WhatsApp da cúpula da segurança de Brasília revela omissão e ‘apagão’ decisório no 8 de Janeiro


Conversas em grupo de mensagens mostram que autoridades sabiam do objetivo de ‘tomada do poder’, mas não tomaram medidas compatíveis com as ameaças; em depoimentos, policiais transferem responsabilidades e falam em falhas no planejamento e na execução do planejado

Por Vinícius Valfré, Julia Affonso e Daniel Weterman
Atualização:

BRASÍLIA - No grupo de WhatsApp dos chefes e diretores das forças de segurança do Distrito Federal, os sinais de que o pior aconteceria estavam postos desde as vésperas do 8 de Janeiro: o evento era batizado de “tomada pelo povo” e manifestantes vinham a Brasília munidos de pés de cabra, paus, estilingues e “possivelmente armados” – entre eles, uma mulher que fazia “apologia ao assassinato do presidente” Luiz Inácio Lula da Silva (PT). A cúpula do governo distrital, incluindo servidores da confiança do então secretário de segurança do DF, Anderson Torres, sabia que a intenção dos extremistas era chegar à Esplanada para a “tomada do poder”.

Apesar das evidências que fariam manifestações de outras naturezas serem prontamente reprimidas, as autoridades do DF não tomaram nenhuma medida compatível com a tentativa de golpe de Estado que se desenhava. Em vez disso, permitiram a escolta de uma multidão até o Congresso. As trocas de mensagens no grupo de WhatsApp “Perímetros segurança” revelam uma série de omissões, avaliações equivocadas sobre riscos e um “apagão” decisório quando a destruição começou. O Estadão teve acesso à íntegra das conversas.

Quando questionados sobre o papel que desempenharam no episódio, os principais líderes do grupo transferem responsabilidades uns aos outros, mas admitem falhas no planejamento ou na execução do plano traçado na antevéspera. Um inquérito no Supremo Tribunal Federal (STF) apura a responsabilidade de membros das forças de segurança de Brasília e também de integrantes das Forças Armadas.

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Imagem de drone feita por volta das 15 horas do dia 8 de janeiro de 2023 mostra grupo de manifestantes extremistas tomando o controle do prédio do Congresso Nacional Foto: Reprodução/Polícia Militar

Havia outros grupos de conversas com integrantes de forças de segurança. Mas em uma reunião no dia 6, realizada no Centro Integrado de Operações de Brasília (Ciob), ficou decidido que o “Perímetros” serviria para troca de informações necessárias tanto para ações de “monitoramento” de manifestantes quanto para “acionamento” de equipes. A decisão de priorizar o grupo foi comunicada ainda na manhã daquele dia pela coronel Cíntia de Castro, subsecretária de Operações Integradas da Secretaria de Segurança Pública do DF (SSP-DF).

Além dela, também estavam no grupo o delegado Fernando de Sousa Oliveira, secretário-executivo da SSP-DF, número 2 da pasta, e a delegada Marília Alencar, chefe da seção de Inteligência da secretaria. O trio era subordinado ao então secretário Anderson Torres. O chefe da pasta viajou aos Estados Unidos ainda no dia 6, apesar dos alertas sobre a possibilidade de tumulto na capital.

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Dentre os integrantes estavam ainda o comandante da PM, coronel Fábio Augusto Vieira, o comandante do policiamento de trânsito, coronel Edvã de Oliveira Sousa, e o comandante do 1º Comando de Policiamento Regional (CPR), coronel Marcelo Casimiro Rodrigues, responsável pela ação de policiamento na região central de Brasília e por tratar de tamanho e de distribuição do efetivo na área.

Policiais militares comprar água de coco enquanto manifestantes invadem Congresso, STF e Planalto Foto: Weslley Galzo
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Ao todo eram 31 pessoas. Havia também outros representantes da SSP-DF, das polícias Militar e Civil, do Corpo de Bombeiros, do Detran, do Departamento de Estradas de Rodagem (DER-DF), da Polícia Rodoviária Federal, do Senado, do Supremo Tribunal Federal e do Itamaraty.

Ainda no dia 6, uma sexta-feira, às 17h, a coronel Cíntia enviou a informação de que o sistema da Agência Nacional de Transportes Terrestres (ANTT) havia identificado 1622 passageiros em 43 ônibus fretados com chegada a Brasília prevista para o fim de semana. O coronel Casemiro e o secretário-executivo respondem com emojis, 👀 e 👍, respectivamente.

7 de janeiro: oficiais relatam ‘animosidade alta’ e ‘pé de cabra’

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No sábado, dia 7, as informações indicaram o recrudescimento das ameaças. Logo às 2h01, um servidor identificado como capitão Júnior, do serviço de Inteligência do 1º CPR, relatou a chegada de ônibus ao acampamento de apoiadores do ex-presidente Jair Bolsonaro (PL) montado em frente ao Quartel General do Exército. Até o fim do dia, ele informaria placas de 84 coletivos desembarcando manifestantes.

Concentração de manifestantes extremistas no acampamento em frente ao QG do Exército, em Brasília, por volta das 18 horas do dia 7 de janeiro de 2023 Foto: Reprodução/Polícia Militar

Às 8h11, Marília relatou a partida, de Goiânia, de um grupo ligado a uma manifestante que já era monitorada pelos serviços de inteligência por conta do perfil agressivo e da “apologia ao assassinato do PR [Presidente da República]”. “Quésia não embarcou. Ficou só na organização, mas pode ser que venha depois, até de carro, dada a proximidade Goiânia-Brasília. Estão trazendo ao menos 4 pés de cabra”.

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Às 10h02, a coronel Cíntia, subsecretária, voltou a mencionar a radical. “Quésia é conhecida por manifestações extremistas, com apologia ao assassinato do PR. Há informe que o grupo tem intenção de atos violentos e estariam transportando vários pés de cabra. Presumem-se armados. Entre os dois ônibus organizados por Quésia, há aproximadamente 70 manifestantes. Esse grupo pediu que pessoas com mobilidade reduzida e idosos não se voluntariassem”, enviou.

“Há informe que o grupo tem intenção de atos violentos e estariam transportando vários pés de cabra. Presumem-se armados”

Coronel Cíntia de Castro, subsecretária de Operações Integradas da SSP-DF, em mensagem no WhatsApp

Não houve nova menção à manifestante, nem registros da presença dela durante os ataques. Ela também não apareceu na lista de pessoas presas. Às 13h10, o coronel Casimiro pediu acesso à estrutura do Ministério das Relações Exteriores (MRE) e do STF. “Solicito a gentileza do MRE e STF conforme acordado em reunião na SSP que disponibilize os gradis de ferro. A PMDF colocou as barreiras de trânsito, mas não são adequadas para segurar o público”.

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No decorrer da tarde, surgiram relatos de tensão com manifestantes. O Exército fechou a Avenida Duque de Caxias, um dos acessos ao acampamento, e o humor dos extremistas mudou, conforme o capitão Junior registrou às 14h23.

“O cara do carro está inflando o pessoal. Tá vindo gente do QG pra cá tbm. Tá ficando quente aqui. Geral com gritos de ‘vamos fechar tudo’. Animosidade alta”, enviou.

Pouco depois, às 15h21, ele enviou a informação de que o bloqueio do Exército não foi capaz de conter os extremistas: “Manifestantes gritam palavras de ordem e incitam motoristas a furarem o bloqueio feito pela PE (Polícia do Exército) (...) Manifestantes desfizeram o bloqueio físico realizado pela PE”.

Naquela mesma tarde, uma reunião da cúpula da Polícia Federal com o secretário Fernando Oliveira e a subsecretária Cíntia expôs a “divergência” na percepção sobre os preparativos. Segundo um relatório da PF sobre o encontro, o diretor-geral, Andrei Rodrigues, entendia que “a movimentação seria por si só um ato criminoso, pois atentaria contra o Estado Democrático de Direito”. Por outro lado, os representantes da equipe de Anderson Torres “manifestaram um entendimento diverso, alegando que se trataria de uma simples manifestação de cunho pacífico”.

Após a reunião com a PF não houve mudança na interação do grupo, e as horas seguintes do dia 7 foram de pressão de manifestantes para estacionar em áreas proibidas e para desfazer bloqueios que impediam a chegada de mais pessoas ao acampamento. Apesar da facilidade para remoção do bloqueio do Exército, os servidores se convenceram da “tranquilidade” da movimentação.

Sem que os planos dos acampados tenham sido frustrados pelos militares, extremistas interpretaram o cenário como um aval do Exército à organização. Às 18h05 do dia 7, a coronel Cíntia compartilhou com o grupo o vídeo de um manifestante que afirmava ter o apoio do quartel e que o objetivo era tomar a Esplanada.

“Vai sair todo mundo para ir para a Esplanada. Vamos fazer isso hoje, não sei que horas. E amanhã, domingo, e segunda-feira também. O Exército está do lado do povo, cuida, está ajudando. Se estivesse contra, não estaria deixando a gente armar barraca. Tem comida, tem banheiro, tem de tudo aqui”, dizia o manifestante.

A subsecretária fez um comentário sucinto sobre a motivação do radical. “Falando de descer hoje à noite a Esplanada! Vamos ficar atentos, senhores”, disse a coronel, sem receber respostas dos demais integrantes do grupo.

Às 18h43, o Departamento de Estradas de Rodagem do Distrito Federal (DER-DF) foi acionado para dar apoio à fiscalização de estacionamento irregular nas proximidades do Setor Militar Urbano. Exatamente uma hora depois, o representante do órgão, Rodrigo Cavalcante, pede reforço.

“Pessoal do DER está dizendo que ficou inseguro para eles lá. Se alguma equipe da PM puder dar apoio seria bom”, escreveu às 19h43. Em seguida, Cavalcante relata que a equipe do DER recuou depois de ser atacada com pedras e xingamentos.

Na mesma noite, chegaram relatos de tensão em outra região de Brasília. Um grupo de “diversos indivíduos” tentou chegar à Praça dos Três Poderes por um espaço entre o estacionamento do Palácio do Planalto e um prédio do Senado. Eles foram barrados pela Polícia Legislativa.

“Verificou-se ainda comportamento anômalo de alguns indivíduos, os quais aparentavam estar fazendo um reconhecimento do local”, escreveu às 19h46 do dia 7 o coronel Jorge Henrique Pinto, do setor de Inteligência da SSP-DF. Os relatos de tensão não eram seguidos por pedidos de providência ou de novas decisões sobre o planejamento.

Às 23h17, o secretário-executivo Fernando Oliveira escreveu pela primeira vez: “Senhores/as, qual a última parcial das ruas? Tudo dentro da normalidade, do esperado?”. O chefe do 1º CPR, Marcelo Casemiro, respondeu que não havia problemas e que a tropa estava atenta. “Tudo normal. Sem problemas. Estamos atentos nas ruas, PMDF em condições. Todos bem orientados”, disse.

Antes da meia-noite, um outro relatório da Inteligência. A informação era a de que uma parte dos acampados queria descer em direção à Esplanada ainda na noite do dia 7, mas que a decisão ficou para o dia seguinte.

8 de janeiro: os relatos e as reações das forças de segurança no dia “D”

Desde o começo da manhã de 8 de janeiro, os integrantes do grupo de WhatsApp receberam relatos sobre a intenção de apoiadores de Bolsonaro de partir para ações extremas a qualquer momento. Às 8h50, o coronel Jorge Henrique Pinto, do setor de Inteligência da SSP-DF, avisou ao grupo que os radicais falavam em caminhar para a Esplanada “logo após o almoço com suas mochilas”.

“Alguns incrementam os discursos dizendo que não devem mais jogar nas ‘quatro’ linhas da CF (Constituição Federal)”, relatou o policial.

A expressão “quatro linhas da Constituição” era rotineiramente usada por Bolsonaro durante o mandato. Como mostrou o Estadão, os extremistas reproduziram frases literais de Bolsonaro ao invadirem as sedes dos Três Poderes, seguindo um roteiro de ideias disseminadas pelo ex-presidente.

Com o passar das horas daquele 8 de janeiro, o grupo de conversas era avisado pela Inteligência da Secretaria de Segurança de que mais extremistas se dirigiam a Brasília. “Estão conclamando mais pessoas pelos grupos de Whatsapp”, avisou o capitão Júnior, da Inteligência do DF, às 10h16. “Acabaram de falar que vão esperar MUITAS caravanas que estão chegando e pediram pra ninguém descer individualmente.”

Às 12h36, o militar informou às forças policiais que “o público em toda a extensão da Praça dos Cristais”, em frente ao QG do Exército, “está entre 5.000 e 5.500 pessoas”. “Alguns manifestantes demonstram animosidade e falam em tomada de poder”, relatou Júnior.

O relato das equipes na rua não era seguido por mudanças no planejamento ou por novas ordens que pudessem fazer frente à escalada da agressividade que era reportada para toda a cúpula da segurança. As autoridades tomavam ciência do acirramento dos ânimos e das pretensões dos radicais sem esboçar reação no grupo.

A previsão das forças de segurança era a de que os manifestantes se reunissem em frente a um carro de som no acampamento às 13h para decidir o horário da partida em direção à Praça dos Três Poderes.

Entretanto, não houve uma deliberação. Às 13h08, o capitão Junior escreveu em caixa alta no grupo do WhatsApp: “NÃO AGUARDARAM A REUNIÃO. Estão descendo para a Esplanada em massa”.

Apesar dos relatos de animosidade e da partida antecipada, o secretário Fernando Oliveira enviou uma gravação de áudio ao governador do DF, Ibaneis Rocha (MDB), dizendo que “não há nenhum informe de questão de agressividade” e que estava tudo “bem tranquilo, bem ameno, uma movimentação bem suave e manifestação bem pacífica”.

Entre os manifestantes em deslocamento, porém, havia agressividade. Chefe do policiamento de trânsito, coronel Edvã avisou no grupo de WhatsApp que “cerca de 10 pessoas que se identificaram como militares ou reservistas” falavam em “traçar táticas e estratégias de combate, com discurso violento”. “A liderança se identificou como PE [Polícia do Exército] de Ponta Grossa/PR. Mostrou um estilingue e um bambu para ser usado contra as forças de segurança”, escreveu o coronel às 13h24.

Apesar das motivações golpistas e dos materiais encontrados com alguns manifestantes, o grupo foi escoltado pela polícia de trânsito até a Esplanada. Em um relatório do dia 11, o coronel Edvã afirmou que atuou para estabelecer “condições para o deslocamento, garantindo a segurança dos participantes”.

Após os relatos de deslocamento, o representante da Segurança do Senado, Gabriel Dias, questionou os outros integrantes das forças, no grupo: “Está havendo revista na barreira?” As autoridades continuaram a encaminhar relatos sobre a atuação dos radicais, sem enviar uma resposta imediata a ele.

“Ripas com pregos, altura do primeiro ministério norte, logo após a linha de revista”, afirmou o capitão Júnior às 14h12. “Há pessoas portanto fogos de artifício em mochilas.”

Às 14h19, Jorge Henrique Pinto avisa. “Garrafa cheia de pedras sob o casaco”, escreve. “Ficar atentos.”

A chegada à Esplanada, a invasão dos apoiadores de Bolsonaro aos prédios dos Três Poderes e a depredação do patrimônio público foram narradas em tempo real pelas forças de segurança no grupo de WhatsApp. O capitão Júnior, da Inteligência do DF, enviou 14 mensagens, entre 15h28 e 16h01, sobre o que estava ocorrendo na Esplanada dos Ministérios.

“Invadiram a (via) S1. Correndo em direção ao STF. Três pessoas aparentemente feridas próximo ao STF. Estão invadindo a área do STF pela retaguarda”, escreveu.

“Atualização: manifestantes quebraram os vidros e invadiram o Salão Branco do STF. Invasão do Supremo ocorrendo. Diversos manifestantes subindo. Muita gente descendo N1 e S1. Destruição no Planalto. Manifestantes vibrando com a invasão ao STF. Escreveram: Perdeu mané!. STF totalmente tomado. Depredação do prédio todo.”

Imagem aérea, feita por volta das 16h do dia 8 de janeiro de 2023, mostra grupo de manifestantes pró-Bolsonaro invadindo e destruindo o prédio do STF, em Brasília Foto: Reprodução/Polícia Militar

O Supremo foi “retomado”, segundo o capitão Júnior, às 16h51.Naquele momento, no Senado, o chefe da segurança avisou ao grupo no WhatsApp que “manifestantes tomaram o Salão Azul”, área que fica em frente ao gabinete do presidente da Casa e dá acesso ao plenário.

“Polícia do Senado satura ambiente, bombas de luz e som, mas insuficiente”, escreve às 16h50. “Continuam a invadir. Dificil contenção. Estão ganhando terreno no Senado. Destruíram câmeras de CFTV (Circuito Fechado de Televisão).”

A interação no grupo é encerrada com relatos sobre a volta de extremistas ao acampamento, com a última mensagem às 19h16.

O que disseram os envolvidos

Dos integrantes dos grupo de WhatsApp estão presos o major Flávio Alencar, subcomandante do 6º batalhão, e os coronéis Casimiro e Fábio Augusto.

Procurada para comentar a atuação dos integrantes das polícias no grupo do WhatsApp, a SSP-DF informou somente que “não comenta sobre investigações em andamento”. A PM não deu retornos.

A reportagem fez contato com advogados de Fernando e Cíntia, mas eles não deram retornos. O advogado do coronel Casimiro não foi localizado. Em depoimento à CPI do DF, o coronel afirmou que não era o comandante da operação de segurança do evento, não recebeu relatórios de inteligência e apenas delegou o comando.

Aos deputados, o delegado Fernando, secretário-executivo da SSP-DF, afirmou que houve erro da Polícia Militar ao executar o planejamento. “A PM deveria manter reforço de efetivo nas adjacências, nos prédios públicos, na rodoviária e em todo perímetro. Era para manter todo o reforço de efetivo. As ações acordadas na sexta-feira não foram cumpridas”, disse.

A coronel Cíntia, subsecretária da pasta, afirmou à CPI que não houve falha no planejamento, mas na execução dele por parte da PM. “Foi realizado (o planejamento) considerando o nível máximo de ameaça. Não houve falha no planejamento. Houve falha na execução”, afirmou.

BRASÍLIA - No grupo de WhatsApp dos chefes e diretores das forças de segurança do Distrito Federal, os sinais de que o pior aconteceria estavam postos desde as vésperas do 8 de Janeiro: o evento era batizado de “tomada pelo povo” e manifestantes vinham a Brasília munidos de pés de cabra, paus, estilingues e “possivelmente armados” – entre eles, uma mulher que fazia “apologia ao assassinato do presidente” Luiz Inácio Lula da Silva (PT). A cúpula do governo distrital, incluindo servidores da confiança do então secretário de segurança do DF, Anderson Torres, sabia que a intenção dos extremistas era chegar à Esplanada para a “tomada do poder”.

Apesar das evidências que fariam manifestações de outras naturezas serem prontamente reprimidas, as autoridades do DF não tomaram nenhuma medida compatível com a tentativa de golpe de Estado que se desenhava. Em vez disso, permitiram a escolta de uma multidão até o Congresso. As trocas de mensagens no grupo de WhatsApp “Perímetros segurança” revelam uma série de omissões, avaliações equivocadas sobre riscos e um “apagão” decisório quando a destruição começou. O Estadão teve acesso à íntegra das conversas.

Quando questionados sobre o papel que desempenharam no episódio, os principais líderes do grupo transferem responsabilidades uns aos outros, mas admitem falhas no planejamento ou na execução do plano traçado na antevéspera. Um inquérito no Supremo Tribunal Federal (STF) apura a responsabilidade de membros das forças de segurança de Brasília e também de integrantes das Forças Armadas.

Imagem de drone feita por volta das 15 horas do dia 8 de janeiro de 2023 mostra grupo de manifestantes extremistas tomando o controle do prédio do Congresso Nacional Foto: Reprodução/Polícia Militar

Havia outros grupos de conversas com integrantes de forças de segurança. Mas em uma reunião no dia 6, realizada no Centro Integrado de Operações de Brasília (Ciob), ficou decidido que o “Perímetros” serviria para troca de informações necessárias tanto para ações de “monitoramento” de manifestantes quanto para “acionamento” de equipes. A decisão de priorizar o grupo foi comunicada ainda na manhã daquele dia pela coronel Cíntia de Castro, subsecretária de Operações Integradas da Secretaria de Segurança Pública do DF (SSP-DF).

Além dela, também estavam no grupo o delegado Fernando de Sousa Oliveira, secretário-executivo da SSP-DF, número 2 da pasta, e a delegada Marília Alencar, chefe da seção de Inteligência da secretaria. O trio era subordinado ao então secretário Anderson Torres. O chefe da pasta viajou aos Estados Unidos ainda no dia 6, apesar dos alertas sobre a possibilidade de tumulto na capital.

Dentre os integrantes estavam ainda o comandante da PM, coronel Fábio Augusto Vieira, o comandante do policiamento de trânsito, coronel Edvã de Oliveira Sousa, e o comandante do 1º Comando de Policiamento Regional (CPR), coronel Marcelo Casimiro Rodrigues, responsável pela ação de policiamento na região central de Brasília e por tratar de tamanho e de distribuição do efetivo na área.

Policiais militares comprar água de coco enquanto manifestantes invadem Congresso, STF e Planalto Foto: Weslley Galzo

Ao todo eram 31 pessoas. Havia também outros representantes da SSP-DF, das polícias Militar e Civil, do Corpo de Bombeiros, do Detran, do Departamento de Estradas de Rodagem (DER-DF), da Polícia Rodoviária Federal, do Senado, do Supremo Tribunal Federal e do Itamaraty.

Ainda no dia 6, uma sexta-feira, às 17h, a coronel Cíntia enviou a informação de que o sistema da Agência Nacional de Transportes Terrestres (ANTT) havia identificado 1622 passageiros em 43 ônibus fretados com chegada a Brasília prevista para o fim de semana. O coronel Casemiro e o secretário-executivo respondem com emojis, 👀 e 👍, respectivamente.

7 de janeiro: oficiais relatam ‘animosidade alta’ e ‘pé de cabra’

No sábado, dia 7, as informações indicaram o recrudescimento das ameaças. Logo às 2h01, um servidor identificado como capitão Júnior, do serviço de Inteligência do 1º CPR, relatou a chegada de ônibus ao acampamento de apoiadores do ex-presidente Jair Bolsonaro (PL) montado em frente ao Quartel General do Exército. Até o fim do dia, ele informaria placas de 84 coletivos desembarcando manifestantes.

Concentração de manifestantes extremistas no acampamento em frente ao QG do Exército, em Brasília, por volta das 18 horas do dia 7 de janeiro de 2023 Foto: Reprodução/Polícia Militar

Às 8h11, Marília relatou a partida, de Goiânia, de um grupo ligado a uma manifestante que já era monitorada pelos serviços de inteligência por conta do perfil agressivo e da “apologia ao assassinato do PR [Presidente da República]”. “Quésia não embarcou. Ficou só na organização, mas pode ser que venha depois, até de carro, dada a proximidade Goiânia-Brasília. Estão trazendo ao menos 4 pés de cabra”.

Às 10h02, a coronel Cíntia, subsecretária, voltou a mencionar a radical. “Quésia é conhecida por manifestações extremistas, com apologia ao assassinato do PR. Há informe que o grupo tem intenção de atos violentos e estariam transportando vários pés de cabra. Presumem-se armados. Entre os dois ônibus organizados por Quésia, há aproximadamente 70 manifestantes. Esse grupo pediu que pessoas com mobilidade reduzida e idosos não se voluntariassem”, enviou.

“Há informe que o grupo tem intenção de atos violentos e estariam transportando vários pés de cabra. Presumem-se armados”

Coronel Cíntia de Castro, subsecretária de Operações Integradas da SSP-DF, em mensagem no WhatsApp

Não houve nova menção à manifestante, nem registros da presença dela durante os ataques. Ela também não apareceu na lista de pessoas presas. Às 13h10, o coronel Casimiro pediu acesso à estrutura do Ministério das Relações Exteriores (MRE) e do STF. “Solicito a gentileza do MRE e STF conforme acordado em reunião na SSP que disponibilize os gradis de ferro. A PMDF colocou as barreiras de trânsito, mas não são adequadas para segurar o público”.

No decorrer da tarde, surgiram relatos de tensão com manifestantes. O Exército fechou a Avenida Duque de Caxias, um dos acessos ao acampamento, e o humor dos extremistas mudou, conforme o capitão Junior registrou às 14h23.

“O cara do carro está inflando o pessoal. Tá vindo gente do QG pra cá tbm. Tá ficando quente aqui. Geral com gritos de ‘vamos fechar tudo’. Animosidade alta”, enviou.

Pouco depois, às 15h21, ele enviou a informação de que o bloqueio do Exército não foi capaz de conter os extremistas: “Manifestantes gritam palavras de ordem e incitam motoristas a furarem o bloqueio feito pela PE (Polícia do Exército) (...) Manifestantes desfizeram o bloqueio físico realizado pela PE”.

Naquela mesma tarde, uma reunião da cúpula da Polícia Federal com o secretário Fernando Oliveira e a subsecretária Cíntia expôs a “divergência” na percepção sobre os preparativos. Segundo um relatório da PF sobre o encontro, o diretor-geral, Andrei Rodrigues, entendia que “a movimentação seria por si só um ato criminoso, pois atentaria contra o Estado Democrático de Direito”. Por outro lado, os representantes da equipe de Anderson Torres “manifestaram um entendimento diverso, alegando que se trataria de uma simples manifestação de cunho pacífico”.

Após a reunião com a PF não houve mudança na interação do grupo, e as horas seguintes do dia 7 foram de pressão de manifestantes para estacionar em áreas proibidas e para desfazer bloqueios que impediam a chegada de mais pessoas ao acampamento. Apesar da facilidade para remoção do bloqueio do Exército, os servidores se convenceram da “tranquilidade” da movimentação.

Sem que os planos dos acampados tenham sido frustrados pelos militares, extremistas interpretaram o cenário como um aval do Exército à organização. Às 18h05 do dia 7, a coronel Cíntia compartilhou com o grupo o vídeo de um manifestante que afirmava ter o apoio do quartel e que o objetivo era tomar a Esplanada.

“Vai sair todo mundo para ir para a Esplanada. Vamos fazer isso hoje, não sei que horas. E amanhã, domingo, e segunda-feira também. O Exército está do lado do povo, cuida, está ajudando. Se estivesse contra, não estaria deixando a gente armar barraca. Tem comida, tem banheiro, tem de tudo aqui”, dizia o manifestante.

A subsecretária fez um comentário sucinto sobre a motivação do radical. “Falando de descer hoje à noite a Esplanada! Vamos ficar atentos, senhores”, disse a coronel, sem receber respostas dos demais integrantes do grupo.

Às 18h43, o Departamento de Estradas de Rodagem do Distrito Federal (DER-DF) foi acionado para dar apoio à fiscalização de estacionamento irregular nas proximidades do Setor Militar Urbano. Exatamente uma hora depois, o representante do órgão, Rodrigo Cavalcante, pede reforço.

“Pessoal do DER está dizendo que ficou inseguro para eles lá. Se alguma equipe da PM puder dar apoio seria bom”, escreveu às 19h43. Em seguida, Cavalcante relata que a equipe do DER recuou depois de ser atacada com pedras e xingamentos.

Na mesma noite, chegaram relatos de tensão em outra região de Brasília. Um grupo de “diversos indivíduos” tentou chegar à Praça dos Três Poderes por um espaço entre o estacionamento do Palácio do Planalto e um prédio do Senado. Eles foram barrados pela Polícia Legislativa.

“Verificou-se ainda comportamento anômalo de alguns indivíduos, os quais aparentavam estar fazendo um reconhecimento do local”, escreveu às 19h46 do dia 7 o coronel Jorge Henrique Pinto, do setor de Inteligência da SSP-DF. Os relatos de tensão não eram seguidos por pedidos de providência ou de novas decisões sobre o planejamento.

Às 23h17, o secretário-executivo Fernando Oliveira escreveu pela primeira vez: “Senhores/as, qual a última parcial das ruas? Tudo dentro da normalidade, do esperado?”. O chefe do 1º CPR, Marcelo Casemiro, respondeu que não havia problemas e que a tropa estava atenta. “Tudo normal. Sem problemas. Estamos atentos nas ruas, PMDF em condições. Todos bem orientados”, disse.

Antes da meia-noite, um outro relatório da Inteligência. A informação era a de que uma parte dos acampados queria descer em direção à Esplanada ainda na noite do dia 7, mas que a decisão ficou para o dia seguinte.

8 de janeiro: os relatos e as reações das forças de segurança no dia “D”

Desde o começo da manhã de 8 de janeiro, os integrantes do grupo de WhatsApp receberam relatos sobre a intenção de apoiadores de Bolsonaro de partir para ações extremas a qualquer momento. Às 8h50, o coronel Jorge Henrique Pinto, do setor de Inteligência da SSP-DF, avisou ao grupo que os radicais falavam em caminhar para a Esplanada “logo após o almoço com suas mochilas”.

“Alguns incrementam os discursos dizendo que não devem mais jogar nas ‘quatro’ linhas da CF (Constituição Federal)”, relatou o policial.

A expressão “quatro linhas da Constituição” era rotineiramente usada por Bolsonaro durante o mandato. Como mostrou o Estadão, os extremistas reproduziram frases literais de Bolsonaro ao invadirem as sedes dos Três Poderes, seguindo um roteiro de ideias disseminadas pelo ex-presidente.

Com o passar das horas daquele 8 de janeiro, o grupo de conversas era avisado pela Inteligência da Secretaria de Segurança de que mais extremistas se dirigiam a Brasília. “Estão conclamando mais pessoas pelos grupos de Whatsapp”, avisou o capitão Júnior, da Inteligência do DF, às 10h16. “Acabaram de falar que vão esperar MUITAS caravanas que estão chegando e pediram pra ninguém descer individualmente.”

Às 12h36, o militar informou às forças policiais que “o público em toda a extensão da Praça dos Cristais”, em frente ao QG do Exército, “está entre 5.000 e 5.500 pessoas”. “Alguns manifestantes demonstram animosidade e falam em tomada de poder”, relatou Júnior.

O relato das equipes na rua não era seguido por mudanças no planejamento ou por novas ordens que pudessem fazer frente à escalada da agressividade que era reportada para toda a cúpula da segurança. As autoridades tomavam ciência do acirramento dos ânimos e das pretensões dos radicais sem esboçar reação no grupo.

A previsão das forças de segurança era a de que os manifestantes se reunissem em frente a um carro de som no acampamento às 13h para decidir o horário da partida em direção à Praça dos Três Poderes.

Entretanto, não houve uma deliberação. Às 13h08, o capitão Junior escreveu em caixa alta no grupo do WhatsApp: “NÃO AGUARDARAM A REUNIÃO. Estão descendo para a Esplanada em massa”.

Apesar dos relatos de animosidade e da partida antecipada, o secretário Fernando Oliveira enviou uma gravação de áudio ao governador do DF, Ibaneis Rocha (MDB), dizendo que “não há nenhum informe de questão de agressividade” e que estava tudo “bem tranquilo, bem ameno, uma movimentação bem suave e manifestação bem pacífica”.

Entre os manifestantes em deslocamento, porém, havia agressividade. Chefe do policiamento de trânsito, coronel Edvã avisou no grupo de WhatsApp que “cerca de 10 pessoas que se identificaram como militares ou reservistas” falavam em “traçar táticas e estratégias de combate, com discurso violento”. “A liderança se identificou como PE [Polícia do Exército] de Ponta Grossa/PR. Mostrou um estilingue e um bambu para ser usado contra as forças de segurança”, escreveu o coronel às 13h24.

Apesar das motivações golpistas e dos materiais encontrados com alguns manifestantes, o grupo foi escoltado pela polícia de trânsito até a Esplanada. Em um relatório do dia 11, o coronel Edvã afirmou que atuou para estabelecer “condições para o deslocamento, garantindo a segurança dos participantes”.

Após os relatos de deslocamento, o representante da Segurança do Senado, Gabriel Dias, questionou os outros integrantes das forças, no grupo: “Está havendo revista na barreira?” As autoridades continuaram a encaminhar relatos sobre a atuação dos radicais, sem enviar uma resposta imediata a ele.

“Ripas com pregos, altura do primeiro ministério norte, logo após a linha de revista”, afirmou o capitão Júnior às 14h12. “Há pessoas portanto fogos de artifício em mochilas.”

Às 14h19, Jorge Henrique Pinto avisa. “Garrafa cheia de pedras sob o casaco”, escreve. “Ficar atentos.”

A chegada à Esplanada, a invasão dos apoiadores de Bolsonaro aos prédios dos Três Poderes e a depredação do patrimônio público foram narradas em tempo real pelas forças de segurança no grupo de WhatsApp. O capitão Júnior, da Inteligência do DF, enviou 14 mensagens, entre 15h28 e 16h01, sobre o que estava ocorrendo na Esplanada dos Ministérios.

“Invadiram a (via) S1. Correndo em direção ao STF. Três pessoas aparentemente feridas próximo ao STF. Estão invadindo a área do STF pela retaguarda”, escreveu.

“Atualização: manifestantes quebraram os vidros e invadiram o Salão Branco do STF. Invasão do Supremo ocorrendo. Diversos manifestantes subindo. Muita gente descendo N1 e S1. Destruição no Planalto. Manifestantes vibrando com a invasão ao STF. Escreveram: Perdeu mané!. STF totalmente tomado. Depredação do prédio todo.”

Imagem aérea, feita por volta das 16h do dia 8 de janeiro de 2023, mostra grupo de manifestantes pró-Bolsonaro invadindo e destruindo o prédio do STF, em Brasília Foto: Reprodução/Polícia Militar

O Supremo foi “retomado”, segundo o capitão Júnior, às 16h51.Naquele momento, no Senado, o chefe da segurança avisou ao grupo no WhatsApp que “manifestantes tomaram o Salão Azul”, área que fica em frente ao gabinete do presidente da Casa e dá acesso ao plenário.

“Polícia do Senado satura ambiente, bombas de luz e som, mas insuficiente”, escreve às 16h50. “Continuam a invadir. Dificil contenção. Estão ganhando terreno no Senado. Destruíram câmeras de CFTV (Circuito Fechado de Televisão).”

A interação no grupo é encerrada com relatos sobre a volta de extremistas ao acampamento, com a última mensagem às 19h16.

O que disseram os envolvidos

Dos integrantes dos grupo de WhatsApp estão presos o major Flávio Alencar, subcomandante do 6º batalhão, e os coronéis Casimiro e Fábio Augusto.

Procurada para comentar a atuação dos integrantes das polícias no grupo do WhatsApp, a SSP-DF informou somente que “não comenta sobre investigações em andamento”. A PM não deu retornos.

A reportagem fez contato com advogados de Fernando e Cíntia, mas eles não deram retornos. O advogado do coronel Casimiro não foi localizado. Em depoimento à CPI do DF, o coronel afirmou que não era o comandante da operação de segurança do evento, não recebeu relatórios de inteligência e apenas delegou o comando.

Aos deputados, o delegado Fernando, secretário-executivo da SSP-DF, afirmou que houve erro da Polícia Militar ao executar o planejamento. “A PM deveria manter reforço de efetivo nas adjacências, nos prédios públicos, na rodoviária e em todo perímetro. Era para manter todo o reforço de efetivo. As ações acordadas na sexta-feira não foram cumpridas”, disse.

A coronel Cíntia, subsecretária da pasta, afirmou à CPI que não houve falha no planejamento, mas na execução dele por parte da PM. “Foi realizado (o planejamento) considerando o nível máximo de ameaça. Não houve falha no planejamento. Houve falha na execução”, afirmou.

BRASÍLIA - No grupo de WhatsApp dos chefes e diretores das forças de segurança do Distrito Federal, os sinais de que o pior aconteceria estavam postos desde as vésperas do 8 de Janeiro: o evento era batizado de “tomada pelo povo” e manifestantes vinham a Brasília munidos de pés de cabra, paus, estilingues e “possivelmente armados” – entre eles, uma mulher que fazia “apologia ao assassinato do presidente” Luiz Inácio Lula da Silva (PT). A cúpula do governo distrital, incluindo servidores da confiança do então secretário de segurança do DF, Anderson Torres, sabia que a intenção dos extremistas era chegar à Esplanada para a “tomada do poder”.

Apesar das evidências que fariam manifestações de outras naturezas serem prontamente reprimidas, as autoridades do DF não tomaram nenhuma medida compatível com a tentativa de golpe de Estado que se desenhava. Em vez disso, permitiram a escolta de uma multidão até o Congresso. As trocas de mensagens no grupo de WhatsApp “Perímetros segurança” revelam uma série de omissões, avaliações equivocadas sobre riscos e um “apagão” decisório quando a destruição começou. O Estadão teve acesso à íntegra das conversas.

Quando questionados sobre o papel que desempenharam no episódio, os principais líderes do grupo transferem responsabilidades uns aos outros, mas admitem falhas no planejamento ou na execução do plano traçado na antevéspera. Um inquérito no Supremo Tribunal Federal (STF) apura a responsabilidade de membros das forças de segurança de Brasília e também de integrantes das Forças Armadas.

Imagem de drone feita por volta das 15 horas do dia 8 de janeiro de 2023 mostra grupo de manifestantes extremistas tomando o controle do prédio do Congresso Nacional Foto: Reprodução/Polícia Militar

Havia outros grupos de conversas com integrantes de forças de segurança. Mas em uma reunião no dia 6, realizada no Centro Integrado de Operações de Brasília (Ciob), ficou decidido que o “Perímetros” serviria para troca de informações necessárias tanto para ações de “monitoramento” de manifestantes quanto para “acionamento” de equipes. A decisão de priorizar o grupo foi comunicada ainda na manhã daquele dia pela coronel Cíntia de Castro, subsecretária de Operações Integradas da Secretaria de Segurança Pública do DF (SSP-DF).

Além dela, também estavam no grupo o delegado Fernando de Sousa Oliveira, secretário-executivo da SSP-DF, número 2 da pasta, e a delegada Marília Alencar, chefe da seção de Inteligência da secretaria. O trio era subordinado ao então secretário Anderson Torres. O chefe da pasta viajou aos Estados Unidos ainda no dia 6, apesar dos alertas sobre a possibilidade de tumulto na capital.

Dentre os integrantes estavam ainda o comandante da PM, coronel Fábio Augusto Vieira, o comandante do policiamento de trânsito, coronel Edvã de Oliveira Sousa, e o comandante do 1º Comando de Policiamento Regional (CPR), coronel Marcelo Casimiro Rodrigues, responsável pela ação de policiamento na região central de Brasília e por tratar de tamanho e de distribuição do efetivo na área.

Policiais militares comprar água de coco enquanto manifestantes invadem Congresso, STF e Planalto Foto: Weslley Galzo

Ao todo eram 31 pessoas. Havia também outros representantes da SSP-DF, das polícias Militar e Civil, do Corpo de Bombeiros, do Detran, do Departamento de Estradas de Rodagem (DER-DF), da Polícia Rodoviária Federal, do Senado, do Supremo Tribunal Federal e do Itamaraty.

Ainda no dia 6, uma sexta-feira, às 17h, a coronel Cíntia enviou a informação de que o sistema da Agência Nacional de Transportes Terrestres (ANTT) havia identificado 1622 passageiros em 43 ônibus fretados com chegada a Brasília prevista para o fim de semana. O coronel Casemiro e o secretário-executivo respondem com emojis, 👀 e 👍, respectivamente.

7 de janeiro: oficiais relatam ‘animosidade alta’ e ‘pé de cabra’

No sábado, dia 7, as informações indicaram o recrudescimento das ameaças. Logo às 2h01, um servidor identificado como capitão Júnior, do serviço de Inteligência do 1º CPR, relatou a chegada de ônibus ao acampamento de apoiadores do ex-presidente Jair Bolsonaro (PL) montado em frente ao Quartel General do Exército. Até o fim do dia, ele informaria placas de 84 coletivos desembarcando manifestantes.

Concentração de manifestantes extremistas no acampamento em frente ao QG do Exército, em Brasília, por volta das 18 horas do dia 7 de janeiro de 2023 Foto: Reprodução/Polícia Militar

Às 8h11, Marília relatou a partida, de Goiânia, de um grupo ligado a uma manifestante que já era monitorada pelos serviços de inteligência por conta do perfil agressivo e da “apologia ao assassinato do PR [Presidente da República]”. “Quésia não embarcou. Ficou só na organização, mas pode ser que venha depois, até de carro, dada a proximidade Goiânia-Brasília. Estão trazendo ao menos 4 pés de cabra”.

Às 10h02, a coronel Cíntia, subsecretária, voltou a mencionar a radical. “Quésia é conhecida por manifestações extremistas, com apologia ao assassinato do PR. Há informe que o grupo tem intenção de atos violentos e estariam transportando vários pés de cabra. Presumem-se armados. Entre os dois ônibus organizados por Quésia, há aproximadamente 70 manifestantes. Esse grupo pediu que pessoas com mobilidade reduzida e idosos não se voluntariassem”, enviou.

“Há informe que o grupo tem intenção de atos violentos e estariam transportando vários pés de cabra. Presumem-se armados”

Coronel Cíntia de Castro, subsecretária de Operações Integradas da SSP-DF, em mensagem no WhatsApp

Não houve nova menção à manifestante, nem registros da presença dela durante os ataques. Ela também não apareceu na lista de pessoas presas. Às 13h10, o coronel Casimiro pediu acesso à estrutura do Ministério das Relações Exteriores (MRE) e do STF. “Solicito a gentileza do MRE e STF conforme acordado em reunião na SSP que disponibilize os gradis de ferro. A PMDF colocou as barreiras de trânsito, mas não são adequadas para segurar o público”.

No decorrer da tarde, surgiram relatos de tensão com manifestantes. O Exército fechou a Avenida Duque de Caxias, um dos acessos ao acampamento, e o humor dos extremistas mudou, conforme o capitão Junior registrou às 14h23.

“O cara do carro está inflando o pessoal. Tá vindo gente do QG pra cá tbm. Tá ficando quente aqui. Geral com gritos de ‘vamos fechar tudo’. Animosidade alta”, enviou.

Pouco depois, às 15h21, ele enviou a informação de que o bloqueio do Exército não foi capaz de conter os extremistas: “Manifestantes gritam palavras de ordem e incitam motoristas a furarem o bloqueio feito pela PE (Polícia do Exército) (...) Manifestantes desfizeram o bloqueio físico realizado pela PE”.

Naquela mesma tarde, uma reunião da cúpula da Polícia Federal com o secretário Fernando Oliveira e a subsecretária Cíntia expôs a “divergência” na percepção sobre os preparativos. Segundo um relatório da PF sobre o encontro, o diretor-geral, Andrei Rodrigues, entendia que “a movimentação seria por si só um ato criminoso, pois atentaria contra o Estado Democrático de Direito”. Por outro lado, os representantes da equipe de Anderson Torres “manifestaram um entendimento diverso, alegando que se trataria de uma simples manifestação de cunho pacífico”.

Após a reunião com a PF não houve mudança na interação do grupo, e as horas seguintes do dia 7 foram de pressão de manifestantes para estacionar em áreas proibidas e para desfazer bloqueios que impediam a chegada de mais pessoas ao acampamento. Apesar da facilidade para remoção do bloqueio do Exército, os servidores se convenceram da “tranquilidade” da movimentação.

Sem que os planos dos acampados tenham sido frustrados pelos militares, extremistas interpretaram o cenário como um aval do Exército à organização. Às 18h05 do dia 7, a coronel Cíntia compartilhou com o grupo o vídeo de um manifestante que afirmava ter o apoio do quartel e que o objetivo era tomar a Esplanada.

“Vai sair todo mundo para ir para a Esplanada. Vamos fazer isso hoje, não sei que horas. E amanhã, domingo, e segunda-feira também. O Exército está do lado do povo, cuida, está ajudando. Se estivesse contra, não estaria deixando a gente armar barraca. Tem comida, tem banheiro, tem de tudo aqui”, dizia o manifestante.

A subsecretária fez um comentário sucinto sobre a motivação do radical. “Falando de descer hoje à noite a Esplanada! Vamos ficar atentos, senhores”, disse a coronel, sem receber respostas dos demais integrantes do grupo.

Às 18h43, o Departamento de Estradas de Rodagem do Distrito Federal (DER-DF) foi acionado para dar apoio à fiscalização de estacionamento irregular nas proximidades do Setor Militar Urbano. Exatamente uma hora depois, o representante do órgão, Rodrigo Cavalcante, pede reforço.

“Pessoal do DER está dizendo que ficou inseguro para eles lá. Se alguma equipe da PM puder dar apoio seria bom”, escreveu às 19h43. Em seguida, Cavalcante relata que a equipe do DER recuou depois de ser atacada com pedras e xingamentos.

Na mesma noite, chegaram relatos de tensão em outra região de Brasília. Um grupo de “diversos indivíduos” tentou chegar à Praça dos Três Poderes por um espaço entre o estacionamento do Palácio do Planalto e um prédio do Senado. Eles foram barrados pela Polícia Legislativa.

“Verificou-se ainda comportamento anômalo de alguns indivíduos, os quais aparentavam estar fazendo um reconhecimento do local”, escreveu às 19h46 do dia 7 o coronel Jorge Henrique Pinto, do setor de Inteligência da SSP-DF. Os relatos de tensão não eram seguidos por pedidos de providência ou de novas decisões sobre o planejamento.

Às 23h17, o secretário-executivo Fernando Oliveira escreveu pela primeira vez: “Senhores/as, qual a última parcial das ruas? Tudo dentro da normalidade, do esperado?”. O chefe do 1º CPR, Marcelo Casemiro, respondeu que não havia problemas e que a tropa estava atenta. “Tudo normal. Sem problemas. Estamos atentos nas ruas, PMDF em condições. Todos bem orientados”, disse.

Antes da meia-noite, um outro relatório da Inteligência. A informação era a de que uma parte dos acampados queria descer em direção à Esplanada ainda na noite do dia 7, mas que a decisão ficou para o dia seguinte.

8 de janeiro: os relatos e as reações das forças de segurança no dia “D”

Desde o começo da manhã de 8 de janeiro, os integrantes do grupo de WhatsApp receberam relatos sobre a intenção de apoiadores de Bolsonaro de partir para ações extremas a qualquer momento. Às 8h50, o coronel Jorge Henrique Pinto, do setor de Inteligência da SSP-DF, avisou ao grupo que os radicais falavam em caminhar para a Esplanada “logo após o almoço com suas mochilas”.

“Alguns incrementam os discursos dizendo que não devem mais jogar nas ‘quatro’ linhas da CF (Constituição Federal)”, relatou o policial.

A expressão “quatro linhas da Constituição” era rotineiramente usada por Bolsonaro durante o mandato. Como mostrou o Estadão, os extremistas reproduziram frases literais de Bolsonaro ao invadirem as sedes dos Três Poderes, seguindo um roteiro de ideias disseminadas pelo ex-presidente.

Com o passar das horas daquele 8 de janeiro, o grupo de conversas era avisado pela Inteligência da Secretaria de Segurança de que mais extremistas se dirigiam a Brasília. “Estão conclamando mais pessoas pelos grupos de Whatsapp”, avisou o capitão Júnior, da Inteligência do DF, às 10h16. “Acabaram de falar que vão esperar MUITAS caravanas que estão chegando e pediram pra ninguém descer individualmente.”

Às 12h36, o militar informou às forças policiais que “o público em toda a extensão da Praça dos Cristais”, em frente ao QG do Exército, “está entre 5.000 e 5.500 pessoas”. “Alguns manifestantes demonstram animosidade e falam em tomada de poder”, relatou Júnior.

O relato das equipes na rua não era seguido por mudanças no planejamento ou por novas ordens que pudessem fazer frente à escalada da agressividade que era reportada para toda a cúpula da segurança. As autoridades tomavam ciência do acirramento dos ânimos e das pretensões dos radicais sem esboçar reação no grupo.

A previsão das forças de segurança era a de que os manifestantes se reunissem em frente a um carro de som no acampamento às 13h para decidir o horário da partida em direção à Praça dos Três Poderes.

Entretanto, não houve uma deliberação. Às 13h08, o capitão Junior escreveu em caixa alta no grupo do WhatsApp: “NÃO AGUARDARAM A REUNIÃO. Estão descendo para a Esplanada em massa”.

Apesar dos relatos de animosidade e da partida antecipada, o secretário Fernando Oliveira enviou uma gravação de áudio ao governador do DF, Ibaneis Rocha (MDB), dizendo que “não há nenhum informe de questão de agressividade” e que estava tudo “bem tranquilo, bem ameno, uma movimentação bem suave e manifestação bem pacífica”.

Entre os manifestantes em deslocamento, porém, havia agressividade. Chefe do policiamento de trânsito, coronel Edvã avisou no grupo de WhatsApp que “cerca de 10 pessoas que se identificaram como militares ou reservistas” falavam em “traçar táticas e estratégias de combate, com discurso violento”. “A liderança se identificou como PE [Polícia do Exército] de Ponta Grossa/PR. Mostrou um estilingue e um bambu para ser usado contra as forças de segurança”, escreveu o coronel às 13h24.

Apesar das motivações golpistas e dos materiais encontrados com alguns manifestantes, o grupo foi escoltado pela polícia de trânsito até a Esplanada. Em um relatório do dia 11, o coronel Edvã afirmou que atuou para estabelecer “condições para o deslocamento, garantindo a segurança dos participantes”.

Após os relatos de deslocamento, o representante da Segurança do Senado, Gabriel Dias, questionou os outros integrantes das forças, no grupo: “Está havendo revista na barreira?” As autoridades continuaram a encaminhar relatos sobre a atuação dos radicais, sem enviar uma resposta imediata a ele.

“Ripas com pregos, altura do primeiro ministério norte, logo após a linha de revista”, afirmou o capitão Júnior às 14h12. “Há pessoas portanto fogos de artifício em mochilas.”

Às 14h19, Jorge Henrique Pinto avisa. “Garrafa cheia de pedras sob o casaco”, escreve. “Ficar atentos.”

A chegada à Esplanada, a invasão dos apoiadores de Bolsonaro aos prédios dos Três Poderes e a depredação do patrimônio público foram narradas em tempo real pelas forças de segurança no grupo de WhatsApp. O capitão Júnior, da Inteligência do DF, enviou 14 mensagens, entre 15h28 e 16h01, sobre o que estava ocorrendo na Esplanada dos Ministérios.

“Invadiram a (via) S1. Correndo em direção ao STF. Três pessoas aparentemente feridas próximo ao STF. Estão invadindo a área do STF pela retaguarda”, escreveu.

“Atualização: manifestantes quebraram os vidros e invadiram o Salão Branco do STF. Invasão do Supremo ocorrendo. Diversos manifestantes subindo. Muita gente descendo N1 e S1. Destruição no Planalto. Manifestantes vibrando com a invasão ao STF. Escreveram: Perdeu mané!. STF totalmente tomado. Depredação do prédio todo.”

Imagem aérea, feita por volta das 16h do dia 8 de janeiro de 2023, mostra grupo de manifestantes pró-Bolsonaro invadindo e destruindo o prédio do STF, em Brasília Foto: Reprodução/Polícia Militar

O Supremo foi “retomado”, segundo o capitão Júnior, às 16h51.Naquele momento, no Senado, o chefe da segurança avisou ao grupo no WhatsApp que “manifestantes tomaram o Salão Azul”, área que fica em frente ao gabinete do presidente da Casa e dá acesso ao plenário.

“Polícia do Senado satura ambiente, bombas de luz e som, mas insuficiente”, escreve às 16h50. “Continuam a invadir. Dificil contenção. Estão ganhando terreno no Senado. Destruíram câmeras de CFTV (Circuito Fechado de Televisão).”

A interação no grupo é encerrada com relatos sobre a volta de extremistas ao acampamento, com a última mensagem às 19h16.

O que disseram os envolvidos

Dos integrantes dos grupo de WhatsApp estão presos o major Flávio Alencar, subcomandante do 6º batalhão, e os coronéis Casimiro e Fábio Augusto.

Procurada para comentar a atuação dos integrantes das polícias no grupo do WhatsApp, a SSP-DF informou somente que “não comenta sobre investigações em andamento”. A PM não deu retornos.

A reportagem fez contato com advogados de Fernando e Cíntia, mas eles não deram retornos. O advogado do coronel Casimiro não foi localizado. Em depoimento à CPI do DF, o coronel afirmou que não era o comandante da operação de segurança do evento, não recebeu relatórios de inteligência e apenas delegou o comando.

Aos deputados, o delegado Fernando, secretário-executivo da SSP-DF, afirmou que houve erro da Polícia Militar ao executar o planejamento. “A PM deveria manter reforço de efetivo nas adjacências, nos prédios públicos, na rodoviária e em todo perímetro. Era para manter todo o reforço de efetivo. As ações acordadas na sexta-feira não foram cumpridas”, disse.

A coronel Cíntia, subsecretária da pasta, afirmou à CPI que não houve falha no planejamento, mas na execução dele por parte da PM. “Foi realizado (o planejamento) considerando o nível máximo de ameaça. Não houve falha no planejamento. Houve falha na execução”, afirmou.

BRASÍLIA - No grupo de WhatsApp dos chefes e diretores das forças de segurança do Distrito Federal, os sinais de que o pior aconteceria estavam postos desde as vésperas do 8 de Janeiro: o evento era batizado de “tomada pelo povo” e manifestantes vinham a Brasília munidos de pés de cabra, paus, estilingues e “possivelmente armados” – entre eles, uma mulher que fazia “apologia ao assassinato do presidente” Luiz Inácio Lula da Silva (PT). A cúpula do governo distrital, incluindo servidores da confiança do então secretário de segurança do DF, Anderson Torres, sabia que a intenção dos extremistas era chegar à Esplanada para a “tomada do poder”.

Apesar das evidências que fariam manifestações de outras naturezas serem prontamente reprimidas, as autoridades do DF não tomaram nenhuma medida compatível com a tentativa de golpe de Estado que se desenhava. Em vez disso, permitiram a escolta de uma multidão até o Congresso. As trocas de mensagens no grupo de WhatsApp “Perímetros segurança” revelam uma série de omissões, avaliações equivocadas sobre riscos e um “apagão” decisório quando a destruição começou. O Estadão teve acesso à íntegra das conversas.

Quando questionados sobre o papel que desempenharam no episódio, os principais líderes do grupo transferem responsabilidades uns aos outros, mas admitem falhas no planejamento ou na execução do plano traçado na antevéspera. Um inquérito no Supremo Tribunal Federal (STF) apura a responsabilidade de membros das forças de segurança de Brasília e também de integrantes das Forças Armadas.

Imagem de drone feita por volta das 15 horas do dia 8 de janeiro de 2023 mostra grupo de manifestantes extremistas tomando o controle do prédio do Congresso Nacional Foto: Reprodução/Polícia Militar

Havia outros grupos de conversas com integrantes de forças de segurança. Mas em uma reunião no dia 6, realizada no Centro Integrado de Operações de Brasília (Ciob), ficou decidido que o “Perímetros” serviria para troca de informações necessárias tanto para ações de “monitoramento” de manifestantes quanto para “acionamento” de equipes. A decisão de priorizar o grupo foi comunicada ainda na manhã daquele dia pela coronel Cíntia de Castro, subsecretária de Operações Integradas da Secretaria de Segurança Pública do DF (SSP-DF).

Além dela, também estavam no grupo o delegado Fernando de Sousa Oliveira, secretário-executivo da SSP-DF, número 2 da pasta, e a delegada Marília Alencar, chefe da seção de Inteligência da secretaria. O trio era subordinado ao então secretário Anderson Torres. O chefe da pasta viajou aos Estados Unidos ainda no dia 6, apesar dos alertas sobre a possibilidade de tumulto na capital.

Dentre os integrantes estavam ainda o comandante da PM, coronel Fábio Augusto Vieira, o comandante do policiamento de trânsito, coronel Edvã de Oliveira Sousa, e o comandante do 1º Comando de Policiamento Regional (CPR), coronel Marcelo Casimiro Rodrigues, responsável pela ação de policiamento na região central de Brasília e por tratar de tamanho e de distribuição do efetivo na área.

Policiais militares comprar água de coco enquanto manifestantes invadem Congresso, STF e Planalto Foto: Weslley Galzo

Ao todo eram 31 pessoas. Havia também outros representantes da SSP-DF, das polícias Militar e Civil, do Corpo de Bombeiros, do Detran, do Departamento de Estradas de Rodagem (DER-DF), da Polícia Rodoviária Federal, do Senado, do Supremo Tribunal Federal e do Itamaraty.

Ainda no dia 6, uma sexta-feira, às 17h, a coronel Cíntia enviou a informação de que o sistema da Agência Nacional de Transportes Terrestres (ANTT) havia identificado 1622 passageiros em 43 ônibus fretados com chegada a Brasília prevista para o fim de semana. O coronel Casemiro e o secretário-executivo respondem com emojis, 👀 e 👍, respectivamente.

7 de janeiro: oficiais relatam ‘animosidade alta’ e ‘pé de cabra’

No sábado, dia 7, as informações indicaram o recrudescimento das ameaças. Logo às 2h01, um servidor identificado como capitão Júnior, do serviço de Inteligência do 1º CPR, relatou a chegada de ônibus ao acampamento de apoiadores do ex-presidente Jair Bolsonaro (PL) montado em frente ao Quartel General do Exército. Até o fim do dia, ele informaria placas de 84 coletivos desembarcando manifestantes.

Concentração de manifestantes extremistas no acampamento em frente ao QG do Exército, em Brasília, por volta das 18 horas do dia 7 de janeiro de 2023 Foto: Reprodução/Polícia Militar

Às 8h11, Marília relatou a partida, de Goiânia, de um grupo ligado a uma manifestante que já era monitorada pelos serviços de inteligência por conta do perfil agressivo e da “apologia ao assassinato do PR [Presidente da República]”. “Quésia não embarcou. Ficou só na organização, mas pode ser que venha depois, até de carro, dada a proximidade Goiânia-Brasília. Estão trazendo ao menos 4 pés de cabra”.

Às 10h02, a coronel Cíntia, subsecretária, voltou a mencionar a radical. “Quésia é conhecida por manifestações extremistas, com apologia ao assassinato do PR. Há informe que o grupo tem intenção de atos violentos e estariam transportando vários pés de cabra. Presumem-se armados. Entre os dois ônibus organizados por Quésia, há aproximadamente 70 manifestantes. Esse grupo pediu que pessoas com mobilidade reduzida e idosos não se voluntariassem”, enviou.

“Há informe que o grupo tem intenção de atos violentos e estariam transportando vários pés de cabra. Presumem-se armados”

Coronel Cíntia de Castro, subsecretária de Operações Integradas da SSP-DF, em mensagem no WhatsApp

Não houve nova menção à manifestante, nem registros da presença dela durante os ataques. Ela também não apareceu na lista de pessoas presas. Às 13h10, o coronel Casimiro pediu acesso à estrutura do Ministério das Relações Exteriores (MRE) e do STF. “Solicito a gentileza do MRE e STF conforme acordado em reunião na SSP que disponibilize os gradis de ferro. A PMDF colocou as barreiras de trânsito, mas não são adequadas para segurar o público”.

No decorrer da tarde, surgiram relatos de tensão com manifestantes. O Exército fechou a Avenida Duque de Caxias, um dos acessos ao acampamento, e o humor dos extremistas mudou, conforme o capitão Junior registrou às 14h23.

“O cara do carro está inflando o pessoal. Tá vindo gente do QG pra cá tbm. Tá ficando quente aqui. Geral com gritos de ‘vamos fechar tudo’. Animosidade alta”, enviou.

Pouco depois, às 15h21, ele enviou a informação de que o bloqueio do Exército não foi capaz de conter os extremistas: “Manifestantes gritam palavras de ordem e incitam motoristas a furarem o bloqueio feito pela PE (Polícia do Exército) (...) Manifestantes desfizeram o bloqueio físico realizado pela PE”.

Naquela mesma tarde, uma reunião da cúpula da Polícia Federal com o secretário Fernando Oliveira e a subsecretária Cíntia expôs a “divergência” na percepção sobre os preparativos. Segundo um relatório da PF sobre o encontro, o diretor-geral, Andrei Rodrigues, entendia que “a movimentação seria por si só um ato criminoso, pois atentaria contra o Estado Democrático de Direito”. Por outro lado, os representantes da equipe de Anderson Torres “manifestaram um entendimento diverso, alegando que se trataria de uma simples manifestação de cunho pacífico”.

Após a reunião com a PF não houve mudança na interação do grupo, e as horas seguintes do dia 7 foram de pressão de manifestantes para estacionar em áreas proibidas e para desfazer bloqueios que impediam a chegada de mais pessoas ao acampamento. Apesar da facilidade para remoção do bloqueio do Exército, os servidores se convenceram da “tranquilidade” da movimentação.

Sem que os planos dos acampados tenham sido frustrados pelos militares, extremistas interpretaram o cenário como um aval do Exército à organização. Às 18h05 do dia 7, a coronel Cíntia compartilhou com o grupo o vídeo de um manifestante que afirmava ter o apoio do quartel e que o objetivo era tomar a Esplanada.

“Vai sair todo mundo para ir para a Esplanada. Vamos fazer isso hoje, não sei que horas. E amanhã, domingo, e segunda-feira também. O Exército está do lado do povo, cuida, está ajudando. Se estivesse contra, não estaria deixando a gente armar barraca. Tem comida, tem banheiro, tem de tudo aqui”, dizia o manifestante.

A subsecretária fez um comentário sucinto sobre a motivação do radical. “Falando de descer hoje à noite a Esplanada! Vamos ficar atentos, senhores”, disse a coronel, sem receber respostas dos demais integrantes do grupo.

Às 18h43, o Departamento de Estradas de Rodagem do Distrito Federal (DER-DF) foi acionado para dar apoio à fiscalização de estacionamento irregular nas proximidades do Setor Militar Urbano. Exatamente uma hora depois, o representante do órgão, Rodrigo Cavalcante, pede reforço.

“Pessoal do DER está dizendo que ficou inseguro para eles lá. Se alguma equipe da PM puder dar apoio seria bom”, escreveu às 19h43. Em seguida, Cavalcante relata que a equipe do DER recuou depois de ser atacada com pedras e xingamentos.

Na mesma noite, chegaram relatos de tensão em outra região de Brasília. Um grupo de “diversos indivíduos” tentou chegar à Praça dos Três Poderes por um espaço entre o estacionamento do Palácio do Planalto e um prédio do Senado. Eles foram barrados pela Polícia Legislativa.

“Verificou-se ainda comportamento anômalo de alguns indivíduos, os quais aparentavam estar fazendo um reconhecimento do local”, escreveu às 19h46 do dia 7 o coronel Jorge Henrique Pinto, do setor de Inteligência da SSP-DF. Os relatos de tensão não eram seguidos por pedidos de providência ou de novas decisões sobre o planejamento.

Às 23h17, o secretário-executivo Fernando Oliveira escreveu pela primeira vez: “Senhores/as, qual a última parcial das ruas? Tudo dentro da normalidade, do esperado?”. O chefe do 1º CPR, Marcelo Casemiro, respondeu que não havia problemas e que a tropa estava atenta. “Tudo normal. Sem problemas. Estamos atentos nas ruas, PMDF em condições. Todos bem orientados”, disse.

Antes da meia-noite, um outro relatório da Inteligência. A informação era a de que uma parte dos acampados queria descer em direção à Esplanada ainda na noite do dia 7, mas que a decisão ficou para o dia seguinte.

8 de janeiro: os relatos e as reações das forças de segurança no dia “D”

Desde o começo da manhã de 8 de janeiro, os integrantes do grupo de WhatsApp receberam relatos sobre a intenção de apoiadores de Bolsonaro de partir para ações extremas a qualquer momento. Às 8h50, o coronel Jorge Henrique Pinto, do setor de Inteligência da SSP-DF, avisou ao grupo que os radicais falavam em caminhar para a Esplanada “logo após o almoço com suas mochilas”.

“Alguns incrementam os discursos dizendo que não devem mais jogar nas ‘quatro’ linhas da CF (Constituição Federal)”, relatou o policial.

A expressão “quatro linhas da Constituição” era rotineiramente usada por Bolsonaro durante o mandato. Como mostrou o Estadão, os extremistas reproduziram frases literais de Bolsonaro ao invadirem as sedes dos Três Poderes, seguindo um roteiro de ideias disseminadas pelo ex-presidente.

Com o passar das horas daquele 8 de janeiro, o grupo de conversas era avisado pela Inteligência da Secretaria de Segurança de que mais extremistas se dirigiam a Brasília. “Estão conclamando mais pessoas pelos grupos de Whatsapp”, avisou o capitão Júnior, da Inteligência do DF, às 10h16. “Acabaram de falar que vão esperar MUITAS caravanas que estão chegando e pediram pra ninguém descer individualmente.”

Às 12h36, o militar informou às forças policiais que “o público em toda a extensão da Praça dos Cristais”, em frente ao QG do Exército, “está entre 5.000 e 5.500 pessoas”. “Alguns manifestantes demonstram animosidade e falam em tomada de poder”, relatou Júnior.

O relato das equipes na rua não era seguido por mudanças no planejamento ou por novas ordens que pudessem fazer frente à escalada da agressividade que era reportada para toda a cúpula da segurança. As autoridades tomavam ciência do acirramento dos ânimos e das pretensões dos radicais sem esboçar reação no grupo.

A previsão das forças de segurança era a de que os manifestantes se reunissem em frente a um carro de som no acampamento às 13h para decidir o horário da partida em direção à Praça dos Três Poderes.

Entretanto, não houve uma deliberação. Às 13h08, o capitão Junior escreveu em caixa alta no grupo do WhatsApp: “NÃO AGUARDARAM A REUNIÃO. Estão descendo para a Esplanada em massa”.

Apesar dos relatos de animosidade e da partida antecipada, o secretário Fernando Oliveira enviou uma gravação de áudio ao governador do DF, Ibaneis Rocha (MDB), dizendo que “não há nenhum informe de questão de agressividade” e que estava tudo “bem tranquilo, bem ameno, uma movimentação bem suave e manifestação bem pacífica”.

Entre os manifestantes em deslocamento, porém, havia agressividade. Chefe do policiamento de trânsito, coronel Edvã avisou no grupo de WhatsApp que “cerca de 10 pessoas que se identificaram como militares ou reservistas” falavam em “traçar táticas e estratégias de combate, com discurso violento”. “A liderança se identificou como PE [Polícia do Exército] de Ponta Grossa/PR. Mostrou um estilingue e um bambu para ser usado contra as forças de segurança”, escreveu o coronel às 13h24.

Apesar das motivações golpistas e dos materiais encontrados com alguns manifestantes, o grupo foi escoltado pela polícia de trânsito até a Esplanada. Em um relatório do dia 11, o coronel Edvã afirmou que atuou para estabelecer “condições para o deslocamento, garantindo a segurança dos participantes”.

Após os relatos de deslocamento, o representante da Segurança do Senado, Gabriel Dias, questionou os outros integrantes das forças, no grupo: “Está havendo revista na barreira?” As autoridades continuaram a encaminhar relatos sobre a atuação dos radicais, sem enviar uma resposta imediata a ele.

“Ripas com pregos, altura do primeiro ministério norte, logo após a linha de revista”, afirmou o capitão Júnior às 14h12. “Há pessoas portanto fogos de artifício em mochilas.”

Às 14h19, Jorge Henrique Pinto avisa. “Garrafa cheia de pedras sob o casaco”, escreve. “Ficar atentos.”

A chegada à Esplanada, a invasão dos apoiadores de Bolsonaro aos prédios dos Três Poderes e a depredação do patrimônio público foram narradas em tempo real pelas forças de segurança no grupo de WhatsApp. O capitão Júnior, da Inteligência do DF, enviou 14 mensagens, entre 15h28 e 16h01, sobre o que estava ocorrendo na Esplanada dos Ministérios.

“Invadiram a (via) S1. Correndo em direção ao STF. Três pessoas aparentemente feridas próximo ao STF. Estão invadindo a área do STF pela retaguarda”, escreveu.

“Atualização: manifestantes quebraram os vidros e invadiram o Salão Branco do STF. Invasão do Supremo ocorrendo. Diversos manifestantes subindo. Muita gente descendo N1 e S1. Destruição no Planalto. Manifestantes vibrando com a invasão ao STF. Escreveram: Perdeu mané!. STF totalmente tomado. Depredação do prédio todo.”

Imagem aérea, feita por volta das 16h do dia 8 de janeiro de 2023, mostra grupo de manifestantes pró-Bolsonaro invadindo e destruindo o prédio do STF, em Brasília Foto: Reprodução/Polícia Militar

O Supremo foi “retomado”, segundo o capitão Júnior, às 16h51.Naquele momento, no Senado, o chefe da segurança avisou ao grupo no WhatsApp que “manifestantes tomaram o Salão Azul”, área que fica em frente ao gabinete do presidente da Casa e dá acesso ao plenário.

“Polícia do Senado satura ambiente, bombas de luz e som, mas insuficiente”, escreve às 16h50. “Continuam a invadir. Dificil contenção. Estão ganhando terreno no Senado. Destruíram câmeras de CFTV (Circuito Fechado de Televisão).”

A interação no grupo é encerrada com relatos sobre a volta de extremistas ao acampamento, com a última mensagem às 19h16.

O que disseram os envolvidos

Dos integrantes dos grupo de WhatsApp estão presos o major Flávio Alencar, subcomandante do 6º batalhão, e os coronéis Casimiro e Fábio Augusto.

Procurada para comentar a atuação dos integrantes das polícias no grupo do WhatsApp, a SSP-DF informou somente que “não comenta sobre investigações em andamento”. A PM não deu retornos.

A reportagem fez contato com advogados de Fernando e Cíntia, mas eles não deram retornos. O advogado do coronel Casimiro não foi localizado. Em depoimento à CPI do DF, o coronel afirmou que não era o comandante da operação de segurança do evento, não recebeu relatórios de inteligência e apenas delegou o comando.

Aos deputados, o delegado Fernando, secretário-executivo da SSP-DF, afirmou que houve erro da Polícia Militar ao executar o planejamento. “A PM deveria manter reforço de efetivo nas adjacências, nos prédios públicos, na rodoviária e em todo perímetro. Era para manter todo o reforço de efetivo. As ações acordadas na sexta-feira não foram cumpridas”, disse.

A coronel Cíntia, subsecretária da pasta, afirmou à CPI que não houve falha no planejamento, mas na execução dele por parte da PM. “Foi realizado (o planejamento) considerando o nível máximo de ameaça. Não houve falha no planejamento. Houve falha na execução”, afirmou.

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