Quando soube que nos próximos oito meses iria morar em Bertioga, Tainá Nogueira, de 27 anos, grávida de cinco meses, tentou alugar uma casa em Vila Sahy, São Sebastião, no litoral norte paulista, onde sempre viveu. Uma placa na frente da sua casa diz que ela está interditada, resultado do temporal que atingiu o litoral norte de São Paulo no domingo de carnaval e matou 64 pessoas.
A ideia parou nos preços.
Paradoxalmente, enquanto hotéis e pousadas nas áreas nobres registram cancelamentos de reservas, o valor dos aluguéis disparou no bairro humilde onde muitas pessoas morreram.
Assim como Tainá, doméstica em um condomínio na Praia da Baleia, outros moradores do local mais atingido pela tragédia socioambiental trabalham na região. A solução temporária apresentada pelo governo do Estado para eles é a transferência para um condomínio de Bertioga, a 41 quilômetros de onde vivem e trabalham, em São Sebastião.
“Uma casa de um quarto, sala, cozinha e banheiro era uns R$ 700. Encontrei algumas agora por até R$ 1,5 mil”, afirma Tainá, que recebe pouco a mais do que isso. “Não tem mais casa para alugar aqui pelo o que a gente pagava.”
Ao todo, 300 famílias devem ser levadas para a cidade vizinha. Desde a tragédia - que completa agora um mês - essas cerca de 1,2 mil pessoas estavam abrigadas em hotéis e pousadas, saída emergencial financiada pelo Estado.
Na última semana, elas começaram a se mudar para o condomínio Caminho das Flores, no bairro Quaresmeira, parte do programa Minha Casa Minha Vida e há quase dez anos em construção. As 300 unidades foram cedidas por oito meses por meio de um convênio firmado entre a Companhia de Desenvolvimento Habitacional e Urbano do Estado de São Paulo (CDHU) e a Frente Paulista de Habitação Popular do Estado de São Paulo. Após esse período, os atgingidos devem receber imóveis a serem construídos no bairro Baleia Verde, em São Sebastião.
A solução foi bem-vinda, mas também se transformou em um problema para Tainá. “Não consigo passar uma hora todo dia para ir e outra para voltar do trabalho, estou enjoando muito”, diz a gestante. Ela faz o pré-natal na Vila Sahy. Na terça-feira, 14, ela faltou a uma consulta para participar da reunião, em Bertioga, com os novos moradores do condomínio.
A saída para ela foi buscar abrigo na casa de uma tia do marido durante os dias de trabalho. “Aos finais de semana irei para Bertioga, nos dias de semana vou ficar aqui. Perguntei na reunião se poderia fazer isso e disseram que sim”, afirma. “Não tenho como me enfiar num aluguel aqui.”
É o mesmo dilema de Cleudiane Conceição da Silva, de 33 anos, também doméstica na praia da Baleia, que reúne mansões de mais de R$ 20 milhões e permanece quase deserta nos dias úteis, à espera dos moradores de fim de semana.
Por 11 anos, desde que chegou do Maranhão, Cleudiane viveu na Vila Sahy, em um imóvel que custou a ela e ao marido R$ 43 mil. “A casa estava em cima de um córrego, a gente não sabia porque estava aterrado, mas ele passava por baixo. Quando veio a chuva de madrugada, ele desceu levando tudo. Peguei minha filha, saímos pela janela e escapamos pelo telhado da casa ao lado”, diz.
A última semana, ela e o marido passaram procurando um aluguel que pudessem pagar. “Não tem como, vimos na Baleia Verde, Sahy, Boiçucanga, não temos como pagar o que estão pedindo”, afirma. Este domingo é o primeiro que passará já morando em Bertioga. “Não é o que a gente queria, mas…”, diz. “Eu levava vinte minutos pro trabalho e queira ou não as casas aqui são de outras pessoas.”
À primeira vista, Cícero Diniz está do lado oposto de Tainá e Cleudiane. Dono de quatro imóveis na Vila Sahy, e morando no Ceará, ele tem um deles vago desde a tempestade de 19 de fevereiro. Naquela madrugada, a água invadiu uma das casas e os inquilinos perderam todos seus móveis. Agora, ele planeja vir a São Paulo para acompanhar a situação dos familiares que permaneceram em São Sebastião e a reocupação do imóvel.
Em Juazeiro do Norte, Cícero recebeu notícias da Vila Sahy dando conta que ele poderia aumentar o valor do aluguel dos atuais R$ 1 mil para até R$ 1,6 mil. Preferiu manter o mesmo preço. “Fiquei sabendo que estão todos aumentando, mas nesse momento é bem desumano fazer isso”, afirma.
O comerciante acredita que outros proprietários viram uma oportunidade de lucro, mas acredita que isso não vai adiantar e as pessoas afetadas devem ir mesmo para Bertioga. “Muita gente perdeu tudo e cobrar mais agora é uma exploração”, diz.
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A ida das famílias para o local também causou reações no município. A prefeitura tentou reverter o acordo coordenado pelo governo do Estado para a transferência temporária sob alegação de que os imóveis estavam prestes a serem entregues à população local.
Os problemas não param por aí.
Há reclamações de proprietários de imóveis destruídos ou interditados e de ex-inquilinos em busca de serem cadastrados na lista de desabrigados. Na semana passada, a Defensoria Pública se reuniu com os moradores. As dúvidas se acumulam e a população afetada demonstrou preocupação com a realização dos laudos de interdição das casas e com a necessidade de auxílio à caiçaras, pescadores e barqueiros, que perderam sua renda com a baixa do turismo.
Cidade dividida ao meio
Para quem fica também sobram problemas.
Na casa de Nair Clemente Santos, de 75 anos, o problema é a escassez. A casa tem metade das paredes de madeira, o telhado de zinco, barro pelo chão. Água encanada, é de cachoeira. A casa, expansão de um barraco, fica a cerca de 200 metros da entrada da Praia da Baleia, a menos de 700 metros de uma mansão de R$ 25 milhões. São separadas pela Rio-Santos.
Em São Sebastião, litoral norte de São Paulo, o temporal matou no “sertão”, a área mais distante da praia e das casas de alto padrão. Quase um terço dos mortos foram crianças e adolescentes.
O que os números da tragédia paulista, causada por mais de 600 milímetros de chuva, expressam também se lê no relatório do Painel Intergovernamental sobre o Clima (IPCC), da ONU. As mudanças climáticas não poupam ricos e pobres, mas seus efeitos são maiores nos andares mais baixos da pirâmide social - como na meia casa de madeira, na Vila Sahy, o ponto mais atingido da cidade.
Apenas nesse bairro, 300 famílias foram desalojadas, cerca de 1,2 mil pessoas. Ednalva da Silva, filha de Nair, é um delas. Boa parte dos seus 57 anos se deram em volta da casa humilde da mãe, sem acesso a água tratada, sem escritura, sem calçada na frente e sem segurança em dias de chuva. ”É pouco (o serviço público) que chega aqui. A maior parte, acho que fica lá no outro lado”, afirma. Que outro lado? “Da pista.”
Desde que sua mãe chegou de Vitória da Conquista, na Bahia, foi assim. Enquanto os bairros ao lado da praia recebiam atenção e cresciam com uma “população de fim de semana”, os chamados “sertões” de Sahy, Cambury e Juquehy, entre outros, inchavam com uma população real e distante de serviços básicos. “Nem a água que vem da cachoeira pode tomar agora, disseram que está contaminada”, diz Ednalva.
Não à toa, a prefeitura de São Sebastião tem 37 condenações judiciais, em três anos, para que regularize e leve serviços básicos a áreas ocupadas nas proximidades de encostas da Serra do Mar. O objetivo é reduzir os riscos de seus moradores.
Em 1995, a casa dos metade Santos, metade Silva, era uma das poucas de Vila Sahy, então chamada de Vila Baiana. Não havia posto de saúde, escola ou equipamento público que fosse. Desde então, pouco foi instalado. Ainda há ruas estreitas de terra, vielas e centenas de casas morro acima amontoadas de forma indistinta.
A família inteira de Nair se estabeleceu a seu redor, em direção ao morro. A casa da filha Ednalva está interditada. Com medo de saques, ela passa os dias no imóvel condenado e as noite na casa de quatro cômodos da matriarca.
Em outra escala é o que acontece no bairro todo. A comunidade gravita em volta do Instituto Verdescola, que oferece aulas em contraturno para as crianças da região e abriga uma Escola Técnica Estadual (Etec). Uma ONG mantida por convênios e doações.
Na cidade em que a taxa de mortalidade infantil (13 óbitos por mil habitantes) é maior do que o índice paulista e brasileiro, no entanto, um instituto apenas não supre as carências de seus habitantes. Habitação, água tratada, esgoto, transporte coletivo, as queixas se amontoam.
15 famílias já foram transferidas para Bertioga
Procurado, o Governo do Estado afirma que a CDHU iniciou o processo de transferência de famílias de São Sebastião para os apartamentos do Conjunto Habitacional Caminho das Árvores em Bertioga, na segunda-feira (13). “Na última semana, 15 famílias foram transferidas, todas elas cadastradas pela equipe de atendimento da CDHU, que trabalha deslocada em São Sebastião, desde o dia 23 de fevereiro”, diz.
Em nota, o Estado afirma que o convênio firmado entre a CDHU e a Frente Paulista de Habitação Popular do Estado de São Paulo, no dia 3 de março, integra o conjunto de medidas em resposta à emergência e prevê a devolução das 300 unidades à entidade nas mesmas condições em que foram recebidas.
“A Secretaria de Desenvolvimento Urbano e Habitação (SDHU) já identificou quatro terrenos com metragem total de 71.248 m² em São Sebastião (bairro da Topolândia), Baleia Verde, Maresias e Vila Sahy para as obras das unidades definitivas”, diz a nota.