BRASÍLIA - Com mais de 48 horas de apagão em alguns bairros de São Paulo, entidades e moradores se mobilizam para cobrar e até mesmo processar a distribuidora de energia elétrica Enel. A falta de luz desde sexta-feira, 11, tem gerado prejuízos, sobretudo ao comércio. Cerca de 537 mil consumidores ainda estão sem luz na Grande São Paulo, sendo 354 mil clientes na capital paulista.
A Federação de Hotéis, Restaurantes e Bares do Estado de São Paulo (Fhoresp), por exemplo, anunciou que vai acionar judicialmente a Enel. Já o Procon-SP vai notificar a concessionária nesta segunda-feira, 14. Existem ainda relatos de condomínio que se mobiliza para mover uma ação coletiva contra a Enel e moradores que pretendem, individualmente, pedir o ressarcimento pelos prejuízos.
Enquanto isso, o Ministério Público vai incluir o atual apagão no inquérito que investiga possíveis irregularidades no serviço prestado pela companhia. A Agência Reguladora de Serviços Públicos do Estado de São Paulo (Arsesp) colocou uma equipe no Centro de Operações da Enel para fiscalizar e acompanhar as ações para restabelecer a energia elétrica aos consumidores que tiveram o serviço interrompido. “As causas e eventuais responsabilidades serão investigadas pela Arsesp para as devidas providências junto a empresa”, diz, em nota.
A Enel se comprometeu a aumentar o número total de funcionários em campo e também afirmou que toma medidas para a modernização da rede (leia mais abaixo).
Para especialistas, os consumidores devem reunir documentos, vídeos e outras evidências que mostrem os prejuízos causados pela falta de luz para acionar a Enel judicialmente. Segundo advogados, além de cobrar danos materiais, os consumidores podem pedir ressarcimento por danos morais pela falta do serviço.
O restaurante Praça de Minas, na Rua Treze de Maio, na região central, calcula um prejuízo de pelo menos R$ 80 mil entre sexta e sábado, quando teve o funcionamento prejudicado pela falta de energia. No domingo, 13, o estabelecimento funcionou à base de gerador, cuja hora do aluguel custa R$ 800.
“Fechamos a loja em um dos dias de maior movimento na casa. Reservamos um gerador e pagamos muito caro”, relata Raimundo Alves, gerente do restaurante. “Vamos ainda terminar de contabilizar os prejuízos, até porque não é a primeira vez que isso acontece.”
Casos como esse estão no radar da Federação de Hotéis, Restaurantes e Bares do Estado de São Paulo, que quer responsabilizar a Enel pelos prejuízos causados pelo apagão. A entidade representa mais de 502 mil estabelecimentos do setor, dos quais metade está na área afetada pela falta de luz.
“Além do bar e do restaurante não conseguirem abrir as suas portas para funcionar, estes estabelecimentos não têm como acondicionar matéria-prima. Sem energia, sem geladeira, sem freezer. Os produtos perecíveis estão estragando. É um prejuízo terrível. E quem é que paga o prejuízo dos nossos associados?”, questiona Edson Pinto, diretor-executivo da Fhoresp.
Em novembro do ano passado, o blecaute que atingiu a região metropolitana de São Paulo provocou para o setor um prejuízo de R$ 500 milhões, de acordo com cálculos da Fhoresp.
Procon notifica Enel
A demora no restabelecimento do serviços e o caos que a falta de luz gerou na cidade levaram o Procon a decidir notificar a Enel. A partir desta segunda-feira, 14, a Enel terá 48 horas para responder aos questionamentos feitos pelo órgão, que incluem informações sobre a demora na reação à crise e medidas para responder às mudanças climáticas.
Ao longo do procedimento, o Procon poderá solicitar documentos, realizar fiscalizações, entre outras medidas. Caso o órgão decida pela aplicação de multa, o valor pode chegar a até R$ 12 milhões, pelo porte da empresa.
De acordo com a Agência Nacional de Energia Elétrica (Aneel), já foram aplicadas à Enel multas que totalizam R$ 320 milhões desde 2018. Desse total, não foram pagas as duas últimas multas: de R$ 95 milhões e R$ 165 milhões, porque a concessionária conseguiu decisão judicial favorável para não realizar o pagamento.
Como o Estadão mostrou, a Enel, ao longo dos últimos anos, reduziu o quadro de funcionários. No seu balanço consolidado de 2023, a empresa reportou 15.721 trabalhadores. Como comparação, em 2020 eram quase 27 mil. “A redução no quadro pessoal no período não trouxe impactos às atividades operacionais da distribuidora”, informou a companhia em nota.
‘Vamos cobrar na Justiça para que a Enel pague o conserto’
No Ipiranga, na zona sul, o aposentado José Alexandre Ramos de Oliveira e os vizinhos da Rua dos Sorocabanos estão sem luz desde a noite de sexta-feira, 11. Na casa do irmão dele, que mora a um quarteirão de distância, não houve queda de energia. “O jeito, então, foi esvaziar a geladeira e levar os alimentos para lá e não perder toda a comida que estava congelada. Alguns eletrodomésticos também foram danificados. Vamos cobrar na Justiça para que a Enel pague o conserto”, disse.
Cláudia Carvalho, moradora da Vila Mariana, na zona sul, e o marido também tiveram de deixar a casa e ir para o apartamento da irmã. Desde sexta-feira, o prédio onde vivem, na Rua Itamiami, está sem luz. Morando no 8.º andar, sem água, internet e energia elétrica, o casal teve de deixar o lar.
Desde sexta-feira, ela abriu uma reclamação na Enel, que atualizou a demanda no aplicativo informando que o problema já tinha sido solucionado, o que não aconteceu. No sábado, tentou novamente abrir uma reclamação, mas não conseguiu. Somente na manhã de domingo conseguiu abrir novo chamado, ainda sem solução. A falta de luz tem impacto inclusive no trabalho do marido de Cláudia, que é psicólogo e faz atendimentos online.
“A gente fica muito revoltado com essa situação. Não precisa nem chover. Em janeiro tivemos o mesmo problema e aconteceu exatamente a mesma coisa”, conta ela.
No Itaim Bibi, na zona sul, o condomínio do médico Ricardo Renzetti cogita mover uma ação coletiva contra a Enel. O prédio contratou um gerador para manter algumas atividades básicas e possibilitar que os moradores puxem energia do corredor.
“Só durante a noite de sexta até o meio dia de sábado foram gastos R$ 3.300 de diesel. E, com o gerador funcionando direto, esse custo vai ser maior ainda. Já sugeri que isso seja cobrado da Enel”, afirma Renzetti.
Dano moral e material
O advogado Gabriel de Britto Silva, especialista em Direito do Consumidor, afirma que os prejuízos gerados pela Enel são cabíveis de ações por dano material e moral. “(Pode se somar) O direito à compensação pelos danos morais fruto de você ter esse sofrimento, essa dor, essa angústia de estar privado de um serviço essencial, necessário à dignidade na vida urbana, que é a energia elétrica”, explica.
No caso de perdas de alimentos que estragam, equipamentos queimados, ou mesmo prejuízos em decorrência de gastos gerados pelo apagão, como alimentação em restaurantes, o consumidor pode solicitar na Justiça uma indenização por danos materiais. “Se a pessoa faz home office, por exemplo, o dano material é o que você está deixando de ganhar”, diz Silva.
Ele orienta que as pessoas prejudicadas busquem um Juizado Especial Cível próximo de casa e explica que ações de até 20 salários mínimos não necessitam de advogado.
Falta de informação
Professor da Faculdade de Direito da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), Bruno Miragem orienta que os consumidores guardem eventuais provas dos danos materiais sofridos. “Ter consigo eventualmente aparelhos que queimaram, ou comprovantes de despesas que tenham de executar para uma posterior pretensão de indenização contra a concessionária”, diz.
Ele afirma ainda que a conduta da empresa em termos de falta de transparência também pode ser questionada judicialmente. “Há a questão da falta de informações aos consumidores sobre o tempo para religação, o atendimento pelas equipes, ou seja, os canais de comunicação da empresa não estão funcionando. Tudo isso representa violações a direitos do consumidor e que, portanto, podem ser objeto de ações individuais ou de associações representativas dos consumidores”, analisa.
Impactos
Na capital, o apagão atingiu todas as regiões. De acordo com a Prefeitura, foram registradas 386 ocorrências de queda de árvores e galhos.
Entre moradores, há relatos de continuidade falta de energia em diversos bairros, como Interlagos, Santo Amaro, Vila das Mercês, Panamby, Jabaquara, Campo Limpo, Chácara Santo Antônio, Cidade Ademar, Cupecê e Americanópolis, na zona sul, e Alto da Lapa e Pinheiros, na oeste, e Mooca, na leste.
Também há dificuldade para a fluidez do trânsito em trechos da cidade. A Enel não deu um prazo para o religamento total do serviço, mas alguns clientes foram informados de que a luz só será restabelecida na segunda-feira, 14.
A situação também afeta a distribuição de água. Segundo a Sabesp, o abastecimento de água continua prejudicado em parte da Grande São Paulo. “A interrupção do fornecimento de eletricidade afeta o funcionamento de estações elevatórias e boosters, equipamentos que transportam a água para locais mais altos”, justificou em nota.
Distribuidoras vão ‘emprestar’ funcionários à Enel
A Aneel considera a reação da Enel ao apagão que deixou 2,1 milhões de endereços sem luz em São Paulo aquém das expectativas. Na avaliação da agência, os trabalhos de atendimento à população foram, inclusive, mais lentos do que no blecaute de novembro do ano passado, quando mais de 2 milhões de clientes também ficaram no escuro.
À época, segundo a Aneel, a concessionária responsável pelo fornecimento de energia elétrica levou 24 horas para retomar 60% dos consumidores interrompidos. Esse mesmo patamar foi atingido no evento atual somente depois de 42 horas.
A crítica à atuação da Enel foi feita após reunião na noite deste domingo, 13, da Aneel com representantes da Enel SP, Neoenergia Elektro, EDP São Paulo, Energisa Sul-Sudeste, CPFL, Isa Cteep e Eletrobras.
No encontro ficou definido que a Enel vai contar com a ajuda de funcionários de outras distribuidoras do Estado de São Paulo para auxiliar no restabelecimento da energia elétrica. Serão 400 colaboradores “emprestados” das outras empresas para auxiliar no serviço.
A concessionária se comprometeu a aumentar de 1.700 para 2.500 o número total de funcionários em campo. O montante constava no plano de contingências que a própria empresa se comprometeu a disponibilizar em casos de eventos extremos, como o de sexta-feira, quando os ventos na Grande São Paulo superaram os 100 km/h, mas só será efetivado mais de três dias depois do evento.
A Enel, porém, tem ressaltado que estava mais preparada para o evento deste ano em comparação ao de novembro passado, assim como tem reiterado que toma medidas para a modernização da rede. “A distribuidora está comprometida em ir além dos indicadores estabelecidos e segue com um plano estruturado para seguir a trajetória de melhoria contínua dos serviços”, apontou em nota.
A concessionária culpa a magnitude do evento climático extremo pela falta de uma resposta tão ágil. “Estamos com plano de contratação de 1.200 eletricistas próprios para atuarem principalmente em situações de emergência”, disse Guilherme Lencastre, presidente da Enel. A empresa também pretende instalar radares climáticos na cidade na tentativa de se antecipar a novos temporais que possam atingir São Paulo, mas não deu detalhes do plano. / COLABOROU ISABELA MOYA