Atualizada às 21h16
SÃO PAULO - Duas alunas da Faculdade de Medicina da USP (Fmusp) relataram nesta terça-feira, 11, publicamente estupros sofridos em festas promovidas por alunos da instituição na capital. Os depoimentos foram feitos em audiência pública na Assembleia Legislativa de São Paulo (Alesp), que teve como objetivo denunciar casos de violência sexual na Fmusp e a existência de uma “cultura machista” nos trotes praticados contra calouros.
Foi a primeira vez que as alunas falaram sobre os episódios em público - depoimentos sobre os casos já haviam sido feitos anonimamente. Uma estudante do 4.ºano, de 24 anos, afirmou que sofreu dois estupros em 2011 em festas organizadas pela Associação Atlética Acadêmica Oswaldo Cruz (AAAOC). A jovem, que preferiu não ser identificada, integra o grupo feminista Geni, que luta pelos direitos das mulheres.
Um dos episódios, segundo ela, aconteceu na semana de inserção de calouros. No fim da festa, ela foi abordada por um rapaz, que disse que a acompanharia, por estar embriagada. “Fui puxada para uma sala de materiais escura. Ele começou a me agarrar, tentar me beijar e abaixou minha calça.”
A jovem disse que, na época, preferiu não levar o caso adiante e não contou o que aconteceu a ninguém. “Eu me senti muito silenciada ao longo desses quase quatro anos que estou na faculdade”, afirmou.
Outro episódio aconteceu na festa Carecas no Bosque, também em 2011, que foi feita em uma área de propriedade da USP. A universitária estava na festa com o atual namorado. De madrugada, foi a uma barraca onde eram oferecidas bebidas alcoólicas e adormeceu. Foi quando um funcionário terceirizado da festa entrou na barraca e a estuprou. “Eu estava desacordada. Descobri que o funcionário conseguiu entrar na barraca porque ele deu dinheiro para os seguranças.” O episódio foi visto por um amigo, que expulsou o rapaz e contou a ela o que tinha acontecido.
Outra estudante, que também preferiu não ser identificada, contou que sofreu estupro na festa Cervejada, em 2013, organizada pelos estudantes de Medicina. Ela disse ter sido abordada por dois alunos, do 4.º e do 5.º ano, que a chamaram para beber no carro de um deles. Quando a jovem foi até o local, disse ter sido agarrada. “Passaram a mão nas minhas partes íntimas. Eu gritei para que parassem e continuaram.”
Sem apuração. A reclamação das estudantes é de que nenhum dos casos foi apurado e, ao fazer as denúncias, há perseguição dos alunos, que não acreditam nas histórias. De acordo com os estudantes de Medicina ouvidos na audiência pública, a violência sexual é “internalizada” na cultura da Fmusp logo no primeiro ano.
A aluna Ana Luísa Cunha, do grupo Geni, relatou a forma como os trotes são feitos. “Eles separam as meninas dos meninos, colocam elas sentadas no chão e formam uma roda em volta, em pé.” Na sequência, os rapazes - na maioria, veteranos - entoam um hino que faz apologia ao estupro. “Muitas delas falam que ficam com muito medo”, disse a estudante.
Inquérito. O Ministério Público Estadual solicitou à Fmusp, há dois meses, informações sobre casos de trotes violentos e violação de direitos humanos em festas. Um inquérito foi instaurado no fim de agosto pela promotora Paula Figueiredo Silva, depois de receber denúncias de estudantes. “Queremos fortalecer os mecanismos de apuração da repressão. A universidade não deve apenas dar o ensino técnico, mas formar o cidadão”, disse a promotora na audiência pública.
A AAAOC informou que ainda está se organizando para comentar as declarações das estudantes. Ao fim da reunião, a reportagem procurou a Fmusp, que não respondeu sobre o caso até as 21 horas desta terça.
Homofobia. O estudante de medicina Felipe Scalisa, organizador da audiência pública e um dos fundadores do Núcleo de Estudos em Gênero, Saúde e Sexualidade (Negs) da Fmusp, relatou ainda que há perseguição aos coletivos dentro da instituição. De acordo com ele, quando começaram as denúncias de casos de homofobia - ao menos sete episódios graves - e violência, a reação foi de humilhação. "Os alunos do grupo Show Medicina (entidade de estudantes que organiza os trotes) apresentaram uma peça de teatro em que me interpretavam em um personagem para me humilhar. Isso por ter explicitado a lei do silêncio que acontece na faculdade. Há uma perseguição clara".
O grupo citado por Scalisa foi o mesmo que apagou o grafite do túnel José Roberto Melhem, que liga as Avenidas Paulista, Rebouças e Dr. Arnaldo, para divulgar uma festa de medicina. "O mais grave é como os alunos não conseguem enxergar a violência. Eles banalizam, naturalizam. Com isso, perseguem e agridem as pessoas que emitem alguma crítica.