Fazia sol no final da manhã do domingo, 19 de março de 1967, quando apareci na redação do Jornal da Tarde, na Rua Major Quedinho, a 300 metros da minha casa, em busca de alguma companhia para almoçar. “Oi, Gabi, venha aqui urgente”, gritou aliviado o chefe de reportagem, Laerte Fernandes, assim que me viu – e meia hora depois eu estava em um helicóptero ao lado do fotógrafo Geraldo Guimarães, entre nuvens escuras e ventos fortes, descendo a serra a caminho de Caraguatatuba. “A cidade acabou”, diziam os recados recebidos ao longo da manhã. Em praticamente todo o litoral paulista, chovia sem parar havia quatro dias.
Paramos numa pista larga, não longe da praia, e metemos o pé na lama. Tentar saber o que se passava entre os 15 mil habitantes da cidade era perda de tempo – que o diga o então prefeito, Geraldo Nogueira da Silva, já exausto, sem dormir havia 36 horas, que nos atendeu enquanto dava ordens a imediatos e ouvia relatos de soldados.
Ao lado de autoridades da Força Aérea Brasileira (FAB), baseadas em São José dos Campos, ele tentava organizar a ajuda e encaminhar os mais de 120 corpos já localizados – além de buscar outros 300 desaparecidos. Juntos, os dois lados definiam não só como enfrentar o caos da cidade como abrir passagens para levar comida ou remédios a moradores isolados e recuperar centenas de carros parados nas estradas próximas.
“Temos tudo a fazer”, clamava o prefeito, ante as notícias vindas da Fazenda dos Ingleses, do Rio do Ouro, do Cantagalo. Perto dali, um advogado, José de Paula Ferreira, comandava voluntariamente um posto de atendimento em um grupo escolar que já havia atendido a cerca de 1.200 pessoas. À sua volta se amontoavam remédios, cobertores, pás e picaretas. Nas portas, os avisos eram atualizados constantemente.
Daquilo tudo algo me ficou mais forte na memória: um cabo de 80 metros, de um lado a outro do Rio do Ouro, ao qual cordas amarravam caixões – uma fila de corpos balançando precariamente sobre as águas a caminho do cemitério.
“A lama vermelha amolecida por três dias de chuva forte deslizou sobre a cidade, encobriu casas no pé da serra. Dez minutos depois, Caraguatatuba quase não existia mais”, escrevi no começo da reportagem que foi capa e última página do Jornal da Tarde no dia seguinte. “Em dez minutos, 400 mortos”, alertava a manchete do jornal. “A morte desce o morro”, dizia o título na última página, Nos dias seguintes, uma ampla equipe de repórteres – como Moisés Rabinovici, Hamilton de Almeida, Carmo Chagas e Celso Kinjô – levou adiante a cobertura, que ganhou o prêmio Esso de equipe daquele ano.
A tragédia me soou repetida, neste fevereiro de 2023. Chuva recorde (os temporais no último sábado, 18, e domingo, 19, resultaram no acumulado de 682 mm em Bertioga e 626 mm em São Sebastião), lama, morros, habitações precárias, caminhos fechados, prateleiras vazias e gente imensamente aflita.
Entre as diferenças, arrisco dizer que a lama que desceu em 1967 foi muito maior. Mas também foi maior, com certeza, a solidariedade. Grupos juntando braços pra subir morro, assumindo a tragédia como desafio pessoal. O próprio prefeito nos pedia, ao partir, que falássemos “com todo mundo, por todo lado” para apressar a ajuda. Nem de longe imaginar, por exemplo, algum grupinho de moradores escondendo informação, xingando a imprensa ou atacando jornalistas – como aconteceu em Maresias, na terça-feira, 21, com os repórteres Renata Cafardo e Tiago Queiroz, do Estadão, que cobriam a tragédia.
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