Uma localização popular no Instagram indica “Ipiranga – O bairro mais importante do Brasil”. Para além dos prováveis bairrismos, o distrito da zona sul de São Paulo está em evidência com a reinauguração do museu e as celebrações do bicentenário da Independência. O que os visitantes talvez não percebam ao ir à região pela primeira vez em anos (ou em toda a vida) são outras transformações no cotidiano e na paisagem dos “ipiranguenses”, como a recuperação de palacetes históricos, a paulatina verticalização e o fluxo de turistas e paulistanos de outras regiões em novos passeios guiados e espaços gastronômicos.
As mudanças em parte dividem os moradores, alguns são mais resistentes especialmente à construção de edifícios, por temerem uma eventual descaracterização do distrito, que completa 438 anos em 2022. Entre os problemas a serem resolvidos, os mais citados são a drenagem, a segurança pública e melhorias urbanas.
Parte dessa transformação está ligada ao passado do Ipiranga, especialmente à família Jafet e ao conde José Vicente de Azevedo, nomes essenciais da industrialização e urbanização do distrito. Hoje, o que restou de patrimônio histórico edificado daquele período está em parte incluído em projetos recentes de restauro e conversão de uso, dos quais o educacional é um dos principais. O Ipiranga é um dos cinco distritos com mais bens tombados na cidade. São mais de 100.
“Tem um monte de coisa acontecendo no bairro. Vários projetos simultâneos vão de encontro a um processo de transformação, com novas edificações e demandas”, avalia a arquiteta e urbanista Ana Marta Ditolvo, professora na Faap e na pós-graduação da Mackenzie.
Diretora da Ambiência Arquitetura e Restauro, a arquiteta está com diferentes projetos simultaneamente no distrito envolvendo palacetes dos Jafet e construções filantrópicas do conde José Vicente de Azevedo, e já foi sondada para outros. “São adequações para os novos modelos contemporâneos de ocupação, porque a dinâmica da cidade mudou”, comenta. Um exemplo que cita são as dimensões dos palacetes: “Hoje, quem mora em três mil metros quadrados?”.
Ana associa a onda de restauros à presença de imóveis históricos com construções e terrenos de grandes dimensões – diferentemente do que ocorre em bairros mais centrais como Liberdade e Bixiga –, o que facilita a mudança de uso e, por vezes, permite a construção de novas edificações no mesmo lote. Além disso, a verticalização, que costuma resultar em aumento populacional, também impacta em novas demandas por comércio e serviços, como escolas.
Segundo ela, parte desses imóveis enfrentavam problemas de deterioração por estarem há anos sem uso, às vezes mais de uma década. Outro ponto que destaca, praticamente unanimidade na área, é a necessidade de dar utilização para o patrimônio histórico, seja privado ou público. “Nem tudo pode ser museu”, comenta. “E o tombamento não engessa, isso não é verdade. Continua um patrimônio privado, só que de interesse público.”
Um diferencial percebido pela arquiteta é a preocupação de parte dos moradores com o patrimônio cultural, maior do que percebe em outros distritos paulistanos. Ela conta que costuma ser procurada por moradores curiosos sobre o destino de imóveis e que, ao abrir à visitação a obra em um dos palacetes dos Jafet durante a última Jornada do Patrimônio, recebeu quase 500 visitantes em três horas, a maioria da vizinhança. “O diferencial é a comunidade muito ativa, bem preocupada com a manutenção da memória.”
A arquiteta está envolvida no restauro do Noviciado Nossa Senhora das Graças, cujo novo uso está em discussão pela incorporadora Alfa Realty, que desistiu do projeto anterior, de transformá-lo em um centro de compras e lazer junto a um residencial de luxo. Entre os novos usos discutidos pela proprietária em uma audiência pública de junho, está a conversão em residencial, centro médico ou educacional. “Lá cabe tudo. Já fiz projeto de hospital, cabe escola tem muitas possibilidades”, conta Ana.
A arquiteta também está desenvolvendo o restauro e a ampliação do Colégio São Francisco Xavier, ainda a ser executado. Além disso, participou dos projetos para antiga residência do maestro Furio Franceschini, que virará um liceu comunitário de música, e o antigo Grupo Escolar São José, que virará uma unidade da Escola Mais, ambos propriedades da Fundação Nossa Senhora Auxiliadora do Ipiranga (Funsai).
Entre os projetos mais recentes da arquiteta, está a conversão de um dos palacetes dos Jafet para uma unidade da Red House International School. Um dos pontos de maior atenção é preservar as pinturas e murais decorativos, enquanto os cômodos grandes permitiram a conversão para salas, biblioteca, e afins. “O programa de residência da burguesia era de ambientes generosos. Os banheiros eram enormes”, explica.
Diretor da escola e nascido ipiranguense, Marcio Castellan conta que a decisão de abrir a escola ocorreu justamente ao perceber uma demanda crescente enquanto procurava uma opção para o filho pequeno. “O Ipiranga deixou de ser um bairro operário para ser a residência de um público com uma renda cada vez maior. É bem localizado, perto do centro, da (Avenida) Paulista, ao mesmo tempo é aconchegante e tranquilo.”
Junto da esposa, Gabriela Camacho, igualmente professora, ele decidiu pela implantação de uma escola bilíngue. A ideia era, desde o início, instalar-se em um imóvel histórico, no caso, um dos seis palacetes remanescentes dos Jafet. Deu tão certo, que há fila de espera e se decidiu pela ampliação para um segundo palácio também ligado à trajetória da família. Ela sonha, ainda, com uma nova extensão, para mais uma residência tombada.
Para Castellan, a vivência escolar em um imóvel desse tipo é diferente. “É uma atmosfera aconchegante, acolhedora. As crianças ficam encantadas com os detalhes históricos. Estimula.” Além disso, pelo terreno amplo, o endereço permite atividades ao ar livre, na horta, no pomar, no lago e em uma quadra. Por outro lado, calcula que a opção exige cerca de 20% de gastos a mais com a manutenção, inclusive por ter dois funcionários especializados em restauro.
Outro ipiranguense à frente de mudanças é Carlos Eduardo Franceschini Vecchio, de 80 anos, presidente da Funsai, instituição filantrópica atuante no distrito desde 1896. Ele cresceu em uma residência que hoje é uma “loja enorme, modernosa” e está dedicado especialmente em recuperar a antiga residência do avô, o maestro Furio Franceschini, que se deteriorou ao longo de décadas após entrar na massa falida de uma empresa sem vínculos com a família.
Adquirida pela fundação em 2004, a casa do maestro será transformada no Liceu de Artes Musicais Furio Franceschini, voltado ao ensino de música a crianças de baixa renda. A inauguração é prevista para 2023, após uma obra de restauro e adaptação.
Para o neto, o espaço ajudará a resgatar o legado do avô, que hoje considera mais conhecido no exterior do que no próprio País, além da contribuir na formação de crianças e adolescentes. “Acredito muito na música como elemento de resgate e formação da personalidade e cidadania.”
O neto destaca que a casa teria sido a primeira da Avenida Nazaré, em meados de 1915 quando “era tudo mato”, construída para ser residência do maestro com uma das filhas do conde José Vicente de Azevedo, Maria Angelina. Projetada pelo italiano Tito Oliani, o mesmo da Igreja Matriz de São José do Ipiranga, a casa é tombada, tanto pela arquitetura quanto pela história de seu mais ilustre morador.
Romano, Franceschini foi organista da Catedral da Sé por décadas, compositor de mais de 400 obras, professor de música e um dos fundadores da Academia Brasileira de Música. No endereço ipiranguense, recebeu alguns dos maiores das artes brasileiras, como Heitor Villa-Lobos, Mário de Andrade, Oswald de Andrade e Guiomar Novaes.
Na divulgação da obra para doadores, a fundação tem destacado que “após o segundo centenário da Independência, o Ipiranga será um polo de restauro histórico, centro das atenções”.
Também propriedade da Funsai, o edifício do antigo Grupo Escolar São José está em obras de restauro e adaptação. Para o ano que vem, passará a funcionar como uma unidade da Escola Mais, para a qual foi alugado.
Como relembra Franceschini Vecchio, o espaço estava há anos sem uso, ainda mais nos pavimentos superiores, enquanto propostas variadas feitas por terceiros, de supermercado a hotel e casa de repouso, não foram adiante. “Ficou às moscas. Agora vai ficar uma linda escola.”
Sesc derruba muro e se reaproxima do Museu do Ipiranga
As mudanças vão além do patrimônio histórico, embora por vezes se comuniquem com ele. No Sesc Ipiranga, por exemplo, o muro que separava a unidade do Parque da Independência foi trocado por grades, que permitem a visualização do jardim francês e do novo museu, atraindo a curiosidade dos frequentadores e, claro, selfies e fotos em geral.
“A gente consegue enxergar o museu e o museu nos enxergar. Conectou com o verde do quintal, traz uma continuidade para uma área que era mais concretada”, conta Luciana Itapema, Gerente-Adjunta do Sesc Ipiranga. Ela cita o aprimoramento do paisagismo do espaço da unidade, reaberto na véspera do feriado da Independência.
O Sesc também trocou o muro por um gradil em outro espaço que mantém perto da entrada do museu, tornando-o uma segunda entrada para visitantes. Além disso, tem uma série de atividades em parceria com o vizinho, incluindo apresentações de grupos teatrais, como o mineiro Galpão, e uma visita guiada pelo parque, na manhã do dia 24.
“Temos uma parceria de longa data com a USP, que se intensificou em 2017. A programação em diálogo com o museu vai até fevereiro de 2023, com muitas ações semanalmente, abertas ao público”, ressalta. A perspectiva é que a vizinhança continue valorizada na agenda do Sesc mesmo depois da data.
Novos tours guiados e gastronomia atraem visitantes ao Ipiranga
O Ipiranga também tem atraído a atenção de frequentadores de outras partes da cidade e turistas, seja pela história e opções culturais, seja pela gastronomia. Novos tours guiados têm surgido, por exemplo, reunindo também moradores curiosos por conhecerem a própria história, enquanto bares e restaurantes variados alcançam destaque.
Entre os novos passeios, está o Bike Tour, realizado pelo coletivo Vem Pro Pedal Ipiranga, criado neste ano. O grupo realizou duas edições e planeja uma terceira para dezembro, com participação gratuita mediante a doação sugerida de alimento não perecível.
“A gente vê que o Ipiranga tem crescido muito. Tem vários moradores novos que não conhecem tanto o bairro, tem novos restaurantes… A gente tenta aliar com o bairro antigo, com muitas pessoas idosas. A ideia é juntar os dois opostos”, conta a confeiteira e moradora do distrito Tabatha Queiroz, uma dos idealizadores.
A cada edição, um novo roteiro é criado. A equipe conduz o grupo e conta curiosidades pelo equipamento de som. “Com a bicicleta, a gente tem outra experiência, que de carro não tem, não repara. Na bicicleta, tem uma visão mais ampla e mais bonita.”
Em setembro, 110 pessoas participaram. “Também tinha muita gente de fora, que estava encantada em conhecer, gente da Saúde, de Ferraz de Vasconcelos, de Diadema”, comenta.
Já a turismóloga Larissa Resende implantou um passeio focado em José Vicente de Azevedo, incluindo o museu que o homenageia e outras obras filantrópicas que liderou no distrito, chamadas de “12 Maravilhas do Ipiranga”, como o Santuário Santa Paulina. A ideia é realizá-lo uma vez por mês ou bimestre, com participação a R$ 50, pela agência Redescubra SP.
“Existe um Ipiranga que ultrapassa um pouco esse espaço do museu. Quis criar um roteiro que mostrasse a história de um personagem que não é tão conhecido, uma história complementar sobre o desenvolvimento do bairro”, avalia. “São diversas narrativas (possíveis para o distrito), do grito da Independência, da filantropia, da industrialização, dos caminhos para o litoral.”
Já a historiadora Nadiana Teodoro lançou visitas guiadas ao Museu do Ipiranga e entorno. Por enquanto, não conseguiu estrear a experiência pela alta demanda por ingressos, mas espera iniciá-la no máximo em outubro, quando a instituição começará o agendamento de grupos. O valor será de R$ 50, pela Arredores Paulistanos.
“Vou contando um pouco de história, curiosidades, pedindo para as pessoas trazerem demandas. O Museu do Ipiranga está na memória afetiva”, comenta. “Todo mundo tem curiosidade de conhecer.”
Da mesma forma, bares e restaurantes têm misturado ipiranguenses e público de outras áreas. As propostas trazem, por vezes, referências da culinária internacional e outras regiões do Brasil.
É o caso, por exemplo, da Cozinha da Sí, especializada em comida baiana. A cozinheira e proprietária Simone Matos faz questão de trazer ingredientes do Estado natal. “Tem clientes que vêm de longe, que recomendam, postam em rede social”, conta a gerente do espaço, Evany Castilho.
Descrito como “acolhedor”, o espaço abriu em maio. “O cliente se sente mais como amigo, e isso que foi trazendo pessoas, no boca a boca.”
Inspirado em uma combinação atípica no Brasil e mais difundida no exterior, o Gin Bbq Bar ganhou projeção com o hambúrguer que traz o tradicional bife e camarões O proprietário, o ipiranguense Bruno Terumoto, diz que praticamente só atende “gente de fora”.
O empresário inaugurará mais uma casa na terça-feira, 20, batizada de Parrillinha, de milanesas argentinas e igualmente de porte pequeno (juntos, os dois espaços somam 77 lugares). “O Ipiranga está se transformando em uma segunda Pinheiros. Esse é o meu objetivo: transformar o Ipiranga em um local gastronômico bacana.”
Verticalização desponta e divide opiniões entre moradores
O Ipiranga também vive uma verticalização, como outras tantas partes da cidade. Embora ainda majoritariamente formado por imóveis baixos, áreas como o entorno das estações de Metrô (como Santos-Imigrantes e Alto do Ipiranga), o que é incentivado pelo Plano Diretor, e as quadras próximas do Parque da Independência têm atraído moradores do entorno e de outros bairros.
Segundo dados enviados pela consultoria Empresa Brasileira de Estudos de Patrimônio (Embraesp) ao Estadão, foram lançados 61 empreendimentos no distrito entre janeiro de 2011 e julho de 2022, totalizando 10,3 mil apartamentos, com uma área útil média de 58,73 m².
A concentração maior de novos prédios é no chamado Alto do Ipiranga. O valor do metro quadrado dos lançamentos em 2021 esteve na média de R$ 9,65 mil, mais alto nas opções de quatro ou mais dormitórios (em que chegou a R$ 12,06 mil).
A situação tem sido criticada por parte dos moradores, que temem o fim de um modo e ritmo de vida e a perda da identidade. Por outro lado, outros veem o fenômeno como natural.
O consultor imobiliário e ipiranguense Daniel Elias, de 42 anos, conta ter percebido uma demanda maior por apartamentos na região a cada ano. Entre os clientes que atende, para apartamentos acima de R$ 1 milhão, a procura é para a vizinhança do museu.
“Perto do ‘castelo’ é onde tem tudo. O museu é um plus, um embelezamento, por ali, é mais plano, dá para se fazer tudo a pé, tem padarias, barzinhos, restaurantes”, diz. “O perfil foi de classe média para classe média alta. Está valorizando e tem bastante lançamento.”
As demandas dos ipiranguenses
Em meio às transformações, o Ipiranga também vive uma série de demandas. Algumas foram evidenciadas recentemente nas atividades da atual revisão do Plano Diretor da cidade, por exemplo. Os relatórios municipais apontam que os temas mais tratados por moradores da subprefeitura Ipiranga são relacionados à habitação, à mobilidade, ao adensamento populacional e à verticalização. Há uma preocupação com uma possível “descaracterização dos bairros e dos seus miolos”.
Embora o Diagnóstico de Aplicação do Plano Diretor Estratégico 2014 - 2021 tenha destacado o Ipiranga como um dos três distritos em que aumentou a concentração de empregos nos últimos anos, uma maior oferta de oportunidades também foi citada pelos moradores. Outros pontos foram a insuficiência de equipamentos urbanos e sociais, principalmente para a população idosa, políticas de resíduos sólidos e investimento em sistemas de drenagem e limpeza de rios e córregos (a região do Baixo Ipiranga enfrenta, por exemplo, alagamentos e enchentes em épocas de chuvas).
Entre os moradores, também há preocupação com a segurança pública. Os boletins de ocorrência de roubos e furtos têm seguido uma média semelhante ao menos na última década. Em 2021, foram 1.136 roubos e 2.145 furtos registrados no 17º DP (Ipiranga), número que não inclui veículos, com 239 (roubos) e 746 (furtos), com um caso de latrocínio. Antes da pandemia, em 2019, foram 1.142 roubos (além de 384 de veículos) e 1.824 furtos (além de 838 de veículos), enquanto foram 1.230 roubos (além de 490 de veículos) e 1.830 furtos (além de 839 de veículos) em 2011, ambos sem registro de latrocínio.
Há projetos que envolvem o distrito nas esferas municipal e estadual. Entre os de maior porte, está a Operação Urbana Consorciada Bairros do Tamanduateí, projeto de lei enviado à Câmara pela gestão Fernando Haddad, em 2015, e ainda não votado e sem movimentação desde o primeiro semestre. Entre as mudanças previstas, está uma “requalificação urbanística” da Avenida D. Pedro I, a implantação de um parque linear na foz do Córrego Ipiranga e o incentivo ao adensamento construtivo em algumas áreas.
Em mobilidade, o Metrô tem uma meta de estender o monotrilho da Linha 15-Prata à estação Ipiranga até 2025. Há estudos sobre a possibilidade de ampliação da Linha 5-Lilás, com três novas estações na região.
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