SÃO PAULO - As duas primeiras passeatas causaram espanto, quando jovens pararam a Avenida Paulista e a Marginal do Pinheiros sem medo do Batalhão de Choque da Polícia Militar. No terceiro protesto, o quebra-quebra dos anarquistas que formavam a tropa de choque dos protestos na Avenida Brigadeiro Luís Antônio e o quase linchamento de um policial causaram indignação. O excesso da reação da PM na quarta passeata, onde sobraram balas e pancadas para todos os lados, levou multidões às ruas nos dois atos seguintes.
Os grupos que tomaram a cidade na terça-feira, 18, sexto dia de protestos, agiam motivados por propósitos distintos. Na Avenida Paulista, estava a maioria dos manifestantes, cerca de 30 mil pessoas, que representavam o lado festivo e pacífico do movimento. Bandeiras do Brasil, símbolos e roupas brancas, verdes e amarelas simbolizavam o ambiente festivo e pacífico, No centro da cidade, os anarquistas urbanos, boa parte deles pichadores, abusaram da destruição de bens públicos e privados na tentativa de pressionar os políticos a ouvir o barulho dos destroços e das bombas nas ruas. A confusão, que durou três horas sem a intervenção da Polícia Militar, abriu espaço para a ação dos saqueadores, que aproveitaram para furtar bens das lojas atacadas.
Pichadores foram protagonistas no quebra-quebra do centro
Enquanto o carro da TV Record pegava fogo na frente da Prefeitura, um jovem com o rosto coberto surpreendeu a todos em um gesto suicida. Subiu na capota do furgão, em meio às labaredas. Ficou cinco segundos, arriscando-se a cozinhar com os braços levantados, e pulou, para escapar e ser aplaudido por cerca de 200 pessoas que participavam ou testemunhavam o quebra-quebra no centro na terça-feira.
A disposição ao risco, a obsessão pelas alturas e a desobediência civil sem escrúpulos revelaram uma massa de anarquistas urbanos que há quase três décadas mantém uma relação de agressividade com a cidade: os pichadores. Na quarta-feira, 19, eles engrossam a massa dos Black Blocks - nome dado ao grupo de pessoas que apostam na destruição de bens materiais como forma de fazer política. Eles integraram a tropa de choque dos protestos pela redução da tarifa, onde a violência acabou tendo papel importante na pressão aos governantes.
"O picho nasceu no movimento punk nos anos 1980 e sempre foi anarquista. O pichador prega a desobediência civil. É (Mikhail) Bacunin (pensador anarquista) na veia", disse um dos pichadores, que pediu para não ser identificado e ajudou articular a participação dos pichadores nos protestos.
Durante as passeatas, os pichadores, que costumam se encontrar em bares vizinhos ao Largo do Paiçandu, vindos principalmente de bairros das periferias da cidade, criaram o movimento Pixo Manifesto Escrito, com página no Facebook em que também defendem a retirada da PEC 37 (que tira poder de investigação dos promotores), a ser votada no Congresso.
Eles picharam as fachadas da Prefeitura, do Teatro Municipal e o monumento do arquiteto Paulo Mendes da Rocha na Praça do Patriarca, além de participarem de depredações e incêndios. Assim como arriscam cotidianamente a vida para revelar o nome de seus grupos em pontes e monumentos, ontem eles subiram pelas paredes da Prefeitura e nas altas estruturas dos monumentos que foram vandalizados. Nos primeiros protestos, picharam dezenas de coletivos.
A intenção era canalizar as energias para ações que fossem além do exibicionismo nas paredes, que costuma motivar a maioria dos integrantes da cena na cidade. Entre as frases pichadas estavam "R$ 3,20 é roubo" e críticas à PEC 37, mas também havia nome de grupos de pichadores de São Paulo, como "Pub Crew, PRT DK e TR Roots", com suas letras rebuscadas que há décadas, juntamente às de outros grupos, espalham-se pelos edifícios.
História. Entre provocações históricas, pichadores já invadiram a Bienal de Artes para atacar obras de artistas e são incisivos na crítica aos grafiteiros que se vendem ao mercado. Atualmente, os mais respeitados são os pichadores que sobem pelo lado de fora dos edifícios para feitos que são considerados mais heroicos quanto mais risco de vida corre o autor. A morte de pichadores que caem dos prédios não é fato incomum no meio.
Apesar da desobediência civil fazer parte do DNA anarquista dos grupos de pichadores, parte deles se assustou com o quebra-quebra de terça-feira. Houve críticas aos grupos que colocaram seus nomes nos monumentos, já que o objetivo era o anonimato para fortalecer as "pautas coletivas".
Também foi criticada por integrantes do grupo a destruição desenfreada das lojas e os saques. "Acho covardia quando não há PM. O nosso papel no enfrentamento com polícia foi fundamental. Sem PM, não tinha graça", disse.
Clima festivo reúne várias tribos na Paulista
Entre estudantes e a PM, a Avenida Paulista vinha sendo o símbolo de resistência do Movimento Passe Livre. Nos últimos dois dias, porém, o lugar antes tomado por mascarados que destruíam agências bancárias e enfrentavam bombas de gás lacrimogêneo transformou-se num imenso bulevar colorido e pacífico, com jovens se vendo e sendo vistos pelas redes sociais enquanto protestam. Bancários engravatados, enfermeiras com bandeiras do Brasil, professores, ativistas de direitos humanos e jovens recém engajados tomaram a via e tentam, de alguma forma, mostrar o clima festivo das manifestações.
Até os mais politizados e os que estavam à frente dos confrontos na semana passada agora se contagiam pelo clima de "jogos universitários" do lugar, onde a cerveja e o violão ditam o embalo da concentração no Masp. "É como se fosse um Facebook de pernas. Todo mundo resolveu ‘postar’ sua indignação na Paulista", resumia na noite de quarta-feira a jovem Renata Guerra dos Santos, de 22 anos, estudante de Ciências Sociais da USP. Ela estava incomodada com a "farofa" que tomava conta da avenida, com pessoas, a seu ver, "pouco conscientes e, no fundo, reacionárias".
Reaça ou de esquerda, a maior parte das 30 mil pessoas que foi à Paulista na terça-feira queria mostrar que a onda de protestos tem o seu "lado do bem". Eles se recusaram a compactuar com o quebra-quebra do centro da cidade e subiram a Rua da Consolação para celebrar em paz.
Como dezenas de outros manifestantes que saíram às ruas a partir de segunda-feira, o bancário Paulo Meira, de 39 anos, que levou o filho de 6 anos nas costas, de cara pintada em verde e amarelo e bandeira do Brasil, era contrário ao protesto na semana passada e condena qualquer ação de vandalismo. "Não vale a pena fazer a cidade parar só pelos R$ 0,20 da tarifa de ônibus. É que agora o protesto é por um Brasil melhor em todos os sentidos. Quero que meu filho viva esse momento", celebrava o bancário.
Também de cara pintada e bandeira nacional, a enfermeira Valéria de Oliveira Radowski, de 42 anos, levava a filha de 12 para ver o protesto. "Ela queria de todo jeito ver a festa aqui na Paulista. Acho importante ajudar a acabar com toda essa corrupção por aí", dizia a enfermeira, cercada por outros médicos e profissionais que trabalham em hospitais da região e resolveram aderir às manifestações.
Grupos de jovens de diferentes classes sociais e que queriam unir protesto e azaração num ambiente de festa eram a maioria na noite de terça-feira na Paulista, ao contrário da semana passada. E os engajados do Passe Livre deram boas-vindas a "mauricinhos" e "coxinhas" de todas as vertentes. "Quanto mais gente, mais poder de negociação para reduzir a tarifa nós vamos ter", argumentava Rodrigo Mazone, de 21 anos.
Por trás dos saques, moradores de rua, viciados e trabalhadores
Os ladrões de ocasião juntaram-se a manifestantes que depredavam lojas para saquear na noite de terça-feira, 18. O resultado foi a destruição de pelo menos 29 estabelecimentos comerciais na região central de São Paulo.
Inicialmente, anarquistas destruíram duas agências bancárias do Itaú. Sem a presença de nenhum policial para coibir a ação criminosa, mesmo a poucos metros da Secretaria de Estado da Segurança Pública, eles passaram a atacar também lojas na Praça do Patriarca. Foi aí que moradores de rua, usuários de drogas e até pessoas que saíam do trabalho no centro aderiram ao grupo para furtar produtos.
Os principais alvos eram eletrodomésticos, como TVs e computadores. De repente, várias pessoas podiam ser vistas carregando caixas de grandes aparelhos televisores. Um usuário de drogas estava oferecendo uma TV de 40 polegadas por R$ 200 em pleno Viaduto do Chá.
No McDonald’s, saqueadores foram cuidadosos e levaram tortas de maçã, em vez de sorvetes, para que não derretessem até chegar em casa. O segurança, sem ter o que fazer, foi obrigado a assistir à cena em silêncio.
"Não filma, não. Não filma, não", repetiam alguns. Outros, porém, entravam nas lojas filmando com os celulares. Alguns vídeos foram parar no YouTube.
Pessoas uniformizadas, que haviam acabado de sair do trabalho, se juntaram ao grupo que assaltava as lojas. "Ai, queria tanto um celular novo", comentou uma jovem que passava pelo local. "Pena que não tenho coragem de roubar", completou. Outros, porém, não viram problema em voltar para casa com produtos furtados.
A reportagem do Estado presenciou meninos de rua saindo com brinquedos e doces das Lojas Americanas da Rua Direita e moradores de rua aproveitando para levar roupas de uma filial das Lojas Marisa.
Um homem de origem andina, que havia poucos minutos estava no prédio da Prefeitura tentando impedir o vandalismo, entrou em uma loja do Boticário e saiu com cremes e xampus.
Um rapaz visivelmente alcoolizado que deixava uma loja com um tablet nas mãos teve dificuldade para descobrir como ligar o aparelho. Outro homem, também embriagado, se esforçava para carregar um monitor de computador.
A Tropa de Choque da Polícia Militar, em pelo menos cinco ônibus, só chegou ao local quando as pessoas que haviam praticado os saques já haviam fugido dos arredores da Rua Barão de Itapetinga
Pela baderna e pelos saques, 61 pessoas foram detidas e encaminhadas para cinco distrito policiais. Muitos eram moradores de rua que não tinham onde esconder os produtos furtados.
Alguns foram recuperados pela polícia, mas a grande maioria se perdeu. O Sindicato das Lojas de São Paulo não soube informar o valor do prejuízo.
Câmera. Os jornalistas também foram vítimas. Na tarde de quarta-feira, 19, a PM flagrou dois homens carregando uma câmera de TV com um símbolo da Rede Record. O aparelho está avaliado em R$ 200 mil. Sem conseguir explicar sua origem, os homens foram levados ao 2.º Distrito Policial (Bom Retiro). Ambos foram presos em flagrante por receptação. Funcionários da emissora foram até a delegacia e reconheceram a câmera, que havia sido roubada na quarta-feira, 19.