muito fortes. A Bahia está aí desde sempre. Minas, esses Estados todos. O espírito regional no País é forte, dai a necessidade do federalismo, do Senado. E o sistema de representação mais ou menos dá um certo equilíbrio ao jogo de poder dos Estados, o que tem prejudicado São Paulo, que é maior do que a Argentina. Ou seja, é muito difícil um País com essas características, a essa altura, virar uma ditadura. Nós não somos uma república das bananas. Aqui tem muito mais do que bananas. É por isso que acredito e sonho com país plural e democrático no futuro, mas isso não é uma veleidade, mas uma chance real que o País tem.

Ao mesmo tempo, temos um predomínio do Executivo, que favorece o contato direto do líder com as massas...

Desde Pedro II, desde o Império. Nós temos uma tradição muito interessante na cabeça brasileira. Nós temos uma herança monárquica. Esse é o único País da América que teve tanto tempo de monarquia. Não quero dizer que temos uma vocação monárquica, mas mesmo no plebiscito sobre sistema de governo houve uma expressiva votação para a filia monarquista no espírito brasileiro. É uma parte da tradição: nós precisamos ter um líder central. Mas esse cara precisa ser controlado.

Ele não pode ser uma autoridade irresponsável como o imperador no sentido de não poder ser responsabilizado pelos atos?

Não pode. No sentido legal, no sentido em que se dava a essa palavra naquela época. Ele tem de ser responsável. Um Bolsonaro qualquer não pode querer ser um Pedro I. Ele pretende ser arbitrário como Pedro I. Ninguém pode no Brasil fazer isso. Getúlio não conseguiu. O sonho da democracia é o meu sonho e a minha ilusão, mas tem algo na realidade. Não é pura loucura da minha parte.

O sr. trata também da sobrevivência do corporativismo e a semi-representação no País. O sr. acha que eles são fundamentais para entender Bolsonaro?

No caso de Bolsonaro, o corporativismo existente é o corporativismo militar. Alguns dizem que ele é sindicalista militar. Ele é um corporativista que está no Estado, servindo a uma burocracia de Estado. Neste espírito genérico, o corporativismo tem uma variedade de formas e estilos extraordinários. Até as igrejas são corporativistas; lutam o tempo todo pela condições institucionais de propagação de sua fé. Somos também muito diferenciados por corporações.

Em que sentido?

No sentido que temos corporação da soja, da carne, a turma do agro. Essas corporações se manifestam dentro do Congresso, como se fossem bancadas. Uma das dificuldades de se fazer partido no Brasil é que o partido político exige uma fidelidade mais geral do que a corporação.

Essa falta efetiva de representação nos partidos leva a um déficit de legitimidade na política. O sr. acredita que, por isso, as forças políticas veem seus oponentes como uma ameaça à democracia. Em que medida essa falta de legitimidade ajuda o discurso do medo justificar a violência e o autoritarismo na política?

O Brasil é muito corporativo, mas ele quer ser Brasil. A única coisa que pode prevalecer sobre isso é a democracia. Os Estados Unidos também são extremamente corporativos. A diferença é que eles são democráticos.

O sr. acha que apesar de tudo, esse espírito nacional pode dar consistência à nossa casa comum?

Eu acho. Esse espírito nacional e o povo. Todo esse corporativismo vem desde a Idade Média; é muito antigo. De qualquer modo, mesmo no grande passado, ele defendia os mais pobres. A diferença entre o rico e o pobre, a participação do rico e do pobre têm de se resolver de algum jeito. E quem resolve isso é a democracia.

Quando se fala em medo, pensamos nos afetos, de como medo, o ressentimento e outros sentimentos são mobilizados pelas forças políticas. O sr. acha que estamos vivendo um momento em que os afetos assumiram uma importância maior que tiveram no passado? Estaríamos vivendo um momento mais agudo, percebidos pela pessoas como a polarização na política?

A meu ver o período da Guerra Fria foi muito mais pesado. Vivíamos sob a ameaça da guerra atômica. Em um determinado momento, a oposição entre a União Soviética e os Estados Unidos era terrível, e nós pagamos um preço por isso, inclusive em nossa política interna, com o comunismo e o anticomunismo. Era medo de lá e de cá. Um tinha medo do outro. Esse período foi muito ruim, pois nasce de outra fase de medo terrível, que foi a 2.ª Grande Guerra, algo surpreendente para todos, com a bomba atômica e, sobretudo, o morticínio e o holocausto. O nível de brutalidade a que se chegou a na 2.ª Grande Guerra nos deixou com 50 anos de medo para frente. Ou seja. O que fomos nós, os homens, capazes de fazer na 2.ª Grande Guerra nos permite fazer qualquer coisa. Esse é que é o medo. O medo vem de perder o controle e, por isso, de novo é a democracia que tem de controlar. O que você não consegue dizer em público, não faça, pois certamente você vai provocar o medo ou a indignação do outro. Então, não faça. Não se pode afrontar o senso comum e a consciência comum de maneira brutal. Nós herdamos das grandes guerras o medo daquilo que nós somos capazes de fazer. E isso passa como herança. Mas não a briga Bolsonaro e Lula. Essa polarização nós já a tivemos na política brasileira em nível regional, com uma ferocidade incrível. Em São Paulo, a oposição Jânio e Adhemar ou em plano nacional a oposição Getúlio e UDN. Não creio que essa ferocidade seja maior hoje. O que há é que nós temos de nós organizar de algum jeito para termos controle sobre nós mesmos.

Daí a necessidade da defesa das instituições democráticas?

Defesa intransigente. A UDN tinha uma frase que repetia muito: ‘O preço de liberdade é a terna vigilância’. Essa frase é uma frase da tradição democrática americana e é verdade. Toda democracia é frágil. É só dormir. Outros moralistas políticos têm tratado disso. O problema não é quem faz o mal, mas a preguiça de quem faz o bem e não se mexe.

O sr. está se referindo ao La Boétie?

A (obra Discurso da) Servidão Voluntária, do Étienne de La Boétie. São coisas antigas que estão na cultura humana que já foram teorizadas suficientemente. No Brasil, nós somos extremamente ignorantes. O Brasil não é especialmente brutal, mas é especialmente ignorante. Ou seja, estamos caminhando, estamos melhorando, mas somos atrasados mais do que alguns outros países, inclusive latino-americanos, sem comparar com a Argentina, pois a brutalidade do regime militar da Argentina, a tradição brasileira é suficiente doce para impedir. Não chegamos àquele nível.

Há uma tradição que impediu que chegássemos à opção pelo massacre no regime militar?

Não levou ao extremo de outros lugares.

Mas esses extremos criaram as condições para que a repetição histórica do autoritarismo militar seja superado nesses países pela memória coletiva criada, a exemplo do que se passou na Alemanha. No Brasil, por não termos chegados a esses extremos, a perspectiva autoritária ainda estaria presente?

A nossa tradição autoritária é forte, mas nós não chegamos nem ao Chile nem à Argentina. O Chile tem uma tradição democrática maior do que a nossa, mas chegaram muito mais longe no regime militar. A nossa tradição não é apenas política, é uma tradição do mundo rural, da cidade pequena, das famílias extensas; há um tradicionalismo nosso que nos defende do tradicionalismo mais brutal, porque não o admite. Mesmo no regime militar que tivemos houve tentativas militares de copiar o Chile e a Argentina que foram recusadas no meio militar por causa do tradicionalismo nosso. Nós não fazemos isso. Não sei se você conhece uma frase atribuída a Caxias, que é muito nossa. A Guerra do Paraguai foi muito terrível e houve um momento em que Caxias se desentendeu com o imperador na linha de estratégia do Brasil. Ele foi substituído pelo Conde d’Eu. Caxias não achava fundamental caçar o ditador do Paraguai (Solano López) e, como achava que a guerra já estava vencida, disse: ‘Agora estamos guerreando com criança e eu não estou aqui para fazer guerra a meninos’. É um tipo de coisa que escapa a qualquer noção de disciplina; é uma noção moral. Eu não brigo com criança. Esse é um tipo de critério moral que está na nossa tradição. É da tradição familística, das grandes famílias no Brasil. A responsabilidade começa a partir de um certo ponto da vida. Garoto não tem responsabilidade, garoto é garoto. Esse paradigma moral, que é um paradigma de tipo tradicional, tem raízes profundas na tradição brasileira. Além de um certo ponto não se vai. Não se aguenta a violência além de um certo ponto; ela é insuportável moralmente. Isso é tradicional. Países de grande tradição democrática não permitem que um militar obedeça a uma ordem fora da lei, mas, como o Brasil não tem essa grande tradição, o que nós temos é outra, que leva à mesma coisa. A alternativa é a democracia; traduzir esses princípios para a democracia.

O sr. acredita que as condições para a superação da crise aberta pela eleição de Jair Bolsonaro existem dentro da sociedade?

Sim. Não dá pra fazer qualquer coisa no Brasil. O Brasil tem razões econômicas, estruturais e históricas e inclusive culturais. Nós não vamos além de um certo ponto. Não admitimos certas coisas. Os militares não permitiram no Brasil a Operação Condor. Não é porque são bonzinhos, mas porque eles são brasileiros.

Como a democratização por via autoritária se manifesta em nosso dias e, particularmente, no governo de Jair Bolsonaro?

Essa ideia da democratização por via autoritária é uma noção para cobrir todo o processo que vem dos anos 1930 para cá. Meu entendimento é que Jair Bolsonaro é um subcapítulo desse processo. Ele repete, provavelmente sem saber, os procedimentos já adotados pelo Getúlio (Vargas) em 1930. Não vejo Bolsonaro como agente da democratização, ele fala que é democrata e que a democracia está ameaçada, mas não o comparo a nenhum dos líderes autoritários democráticos que já tivemos.

Cientista político Francisco Weffort. Foto: Tiago Queiroz/Estadão - 02/07/2019

O sr. quer dizer que a democracia para Bolsonaro teria um caráter meramente instrumental?

Eu creio que sim: instrumental e propagandístico, porque efetivamente ele fala de uma democracia que a gente não vê acontecer. A única medida que mais ou menos assemelha o governo Bolsonaro à essa tradição brasileira é o auxílio emergencial, algo típico da democracia autoritária. Claro que o Estado deve dar o auxílio, mas isso é um gesto democrático que vem de fonte autoritária.

O sr. trabalha a ideia de que a democratização por via autoritária torna difuso o conceito de que a política se realiza à parte da sociedade. E também dá como herança outra ideia, a de que a vontade do líder vale mais do que o respeito às leis, de que a política só se efetiva quando autoritária...

A política só se efetiva quando ela fala, se expressa pelo líder, pelo chefe, pelo comandante. Essa é a ideia básica. O Bolsonaro acredita que deve opinar sobre tudo como se pudesse entender de tudo. Estamos em uma pandemia e ele agora decide da cabeça dele que não é necessário usar máscara para quem já foi vacinado. Ou seja, não obedece às regras habituais de um sistema democrático. Nesse sentido é autoritário.

O sr. também descreve no livro surgimento de dissidências oligárquicas. Bolsonaro não é um dissidente. Como ele se situa dentro dessa tradição?

Ele é um caso à parte. Nesse sentido ele é um ponto fora da curva. Ele é ex-membro de uma organização de Estado. As dissidências oligárquicas têm relação com os chefes políticos regionais, da tradição oligárquica brasileiro. Ele é um ex-oficial que fala como ex-oficial.

Ele se insere dentro da tradição de uma parte da burocracia estatal, o Exército, de intervir na vida política da República?

Eu diria que ele quer relembrar tradição. Ele quer convocar essa tradição a favor dele, mas é muito diferente, como significado político, de toda essa tradição, pois ela é a tradição do tenentismo. É a que vem de antes do fim do Império, muito antiga, que fala dentro do Exército. Ele é excluído do Exército e fala da memória de ter sido. Ele não é bem esse personagem, mas quer lembrar essa tradição em nome dele. Então diz: ‘O meu Exército’.

Tenta reeditar a ideia de uma reforma institucional que passe pela moralização da política?

Exatamente. Isso sim. Se você lembrar bem, a Revolução de 1930 foi uma revolução em nome da moralidade pública, um grande movimento de opinião pública que passou pelas Forças Armadas e entrou na tradição militar. É verdadeiramente da tradição brasileira. É curioso, mas a Revolução de 1930 é uma luta pela democracia, pois a democracia que tínhamos era restrita, era oligárquica. Fica na tradição a lembrança da democracia vencendo. É parte do discurso oficial brasileiro, parte do sonho brasileiro – digamos assim –; o fantasma brasileiro, da ilusão brasileira da democracia. E parte das tradições de origem militar.

O sr. descreve ainda o impacto do comparecimento às urnas e as ilusões com o voto obrigatório no processo político brasileiro. O comparecimento às eleições serve de limite à tendência autoritária na democratização do País?

O lado democrático disso é que Getúlio e Jânio (Quadros) ganharam eleições. O próprio Bolsonaro fala de eleições e fraude em eleição. É uma disputa em torno de eleição. Tanto assim, que ele quer mudar o sistema de voto atual, um dos mais completos e modernos do mundo. Ou seja, é em torno desses mesmos valores que estão lá atrás na história que ele fala. Aumentar o eleitorado e abrir para as eleições é uma virtude democrática nessa tradição brasileira, afrouxando limites de idade e permitindo o voto aos analfabetos. A ideia é de que todos participem da democracia por meio do voto, o que é um limite ao autoritarismo, mas ao mesmo tempo foi promovido pelo autoritarismo.

O que de novo Bolsonaro traz para o populismo de direita em relação ao passado?

Não vejo muitas novidades no Bolsonaro. Ele repete a retórica. Há, no entanto uma diferença, que é a retórica privatista, o que é mais parecido com o Jânio. Mas todos os outros (Getúlio e Adhemar) eram mais estatistas. Nisso o Bolsonaro não é muito parecido com o passado. Ele fala em privatismo, mas não sei se vai privatizar. Outra diferença importante é a política exterior. Nela, ele é de direita. O Jânio, que tinha muita semelhança com Bolsonaro, não mexe na política externa brasileira e estimula um certo pluralismo; falava com (Gamal) Nasser, com (Jawaharlal) Nehru. A tradição brasileira é mais à esquerda na política internacional, com exceção do período de confronto com o comunismo.

O sr. diz no seu texto que ainda seremos uma democracia plena. Qual a razão desse otimismo?

(Risos) Em toda previsão há um tanto de vontade do futuro, de wishful thinking. É claro que eu identifico com a ideia de um Brasil democrático no futuro. Eu acho que o Brasil tem se democratizado. Esse é o ponto. De 1930 para cá, e talvez nem mesmo apenas a partir de 1930, mas antes inclusive, apesar de todos os vaivéns, o País se democratizou muito.

O sr. acha que esse processo não se interrompe?

Não. Nesse momento, nós estamos em um lusco-fusco. Pode haver uma tentativa de interrupção agora, mas eu não acredito que ela se firme, porque esse é o sonho brasileiro. Ou você sonha com a democracia ou você tem a ilusão da democracia. A ilusão da democracia está entre nós. Desde 1930. Inclusive o golpe de 1964 foi dado em nome da democracia. Foi dado contra a possibilidade de um comunismo golpista que viria do outro lado. Tanto assim que, imediatamente, depois do golpe, uma parte importante da opinião que o apoiou ficou contra, pois não aceitava, não queria a ditadura. Uma das coisas gloriosas do Estadão a meu ver foi isso. (Carlos) Lacerda queria ser candidato a presidente. Estou me referindo a figuras que foram protagonistas de um golpe de Estado, contudo, queriam a democracia de alguma maneira. Juscelino (Kubitschek) votou pela eleição de Castelo (Branco). O Brasil é complicadíssimo. Eu, pessoalmente, acredito que nós teremos a democracia. Nós como Nação. Vamos ter de ser democratas. Somos parte da economia do mundo. Não era e ficou parte da economia da Suécia, da Alemanha, dos Estados Unidos, do Japão. Somos um grande mercado consumidor e produtor para o mundo. Nosso relacionamento é com o mundo, com a China. Esse País é importante. Participamos da economia mundial de diversas maneiras. E ele é muito diferenciado internamente. As nossas regiões têm definições culturais muito fortes. A Bahia está aí desde sempre. Minas, esses Estados todos. O espírito regional no País é forte, dai a necessidade do federalismo, do Senado. E o sistema de representação mais ou menos dá um certo equilíbrio ao jogo de poder dos Estados, o que tem prejudicado São Paulo, que é maior do que a Argentina. Ou seja, é muito difícil um País com essas características, a essa altura, virar uma ditadura. Nós não somos uma república das bananas. Aqui tem muito mais do que bananas. É por isso que acredito e sonho com país plural e democrático no futuro, mas isso não é uma veleidade, mas uma chance real que o País tem.

Ao mesmo tempo, temos um predomínio do Executivo, que favorece o contato direto do líder com as massas...

Desde Pedro II, desde o Império. Nós temos uma tradição muito interessante na cabeça brasileira. Nós temos uma herança monárquica. Esse é o único País da América que teve tanto tempo de monarquia. Não quero dizer que temos uma vocação monárquica, mas mesmo no plebiscito sobre sistema de governo houve uma expressiva votação para a filia monarquista no espírito brasileiro. É uma parte da tradição: nós precisamos ter um líder central. Mas esse cara precisa ser controlado.

Ele não pode ser uma autoridade irresponsável como o imperador no sentido de não poder ser responsabilizado pelos atos?

Não pode. No sentido legal, no sentido em que se dava a essa palavra naquela época. Ele tem de ser responsável. Um Bolsonaro qualquer não pode querer ser um Pedro I. Ele pretende ser arbitrário como Pedro I. Ninguém pode no Brasil fazer isso. Getúlio não conseguiu. O sonho da democracia é o meu sonho e a minha ilusão, mas tem algo na realidade. Não é pura loucura da minha parte.

O sr. trata também da sobrevivência do corporativismo e a semi-representação no País. O sr. acha que eles são fundamentais para entender Bolsonaro?

No caso de Bolsonaro, o corporativismo existente é o corporativismo militar. Alguns dizem que ele é sindicalista militar. Ele é um corporativista que está no Estado, servindo a uma burocracia de Estado. Neste espírito genérico, o corporativismo tem uma variedade de formas e estilos extraordinários. Até as igrejas são corporativistas; lutam o tempo todo pela condições institucionais de propagação de sua fé. Somos também muito diferenciados por corporações.

Em que sentido?

No sentido que temos corporação da soja, da carne, a turma do agro. Essas corporações se manifestam dentro do Congresso, como se fossem bancadas. Uma das dificuldades de se fazer partido no Brasil é que o partido político exige uma fidelidade mais geral do que a corporação.

Essa falta efetiva de representação nos partidos leva a um déficit de legitimidade na política. O sr. acredita que, por isso, as forças políticas veem seus oponentes como uma ameaça à democracia. Em que medida essa falta de legitimidade ajuda o discurso do medo justificar a violência e o autoritarismo na política?

O Brasil é muito corporativo, mas ele quer ser Brasil. A única coisa que pode prevalecer sobre isso é a democracia. Os Estados Unidos também são extremamente corporativos. A diferença é que eles são democráticos.

O sr. acha que apesar de tudo, esse espírito nacional pode dar consistência à nossa casa comum?

Eu acho. Esse espírito nacional e o povo. Todo esse corporativismo vem desde a Idade Média; é muito antigo. De qualquer modo, mesmo no grande passado, ele defendia os mais pobres. A diferença entre o rico e o pobre, a participação do rico e do pobre têm de se resolver de algum jeito. E quem resolve isso é a democracia.

Quando se fala em medo, pensamos nos afetos, de como medo, o ressentimento e outros sentimentos são mobilizados pelas forças políticas. O sr. acha que estamos vivendo um momento em que os afetos assumiram uma importância maior que tiveram no passado? Estaríamos vivendo um momento mais agudo, percebidos pela pessoas como a polarização na política?

A meu ver o período da Guerra Fria foi muito mais pesado. Vivíamos sob a ameaça da guerra atômica. Em um determinado momento, a oposição entre a União Soviética e os Estados Unidos era terrível, e nós pagamos um preço por isso, inclusive em nossa política interna, com o comunismo e o anticomunismo. Era medo de lá e de cá. Um tinha medo do outro. Esse período foi muito ruim, pois nasce de outra fase de medo terrível, que foi a 2.ª Grande Guerra, algo surpreendente para todos, com a bomba atômica e, sobretudo, o morticínio e o holocausto. O nível de brutalidade a que se chegou a na 2.ª Grande Guerra nos deixou com 50 anos de medo para frente. Ou seja. O que fomos nós, os homens, capazes de fazer na 2.ª Grande Guerra nos permite fazer qualquer coisa. Esse é que é o medo. O medo vem de perder o controle e, por isso, de novo é a democracia que tem de controlar. O que você não consegue dizer em público, não faça, pois certamente você vai provocar o medo ou a indignação do outro. Então, não faça. Não se pode afrontar o senso comum e a consciência comum de maneira brutal. Nós herdamos das grandes guerras o medo daquilo que nós somos capazes de fazer. E isso passa como herança. Mas não a briga Bolsonaro e Lula. Essa polarização nós já a tivemos na política brasileira em nível regional, com uma ferocidade incrível. Em São Paulo, a oposição Jânio e Adhemar ou em plano nacional a oposição Getúlio e UDN. Não creio que essa ferocidade seja maior hoje. O que há é que nós temos de nós organizar de algum jeito para termos controle sobre nós mesmos.

Daí a necessidade da defesa das instituições democráticas?

Defesa intransigente. A UDN tinha uma frase que repetia muito: ‘O preço de liberdade é a terna vigilância’. Essa frase é uma frase da tradição democrática americana e é verdade. Toda democracia é frágil. É só dormir. Outros moralistas políticos têm tratado disso. O problema não é quem faz o mal, mas a preguiça de quem faz o bem e não se mexe.

O sr. está se referindo ao La Boétie?

A (obra Discurso da) Servidão Voluntária, do Étienne de La Boétie. São coisas antigas que estão na cultura humana que já foram teorizadas suficientemente. No Brasil, nós somos extremamente ignorantes. O Brasil não é especialmente brutal, mas é especialmente ignorante. Ou seja, estamos caminhando, estamos melhorando, mas somos atrasados mais do que alguns outros países, inclusive latino-americanos, sem comparar com a Argentina, pois a brutalidade do regime militar da Argentina, a tradição brasileira é suficiente doce para impedir. Não chegamos àquele nível.

Há uma tradição que impediu que chegássemos à opção pelo massacre no regime militar?

Não levou ao extremo de outros lugares.

Mas esses extremos criaram as condições para que a repetição histórica do autoritarismo militar seja superado nesses países pela memória coletiva criada, a exemplo do que se passou na Alemanha. No Brasil, por não termos chegados a esses extremos, a perspectiva autoritária ainda estaria presente?

A nossa tradição autoritária é forte, mas nós não chegamos nem ao Chile nem à Argentina. O Chile tem uma tradição democrática maior do que a nossa, mas chegaram muito mais longe no regime militar. A nossa tradição não é apenas política, é uma tradição do mundo rural, da cidade pequena, das famílias extensas; há um tradicionalismo nosso que nos defende do tradicionalismo mais brutal, porque não o admite. Mesmo no regime militar que tivemos houve tentativas militares de copiar o Chile e a Argentina que foram recusadas no meio militar por causa do tradicionalismo nosso. Nós não fazemos isso. Não sei se você conhece uma frase atribuída a Caxias, que é muito nossa. A Guerra do Paraguai foi muito terrível e houve um momento em que Caxias se desentendeu com o imperador na linha de estratégia do Brasil. Ele foi substituído pelo Conde d’Eu. Caxias não achava fundamental caçar o ditador do Paraguai (Solano López) e, como achava que a guerra já estava vencida, disse: ‘Agora estamos guerreando com criança e eu não estou aqui para fazer guerra a meninos’. É um tipo de coisa que escapa a qualquer noção de disciplina; é uma noção moral. Eu não brigo com criança. Esse é um tipo de critério moral que está na nossa tradição. É da tradição familística, das grandes famílias no Brasil. A responsabilidade começa a partir de um certo ponto da vida. Garoto não tem responsabilidade, garoto é garoto. Esse paradigma moral, que é um paradigma de tipo tradicional, tem raízes profundas na tradição brasileira. Além de um certo ponto não se vai. Não se aguenta a violência além de um certo ponto; ela é insuportável moralmente. Isso é tradicional. Países de grande tradição democrática não permitem que um militar obedeça a uma ordem fora da lei, mas, como o Brasil não tem essa grande tradição, o que nós temos é outra, que leva à mesma coisa. A alternativa é a democracia; traduzir esses princípios para a democracia.

O sr. acredita que as condições para a superação da crise aberta pela eleição de Jair Bolsonaro existem dentro da sociedade?

Sim. Não dá pra fazer qualquer coisa no Brasil. O Brasil tem razões econômicas, estruturais e históricas e inclusive culturais. Nós não vamos além de um certo ponto. Não admitimos certas coisas. Os militares não permitiram no Brasil a Operação Condor. Não é porque são bonzinhos, mas porque eles são brasileiros.

Atualizamos nossa política de cookies

Ao utilizar nossos serviços, você aceita a política de monitoramento de cookies.