Atuação do PCC dificulta avanço de milícias em SP, diz pesquisador americano


Professor de Ciência Política da Universidade de Chicago estuda há uma década o avanço das facções no Brasil e vê diferenças do grupo paulista em comparação ao crime organizado no Rio

Por Ítalo Lo Re
Atualização:
Foto: Benjamin Lessing/Arquivo pessoal
Entrevista comBenjamin Lessingpesquisador da Universidade de Chicago

RECIFE* - A hegemonia do Primeiro Comando da Capital (PCC) em São Paulo dificulta o avanço de milícias pelo Estado nos moldes do que ocorre no Rio de Janeiro, onde a atuação mais beligerante do Comando Vermelho (CV) e de facções menores abriu espaço para que outros grupos avançassem pelo território carioca, inclusive sob a justificativa de prestar proteção à população.

Essa é a avaliação de Benjamin Lessing, professor de Ciência Política da Universidade de Chicago que há pelo menos uma década acompanha o avanço das facções no Brasil e fenômenos criminais em outros países da América Latina, como México, Colômbia e El Salvador.

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“É mais difícil surgir um grupo miliciano em São Paulo, porque o PCC hoje não tem um caráter tirânico, violento e cheio de tiroteios”, afirma ao Estadão. Criada há pouco mais de três décadas por um grupo de oito presos em uma penitenciária de Taubaté, no Vale do Paraíba, a facção parece ter deixado para trás episódios de ataques urbanos, como os ocorridos em 2006 e em 2012 em São Paulo.

Movimentação do fluxo da Cracolândia, no centro de SP; região tem forte influência do PCC. Foto: WERTHER SANTANA/ESTADÃO

Com o tráfico internacional como carro-chefe, o PCC hoje soma mais de 40 mil soldados espalhados por diferentes regiões e é apontado por pesquisadores e autoridades como uma força hegemônica do crime organizado em São Paulo. A facção, considerada ainda a maior do País, investe em uma cadeia sofisticada de envio de cocaína para continentes como a Europa.

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Os lucros chegam a R$ 1 bilhão ao ano, segundo o Ministério Público do Estado de São Paulo (MP-SP). A expressão da facção é tamanha que, como mostrou o Estadão, a Polícia Civil investiga inclusive se antigos aliados do presidente nacional do Partido Renovador Trabalhista Brasileiro (PRTB) e articuladores informais da legenda de Pablo Marçal, candidato à prefeito em São Paulo, trocaram carros de luxo por cocaína para o PCC.

Em paralelo, o Grupo de Atuação Especial de Combate ao Crime Organizado (Gaeco) do MP-SP também deflagrou no começo deste mês uma ação contra agentes da Guarda Civil Metropolitana e da Polícia Militar suspeitos de montar uma milícia para oferecer proteção a comerciantes na Cracolândia, no centro da capital paulista. As corporações dizem colaborar com as investigações.

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Na avaliação de Lessing, trata-se de uma atuação que, a princípio, é pontual. “É bem possível que a milícia se espalhe da mesma forma que as facções se espalharam, é factível, mas até agora não temos notícia disso. De todo modo, é preciso estar alerta do que pode vir a acontecer”, alerta o pesquisador.

Para ele, além da hegemonia do PCC no território paulista, outros fatores dificultam, até o presente momento, o avanço de milícias em São Paulo, como a redução sistemática da letalidade policial. Apesar de altas nos primeiros anos do governo Tarcísio de Freitas (Republicanos), o índice hoje é um dos menores do Brasil, segundo dados reunidos pelo Fórum Brasileiro de Segurança Pública.

Recente operação do Ministério Público e da Polícia Civil buscou enfraquecer o tráfico de drogas na região da Cracolândia. Foto: Tiago Queiroz/Estadão
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Lessing afirma ainda que o Brasil tem passado por um processo de “faccionalização”. Gangues menores, normalmente surgidas nos próprios bairros em que os criminosos atuam, têm perdido cada vez mais espaço ou têm sido absorvidos por organizações criminosas de base prisional, como o PCC, o Comando Vermelho e até grupos considerados menores, como o Terceiro Comando Puro (TCP).

Na entrevista, o pesquisador comenta também sobre o avanço do crime organizado em países como Colômbia e em El Salvador, onde medidas repressivas foram adotadas em larga escala – reportagens recentes do Estadão abordaram os efeitos da adoção por lá do regime de exceção pelo presidente Nayib Bukele. Leia abaixo os principais trechos da entrevista com o pesquisador Benjamin Lessing.

O PCC hoje movimenta R$ 1 bi ao ano, segundo o MP-SP. Já o Comando Vermelho protagoniza cenas de violência não só no Rio, onde disputa territórios, como tem forte presença em regiões como a Norte. Isso sem citar a atuação de facções menores. É o momento mais crítico do crime organizado no Brasil?

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Não sei se dizer se é um momento mais crítico que outros momentos que também se deram nessa história do crime organizado no Brasil. Há momentos decisivos que, muitas vezes, a gente só vai ter dimensão depois. Eu vejo muito mais como um momento em que estamos vendo as consequências de tantos anos de políticas de repressão, que acabaram fortalecendo o crime e que ajudaram a espalhar as facções por todo o Brasil.

O crime organizado está muito enraizado. O Comando Vermelho deu essa ressurgência, que era muito inesperada até por especialistas, e tem se reafirmado de forma muito marcada. Já o PCC tomou outro rumo, mas segue por seus caminhos de crescimento. Movimenta uma “grana” enorme, com tráfico internacional cada vez mais forte. Ainda assim, segue sendo uma facção criminosa no molde brasileiro, centrada no sistema carcerário.

As taxas de homicídio estão em tendência de queda desde 2017, quando ocorreram rebeliões em penitenciárias. Ao mesmo tempo, ataques generalizados, como os ocorridos em São Paulo em 2006 e 2012, ficaram menos frequentes. Ainda com denúncias de infiltração no poder público e de esquemas mais sofisticados de lavagem de dinheiro, há uma espécie de estabilização do crime organizado no Brasil?

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A redução de ataques coordenados de dentro do sistema penitenciário, a exemplo dos ataques de maio de 2006, é uma verdade para o Sudeste. Mas, ao ver uma evolução desse tipo de ataque, fica muito evidente que se espalhou (para outras regiões do Brasil). Enquanto São Paulo foi sendo “pacificado” entre 2010 e 2020, o resto do País foi começando a ter esse tipo de ataque. Primeiro se espalhou para o Sul. Depois, para Norte e Nordeste.

Quase todos os Estados já tiveram esse tipo de ataque e, até pouco tempo, só faltava o Estado do Amazonas, que em 2021 também teve seus ataques coordenados. Hoje em dia quase não existe Estado brasileiro em que não houve episódios parecidos com os ataques de maio (de 2006, em São Paulo). Até fiz um mapeamento, em que criei uma base de dados de 2003 até 2019. Deve sair em um livro que estou para lançar (provavelmente em 2026).

Houve, portanto, uma regionalização do crime no Brasil?

Gosto de distinguir dois movimentos analiticamente. Um primeiro é o que eu chamaria de faccionalização. Antes, o mundo do crime e as periferias eram caracterizadas pela atuação de gangues, bondes ou grupos bem pequenos, com as comunidades periféricas caracterizadas por fronteiras invisíveis e territórios muito pequenos de gangues bem predatórias. Fracas, mas ao mesmo tempo violentas. Gangues que praticam crimes dentro do próprio bairro, que disputam entre si. São criminosas, mas que não têm uma lógica empresarial e muito menos um controle territorial para “governar” uma população civil. No máximo, são predatórios. Em muitas cidades do Nordeste e do Norte, até por volta dos anos 2015, 2016 e 2017, essa era a realidade.

A faccionalização ocorre quando grupos criminosos, quase sempre no Brasil surgidos dentro do sistema carcerário, vão organizando esses grupos locais nas ruas em agrupações maiores. Geralmente, cada comunidade passa a ser dominada por uma facção. E os grupos locais são integrados em um sistema que funciona como uma governança interna da facção. Se for faccionalizado dentro do Comando Vermelho, por exemplo, o “dono” de um local pode até manter sua autonomia relativa, mas ele passa a ser do Comando Vermelho.

A comunidade em si começa a pertencer a uma facção só. Ou, se for um lugar muito grande, como a Maré, há uma divisão. Mas cada parte da Maré pertence a uma facção. Nova Holanda pertence ao Comando Vermelho, por exemplo. Há uma aglutinação. Onde antes havia um monte de gangues, grupos muito pequenos, com identidades locais e atuando em poucos quarteirões, isso passa a ser extinto à força. E a facção “pacifica” internamente a comunidade, manda todo mundo parar de brigar e aquilo tudo vira uma coisa só. O produto final é uma periferia que é dividida entre duas, três ou quatro facções, geralmente.

É um caminho sem volta?

Para mim, essa realidade de faccionalização é uma “rua de mão única”. Não conheço casos de “desfaccionalização”, de voltar para aquele esquema anterior, com um monte de gangues pequenas sem nenhuma organização ou coordenação a partir do sistema carcerário. Isso não existe no Brasil. O Rio começou a ser faccionalizado nos anos 80, São Paulo, a partir dos anos 90, com a chegada do PCC, e daí em frente cada Estado tem a sua história. Alguns antes dos outros, mas agora todos os Estados estão faccionalizados. É um movimento que até agora ninguém conseguiu reverter.

Mesmo em outros países da América Latina?

Geralmente tem sido (um caminho sem volta), porque, uma vez que esses grupos locais estão organizados nesse outro nível, isso potencializa mercados ilícitos. Esses grupos pequenos que antes eram só uma gangue agora fazem parte do tráfico. Tornam-se parte de um sistema de “boca de fumo” que já é mais empresarial, que já gera mais lucro, que já tem sua própria lógica. Ou, em outros casos, são integrados em sistemas de extorsão, com cobranças de taxas de segurança, como no caso de El Salvador, que não tem muito mercado para drogas. E isso ocorre já em uma lógica empresarial também. O que antes era um grupo de cinco ou dez moradores do bairro, roubadores de celular, depois virou um grupo dentro da Mara Salvatrucha (gangue internacional), por exemplo.

Essa faccionalização causa uma série de consequências: unifica o território da favela – com cada comunidade com uma só organização – e pacifica internamente o território e governa aquela área – no intuito de ganhar a lealdade dos moradores para proteger-se da polícia e também para que a polícia não tenha motivo para entrar. Em alguns casos, o que era uma zona hiper violenta passa a ser muito menos violenta.

Isso não ocorreu só em São Paulo. Em João Pessoa, Natal e Fortaleza, por exemplo, há favelas que eram internamente muito violentas e depois passaram a não ter mais homicídios, porque uma facção só domina e manda ninguém mais roubar dentro da favela. A facção, em meio a isso, potencializa a atividade ilícita dentro daquela comunidade. Não vejo muitos casos de reversão desse processo, talvez só em El Salvador, com esse crackdown (repressão) de Bukele, mas é muito cedo para chegar a uma conclusão e também são vários “poréns” na história de El Salvador. Mas talvez ele tenha conseguido quebrar o poder dos faccionados sobre quem está na rua, até porque colocou “todo mundo” preso. Cerca de 2% da população está presa, cerca de três ou quatro vezes a mais que a taxa de encarceramento por aqui (no Brasil), que já é muito alta.

Só para fechar o raciocínio anterior, qual é o segundo movimento que gostaria de distinguir?

A faccionalização é uma coisa, mas outra questão é entender quantas facções há e se estão em guerra ou não. São Paulo tem uma facção basicamente, é um monopólio. O Rio de Janeiro, no momento, tem três ou quatro facções, que geralmente ficam em guerra. Já o Ceará tinha três facções que estavam em guerra e, depois, no início de 2019, fizeram um pacto entre elas, o que gerou uma queda de homicídios. Agora dizem que são sete facções e que estão todas em guerra. E o Ceará teve um nível recorde de homicídios.

A faccionalização em si é uma rua de mão única. Agora, se vão ter três ou cinco facções, além de cisões, fusões e outros movimentos, isso é muito mais variável e imprevisível. São muitas variações de um Estado para o outro, então não dá muito para dizer que estamos caminhando para um mundo em que só há três facções em cada cidade. Em um momento, aparenta que só vão ter duas ou três, mas depois surgem mais. Agora parece que os Amigos dos Amigos (ADA) estão se acabando e que vai ter só Terceiro Comando Puro (TCP) e Comando Vermelho, mas isso pode mudar amanhã. Essas trajetórias de facções individuais e esse contexto se vão ter uma, duas ou mais são muito imprevisíveis. No México, que também estudo, vejo que é muito fácil se perder nessas histórias, que são interessantes, e esquecer que há um movimento mais contínuo, que só tende a ficar mais forte.

Esse processo mais contínuo dificulta o trabalho das forças policiais, até pelo maior nível de inserção que as facções hoje têm em relação a mercados ilícitos e no poder público? Como combater o crime organizado de forma mais eficiente?

Se a faccionalização dificulta o trabalho policial é uma pergunta que tem que ser feita com mais frequência. A maioria de representantes das forças policiais, sejam delegados ou comandantes de batalhões, geralmente adota uma postura de combate ao crime organizado, de embate, enfrentamento. E quando se pergunta qual é a estratégia frente às facções, muitas vezes a resposta é que se pretende acabar com as facções. É uma mentalidade muito focada em combate, em “vencer a guerra”.

Ocorre que a faccionalização dificulta esse tipo de visão. As facções são muito resilientes. Todos os principais líderes de facções estão presos, só o Comando Vermelho tem mais de 200 pessoas no sistema penitenciário federal. O PCC também tem uma série de integrantes encarcerados. Ou seja, são alvo do máximo de isolamento possível e a organização está maior do que nunca, está crescendo e numa nova onda de expansão. Então realmente a faccionalização dificulta o trabalho policial, principalmente se o trabalho policial tentar acabar com a facção. Não estão acabando, e não tem sinal de que vão acabar com facção.

Agora, tem uma dimensão até mais oculta: por que o Comando Vermelho governa favelas do Rio de Janeiro? Por que uma organização que está dedicada ao tráfico de drogas, a gerar lucros ilícitos, vai tomar o trabalho de prover ordem pública para milhões de pessoas e moradores de comunidades no Brasil? As facções governam periferias porque governam sistemas carcerários. Dá muito trabalho, dá trabalho resolver conflito de morador, dá trabalho patrulhar, dá trabalho recuperar (objetos roubos de roubo e furto, como) bicicleta. E governar esses espaços não dá lucro em si. Mas eles fazem isso para que a polícia não entre ou, quando entrar, para que o morador fique mais ao lado do tráfico. Em São Paulo, fica evidente que só tem uma facção que dominou todo o mundo do crime em São Paulo e mandou não matar. E colocou tribunais e uma série de normas não violentas pelo mundo do crime. Hoje em dia se resolve conflito de forma não violenta, em geral.

Isso, no curto prazo, até facilita o trabalho policial. A taxa de homicídio hoje é muito baixa. Mas minha conclusão é que mesmo esse segundo aspecto hoje é uma faca de dois gumes: no Rio, o tráfico governa as favelas. Isso ajuda a polícia a fazer seu trabalho – e a reduzir a insegurança para população –, de alguma forma. Mas as facções empurram o Estado para fora porque fazem o trabalho por ele. É a mesma lógica dentro do sistema carcerário: se o Comando Vermelho governa o pavilhão, a guarda pode ficar do lado de fora. Facilita a vida do guarda, do diretor da prisão, mas o Estado vai perdendo cada vez mais o controle.

Como retomar esse controle? Há modelos adotados em outros países da América Latina que podem funcionar por aqui?

Desconheço exemplos robustos, o que vejo são trade offs (trocas), decisões difíceis. Você quer que as facções fiquem em paz umas com as outras ou em guerra? Você quer que o PCC continue dominando a periferia de São Paulo ou quer arriscar que volte para o cenário de 2001, com muitos homicídios e ciclos de violência? São perguntas muito difíceis de responder. O que acho que talvez está começando a ter é que os Estados estão começando a ser mais estratégicos no sentido de incentivar grupos criminosos a serem menos violentos.

Em vez de o Estado falar que vai acabar com o crime organizado ou que vai acabar com todos, que são propostas irreais, dizer que vai punir as facções por guerrear entre si. É possível que esteja se movendo nessa direção. Não formalmente, mas na prática eu tenho a impressão que os Estados estão entendendo que não vão acabar com essas estruturas, não vão acabar com tráfico de drogas.

E onde entraria a milícia nesse processo de faccionalização? São grupos absorvidos por esse processo ou que ficam à margem?

Considero à parte, por alguns motivos. Primeiro porque a faccionalização obviamente tomou o Brasil por inteiro, ainda que com variações. Comando Vermelho e PCC são diferentes, o que resultou em faccionalizações diferentes. Em São Paulo há um monopólio que nunca existiu no Rio ou, se existiu, acabou muito rápido. Quase tão logo nasce o Comando Vermelho, nasce o Terceiro Comando. E facções se parecem estruturalmente e simbolicamente, ainda que com estatutos diferentes. Da mesma forma que torcidas se parecem, ainda que com hinos e camisas diferentes.

As milícias já são algo diferente, tanto no funcionamento quanto em amplitude. Não houve, até agora, uma “milicialização” do Brasil da mesma forma que houve uma faccionalização. Há milícias no Rio que têm evoluído e estão mudando. É um fenômeno até difícil de se definir: antes, por exemplo, dizia-se que a milícia não deixava o tráfico entrar (em determinada região), mas agora já há narcomilícias. E mesmo milícias que se aliam a facções. Ainda assim, há algumas coisas que definem milícia, como principalmente a conexão com a polícia e com agentes do Estado. Muitas vezes, há ex-policiais ou PMs da ativa envolvidos, além de depender mais de extorsão do que de tráfico de drogas. Também é comum que se apresentem como defensores da comunidade contra o tráfico.

Uma outra característica que constitui o que é uma milícia é essa inserção maior no Estado, mesmo sendo objeto de repressão e investigação pelo Estado. A milícia tem contatos dentro do Estado, uma permeabilidade, que as facções não têm geralmente. Até agora, ainda com relatos de milícia em cidades como Belém ou outros locais, por exemplo, não tenho notícias da expansão do modelo milícia fora do Rio, em escala maior. É bem possível que a milícia se espalhe da mesma forma que as facções se espalharam, é factível, mas até agora não temos notícia disso. De todo modo, é preciso estar alerta do que pode vir a acontecer.

Em São Paulo, houve investigações recentes indicando que guardas e policiais poderiam estar atuando como milícia na região da Cracolândia, no centro. Eles são suspeitos de vender proteção privada para comerciantes da região. Na sua avaliação, portanto, mesmo um caso como esse seria algo mais pontual?

A ideia de vender proteção privada é muito antiga, existe de várias formas ao longo da história. No caso da milícia do Rio, vários fatores favorecem a aparição de um grupo tão robusto. Alguns fatores explicam porque foi só no Rio que esse modelo miliciano prosperou. Primeiro que as facções e o tráfico no Rio já eram tão demonizados, com enfrentamento do Comando Vermelho ao Estado com tiroteios, que isso já abriu espaço para o miliciano se justificar como proteção. Com a alegação de que iria proteger contra o Comando Vermelho e o tráfico. É mais difícil surgir um grupo miliciano em São Paulo porque o PCC hoje não tem um caráter tirânico, violento e cheio de tiroteio. Não é tão fácil demonizar o PCC para justificar uma proteção.

Um segundo fator é que, no Rio, a própria polícia é muito violenta. A polícia mata muito. Também era assim em São Paulo, mas agora já não tanto. E a polícia é muito truculenta, sempre foi muito truculenta com as comunidades. Diante disso, a milícia também protege a comunidade da polícia. Quando tem milícia, não tem tiroteio. Isso porque a polícia não entra em zona de milícia. Então a milícia vende uma proteção do próprio Estado, e esse potencial de proteger comunidades da violência do próprio Estado depende de um Estado muito violento, como o Rio de Janeiro é. Não que outros lugares não sejam, mas tem que ter esse nível de uma polícia muito violenta e níveis de corrupção enraizados.

Um terceiro ingrediente é que no Rio a milícia atua principalmente na zona oeste. Onde tem tráfico de drogas forte tem o Comando Vermelho, como em toda a zona sul do Rio de Janeiro, com Rocinha, Cantagalo, Santa Marta. A milícia só conseguiu dominar áreas com menor densidade populacional. Minha leitura disso é que a milícia só vai funcionar à base de cobrar taxa de segurança em vez de traficar drogas onde o mercado de drogas não é tão forte, onde o potencial de lucro não é tão grande. Talvez seja um pouco dessa conjuntura de coisas que faz com que o modelo milícia tenha crescido, mas não ao ponto de tomar conta de tudo, como eu e outros pesquisadores achávamos que poderia acontecer. Não se enraizou tanto.

Pensando em contexto global, investigações indicam que o PCC tem relações bem estabelecidas com máfias internacionais, como a ‘Ndrangheta, da Calábria. Em 2021, por exemplo, o mafioso Rocco Morabito foi preso em um hotel na Paraíba. No mesmo ano, o PCC entrou na lista de sanções do Tesouro americano. Qual o peso do Brasil e de outras facções brasileiras no mapa global do crime organizado atualmente?

É óbvio que estão tomando cada vez mais espaço e atenção. Isso está virado mais para o PCC, mas também para o Comando Vermelho. Estão entendendo que esses grupos estão chegando a ser transnacionais, com potencial de tráfico internacional de drogas através de fronteiras. Há envios de cocaína do PCC para Europa, que ocorre também por meio da África, e isso está crescendo.

Mas há também outras preocupações. Nos Estados Unidos, fala-se muito do Trem de Aragua, que é um grupo venezuelano que estaria avançando também pelos Estados Unidos. Antes, era o MS-13, de El Salvador. Só que há muita fantasia, o que faz ser um pouco difícil dar uma dimensão real do problema. O que sempre enfatizo é que as facções brasileiras são líderes mundiais em inovação operacional. O PCC é uma organização muito inovadora, e é muito mais extensa em números de membros. São mais de 40 mil batizados. São organizações com estruturas e mecanismos de coesão interna que são extremamente resilientes e adaptáveis. O Comando Vermelho também tem muita gente.

Para mim, muito além de focar se estão traficando drogas para a Europa, se o PCC passou a ser um importante exportador de cocaína, é importante entender estrutura e o funcionamento dessas organizações. Elas são resilientes e com capacidade de sobreviver décadas sem guerras internas, sem rachar no meio, mesmo com todos os líderes em prisão federal. Essa resiliência interna é muito mais interessante, muito mais uma coisa a se ajustar e a estudar. Sua expansão nesses mercados globais é importante, mas não necessariamente é o fato mais importante a ser levado em conta.

Autoridades brasileiras têm sido cada vez mais cobradas por conta do avanço do crime organizado, em meio a investigações sobre o avanço do PCC no financiamento de campanhas e o envolvimento em contratos públicos de empresas de ônibus. Essa tentativa de inserção no Estado também ocorreu em outros países?

É interessante pegar os casos de El Salvador, Medellín e São Paulo, porque eles têm algumas semelhanças e algumas diferenças extremas. Nos três casos, há um grau de organização muito alto nos grupos locais. No caso das maras (gangues criminosas) em El Salvador, entre 2000 e 2010, houve o Plano Mano Dura, jogaram um monte de gente presa. El Salvador, então, passou a ter a maior taxa de encarceramento do mundo e, nesse mesmo tempo, as maras se consolidaram. Isso fortaleceu as lideranças encarceradas, que construíram sistemas de extorsão nas ruas ligados à Mara Salvatrucha e ao M-18 (facção salvadorenha). Era um cenário de guerra entre três ou quatro maras.

Em Medellín, há uma outra história: grupos locais foram mobilizados por organizações mafiosas maiores. Cada uma delas controlava uma série desses grupos locais de cada bairro. Essas máfias entraram em guerra por volta de 2012 e a violência subiu de novo. Houve então uma guerra, que depois se estabilizou. No caso de São Paulo, até 2001 houve um pico de homicídios e um ciclo de violência forte, até que o PCC dominou a periferia e mandou não mais matar.

Nos três casos, houve uma mobilização de grupos locais, um momento de muita violência, mas, depois, há uma espécie de “pacificação”. Em Medellin, praticamente de 2013 para cá é uma diminuição constante de homicídios. Em São Paulo, de 2001 para cá. E, em El Salvador, de 2015 para cá. Por mais que falem que essa pacificação esteja atrelada ao Bukele, que colocou todo mundo preso e teria pacificado o país, a queda não começou em 2022, quando ele fez isso.

Quando se olha os dados, até 2022, os homicídios já haviam caído drasticamente. A maioria da redução ocorreu antes do crackdown. Com o estado de exceção, ele conseguiu reduzir ainda mais, até pela alta de prisões, mas é muito importante levar em conta que, de 2015 a 2022, foram as próprias maras que pacificaram El Salvador. Elas conseguiram fazer pactos entre si e vender essas tréguas aos políticos em troca de benefícios dentro do sistema carcerário. Tinha um sistema de pactos e segredos entre políticos e maras, que começou em 2015. Quando se olha a questão de El Salvador hoje em dia, com o discurso de que Bukele acabou com as maras, é possível dizer que acabou, mesmo. Mas isso é ignorar a parte da história que é chave: antes de fazer o que ele fez, em 2022, as próprias maras conseguiram baixar a violência, em negociação com o governo nos bastidores.

Quais efeitos que essa política mais repressora, permeada de denúncias de abusos, pode ter no longo prazo, quando eventualmente esses grupos se reorganizarem?

Por um lado, todos nós que estudamos segurança pública temos que ser honestos e admitir a possibilidade que esse nível de força repressora realmente consolida-se como uma golpe determinante às maras. E é evidente que as forças do Exército de El Salvador ocuparam as periferias de El Salvador de uma forma que trouxe uma grande melhoria para a população, pelo menos parece. Isso parece que acabou com fronteiras invisíveis, com guerras internas das maras.

Porém, tem que se levar em consideração três pontos fundamentais: primeiro, a redução de violência antecede esse crackdown, com a grande maioria disso ocorrendo através de um regime de pactos celebrados com as maras. Segundo ponto: é muito cedo para saber se realmente funcionou para acabar com as maras. Colocar tanta gente presa, se for olhar a história da América Latina, pode ser um tiro pela culatra. Pode ser que cinco anos depois as facções fiquem mais fortes do que nunca, ocorram ataques nas ruas. Repetidamente se vê que o crackdown, jogar todo mundo preso, faz ressurgir grupos mais fortes que nunca. Só se pode avaliar o crackdown com mais precisão daqui a alguns anos.

E o terceiro ponto: é possível que esse nível de repressão realmente possa ter acabado com esse tipo de grupo criminoso, mas é importante ressaltar que o nível de força que foi usado é fora do Estado democrático de direito. Suspendeu os direitos civis, com o estado de exceção há dois anos. É uma suspensão do Estado democrático de direito. Mesmo se tiver funcionado – e não se tem certeza disso ainda – o custo foram direitos civis: levar gente presa durante dois anos sem avisar a família, sem ter advogado ou direito de receber visitas.

*Repórter viajou ao Recife a convite do Fórum Brasileiro de Segurança Pública

RECIFE* - A hegemonia do Primeiro Comando da Capital (PCC) em São Paulo dificulta o avanço de milícias pelo Estado nos moldes do que ocorre no Rio de Janeiro, onde a atuação mais beligerante do Comando Vermelho (CV) e de facções menores abriu espaço para que outros grupos avançassem pelo território carioca, inclusive sob a justificativa de prestar proteção à população.

Essa é a avaliação de Benjamin Lessing, professor de Ciência Política da Universidade de Chicago que há pelo menos uma década acompanha o avanço das facções no Brasil e fenômenos criminais em outros países da América Latina, como México, Colômbia e El Salvador.

“É mais difícil surgir um grupo miliciano em São Paulo, porque o PCC hoje não tem um caráter tirânico, violento e cheio de tiroteios”, afirma ao Estadão. Criada há pouco mais de três décadas por um grupo de oito presos em uma penitenciária de Taubaté, no Vale do Paraíba, a facção parece ter deixado para trás episódios de ataques urbanos, como os ocorridos em 2006 e em 2012 em São Paulo.

Movimentação do fluxo da Cracolândia, no centro de SP; região tem forte influência do PCC. Foto: WERTHER SANTANA/ESTADÃO

Com o tráfico internacional como carro-chefe, o PCC hoje soma mais de 40 mil soldados espalhados por diferentes regiões e é apontado por pesquisadores e autoridades como uma força hegemônica do crime organizado em São Paulo. A facção, considerada ainda a maior do País, investe em uma cadeia sofisticada de envio de cocaína para continentes como a Europa.

Os lucros chegam a R$ 1 bilhão ao ano, segundo o Ministério Público do Estado de São Paulo (MP-SP). A expressão da facção é tamanha que, como mostrou o Estadão, a Polícia Civil investiga inclusive se antigos aliados do presidente nacional do Partido Renovador Trabalhista Brasileiro (PRTB) e articuladores informais da legenda de Pablo Marçal, candidato à prefeito em São Paulo, trocaram carros de luxo por cocaína para o PCC.

Em paralelo, o Grupo de Atuação Especial de Combate ao Crime Organizado (Gaeco) do MP-SP também deflagrou no começo deste mês uma ação contra agentes da Guarda Civil Metropolitana e da Polícia Militar suspeitos de montar uma milícia para oferecer proteção a comerciantes na Cracolândia, no centro da capital paulista. As corporações dizem colaborar com as investigações.

Na avaliação de Lessing, trata-se de uma atuação que, a princípio, é pontual. “É bem possível que a milícia se espalhe da mesma forma que as facções se espalharam, é factível, mas até agora não temos notícia disso. De todo modo, é preciso estar alerta do que pode vir a acontecer”, alerta o pesquisador.

Para ele, além da hegemonia do PCC no território paulista, outros fatores dificultam, até o presente momento, o avanço de milícias em São Paulo, como a redução sistemática da letalidade policial. Apesar de altas nos primeiros anos do governo Tarcísio de Freitas (Republicanos), o índice hoje é um dos menores do Brasil, segundo dados reunidos pelo Fórum Brasileiro de Segurança Pública.

Recente operação do Ministério Público e da Polícia Civil buscou enfraquecer o tráfico de drogas na região da Cracolândia. Foto: Tiago Queiroz/Estadão

Lessing afirma ainda que o Brasil tem passado por um processo de “faccionalização”. Gangues menores, normalmente surgidas nos próprios bairros em que os criminosos atuam, têm perdido cada vez mais espaço ou têm sido absorvidos por organizações criminosas de base prisional, como o PCC, o Comando Vermelho e até grupos considerados menores, como o Terceiro Comando Puro (TCP).

Na entrevista, o pesquisador comenta também sobre o avanço do crime organizado em países como Colômbia e em El Salvador, onde medidas repressivas foram adotadas em larga escala – reportagens recentes do Estadão abordaram os efeitos da adoção por lá do regime de exceção pelo presidente Nayib Bukele. Leia abaixo os principais trechos da entrevista com o pesquisador Benjamin Lessing.

O PCC hoje movimenta R$ 1 bi ao ano, segundo o MP-SP. Já o Comando Vermelho protagoniza cenas de violência não só no Rio, onde disputa territórios, como tem forte presença em regiões como a Norte. Isso sem citar a atuação de facções menores. É o momento mais crítico do crime organizado no Brasil?

Não sei se dizer se é um momento mais crítico que outros momentos que também se deram nessa história do crime organizado no Brasil. Há momentos decisivos que, muitas vezes, a gente só vai ter dimensão depois. Eu vejo muito mais como um momento em que estamos vendo as consequências de tantos anos de políticas de repressão, que acabaram fortalecendo o crime e que ajudaram a espalhar as facções por todo o Brasil.

O crime organizado está muito enraizado. O Comando Vermelho deu essa ressurgência, que era muito inesperada até por especialistas, e tem se reafirmado de forma muito marcada. Já o PCC tomou outro rumo, mas segue por seus caminhos de crescimento. Movimenta uma “grana” enorme, com tráfico internacional cada vez mais forte. Ainda assim, segue sendo uma facção criminosa no molde brasileiro, centrada no sistema carcerário.

As taxas de homicídio estão em tendência de queda desde 2017, quando ocorreram rebeliões em penitenciárias. Ao mesmo tempo, ataques generalizados, como os ocorridos em São Paulo em 2006 e 2012, ficaram menos frequentes. Ainda com denúncias de infiltração no poder público e de esquemas mais sofisticados de lavagem de dinheiro, há uma espécie de estabilização do crime organizado no Brasil?

A redução de ataques coordenados de dentro do sistema penitenciário, a exemplo dos ataques de maio de 2006, é uma verdade para o Sudeste. Mas, ao ver uma evolução desse tipo de ataque, fica muito evidente que se espalhou (para outras regiões do Brasil). Enquanto São Paulo foi sendo “pacificado” entre 2010 e 2020, o resto do País foi começando a ter esse tipo de ataque. Primeiro se espalhou para o Sul. Depois, para Norte e Nordeste.

Quase todos os Estados já tiveram esse tipo de ataque e, até pouco tempo, só faltava o Estado do Amazonas, que em 2021 também teve seus ataques coordenados. Hoje em dia quase não existe Estado brasileiro em que não houve episódios parecidos com os ataques de maio (de 2006, em São Paulo). Até fiz um mapeamento, em que criei uma base de dados de 2003 até 2019. Deve sair em um livro que estou para lançar (provavelmente em 2026).

Houve, portanto, uma regionalização do crime no Brasil?

Gosto de distinguir dois movimentos analiticamente. Um primeiro é o que eu chamaria de faccionalização. Antes, o mundo do crime e as periferias eram caracterizadas pela atuação de gangues, bondes ou grupos bem pequenos, com as comunidades periféricas caracterizadas por fronteiras invisíveis e territórios muito pequenos de gangues bem predatórias. Fracas, mas ao mesmo tempo violentas. Gangues que praticam crimes dentro do próprio bairro, que disputam entre si. São criminosas, mas que não têm uma lógica empresarial e muito menos um controle territorial para “governar” uma população civil. No máximo, são predatórios. Em muitas cidades do Nordeste e do Norte, até por volta dos anos 2015, 2016 e 2017, essa era a realidade.

A faccionalização ocorre quando grupos criminosos, quase sempre no Brasil surgidos dentro do sistema carcerário, vão organizando esses grupos locais nas ruas em agrupações maiores. Geralmente, cada comunidade passa a ser dominada por uma facção. E os grupos locais são integrados em um sistema que funciona como uma governança interna da facção. Se for faccionalizado dentro do Comando Vermelho, por exemplo, o “dono” de um local pode até manter sua autonomia relativa, mas ele passa a ser do Comando Vermelho.

A comunidade em si começa a pertencer a uma facção só. Ou, se for um lugar muito grande, como a Maré, há uma divisão. Mas cada parte da Maré pertence a uma facção. Nova Holanda pertence ao Comando Vermelho, por exemplo. Há uma aglutinação. Onde antes havia um monte de gangues, grupos muito pequenos, com identidades locais e atuando em poucos quarteirões, isso passa a ser extinto à força. E a facção “pacifica” internamente a comunidade, manda todo mundo parar de brigar e aquilo tudo vira uma coisa só. O produto final é uma periferia que é dividida entre duas, três ou quatro facções, geralmente.

É um caminho sem volta?

Para mim, essa realidade de faccionalização é uma “rua de mão única”. Não conheço casos de “desfaccionalização”, de voltar para aquele esquema anterior, com um monte de gangues pequenas sem nenhuma organização ou coordenação a partir do sistema carcerário. Isso não existe no Brasil. O Rio começou a ser faccionalizado nos anos 80, São Paulo, a partir dos anos 90, com a chegada do PCC, e daí em frente cada Estado tem a sua história. Alguns antes dos outros, mas agora todos os Estados estão faccionalizados. É um movimento que até agora ninguém conseguiu reverter.

Mesmo em outros países da América Latina?

Geralmente tem sido (um caminho sem volta), porque, uma vez que esses grupos locais estão organizados nesse outro nível, isso potencializa mercados ilícitos. Esses grupos pequenos que antes eram só uma gangue agora fazem parte do tráfico. Tornam-se parte de um sistema de “boca de fumo” que já é mais empresarial, que já gera mais lucro, que já tem sua própria lógica. Ou, em outros casos, são integrados em sistemas de extorsão, com cobranças de taxas de segurança, como no caso de El Salvador, que não tem muito mercado para drogas. E isso ocorre já em uma lógica empresarial também. O que antes era um grupo de cinco ou dez moradores do bairro, roubadores de celular, depois virou um grupo dentro da Mara Salvatrucha (gangue internacional), por exemplo.

Essa faccionalização causa uma série de consequências: unifica o território da favela – com cada comunidade com uma só organização – e pacifica internamente o território e governa aquela área – no intuito de ganhar a lealdade dos moradores para proteger-se da polícia e também para que a polícia não tenha motivo para entrar. Em alguns casos, o que era uma zona hiper violenta passa a ser muito menos violenta.

Isso não ocorreu só em São Paulo. Em João Pessoa, Natal e Fortaleza, por exemplo, há favelas que eram internamente muito violentas e depois passaram a não ter mais homicídios, porque uma facção só domina e manda ninguém mais roubar dentro da favela. A facção, em meio a isso, potencializa a atividade ilícita dentro daquela comunidade. Não vejo muitos casos de reversão desse processo, talvez só em El Salvador, com esse crackdown (repressão) de Bukele, mas é muito cedo para chegar a uma conclusão e também são vários “poréns” na história de El Salvador. Mas talvez ele tenha conseguido quebrar o poder dos faccionados sobre quem está na rua, até porque colocou “todo mundo” preso. Cerca de 2% da população está presa, cerca de três ou quatro vezes a mais que a taxa de encarceramento por aqui (no Brasil), que já é muito alta.

Só para fechar o raciocínio anterior, qual é o segundo movimento que gostaria de distinguir?

A faccionalização é uma coisa, mas outra questão é entender quantas facções há e se estão em guerra ou não. São Paulo tem uma facção basicamente, é um monopólio. O Rio de Janeiro, no momento, tem três ou quatro facções, que geralmente ficam em guerra. Já o Ceará tinha três facções que estavam em guerra e, depois, no início de 2019, fizeram um pacto entre elas, o que gerou uma queda de homicídios. Agora dizem que são sete facções e que estão todas em guerra. E o Ceará teve um nível recorde de homicídios.

A faccionalização em si é uma rua de mão única. Agora, se vão ter três ou cinco facções, além de cisões, fusões e outros movimentos, isso é muito mais variável e imprevisível. São muitas variações de um Estado para o outro, então não dá muito para dizer que estamos caminhando para um mundo em que só há três facções em cada cidade. Em um momento, aparenta que só vão ter duas ou três, mas depois surgem mais. Agora parece que os Amigos dos Amigos (ADA) estão se acabando e que vai ter só Terceiro Comando Puro (TCP) e Comando Vermelho, mas isso pode mudar amanhã. Essas trajetórias de facções individuais e esse contexto se vão ter uma, duas ou mais são muito imprevisíveis. No México, que também estudo, vejo que é muito fácil se perder nessas histórias, que são interessantes, e esquecer que há um movimento mais contínuo, que só tende a ficar mais forte.

Esse processo mais contínuo dificulta o trabalho das forças policiais, até pelo maior nível de inserção que as facções hoje têm em relação a mercados ilícitos e no poder público? Como combater o crime organizado de forma mais eficiente?

Se a faccionalização dificulta o trabalho policial é uma pergunta que tem que ser feita com mais frequência. A maioria de representantes das forças policiais, sejam delegados ou comandantes de batalhões, geralmente adota uma postura de combate ao crime organizado, de embate, enfrentamento. E quando se pergunta qual é a estratégia frente às facções, muitas vezes a resposta é que se pretende acabar com as facções. É uma mentalidade muito focada em combate, em “vencer a guerra”.

Ocorre que a faccionalização dificulta esse tipo de visão. As facções são muito resilientes. Todos os principais líderes de facções estão presos, só o Comando Vermelho tem mais de 200 pessoas no sistema penitenciário federal. O PCC também tem uma série de integrantes encarcerados. Ou seja, são alvo do máximo de isolamento possível e a organização está maior do que nunca, está crescendo e numa nova onda de expansão. Então realmente a faccionalização dificulta o trabalho policial, principalmente se o trabalho policial tentar acabar com a facção. Não estão acabando, e não tem sinal de que vão acabar com facção.

Agora, tem uma dimensão até mais oculta: por que o Comando Vermelho governa favelas do Rio de Janeiro? Por que uma organização que está dedicada ao tráfico de drogas, a gerar lucros ilícitos, vai tomar o trabalho de prover ordem pública para milhões de pessoas e moradores de comunidades no Brasil? As facções governam periferias porque governam sistemas carcerários. Dá muito trabalho, dá trabalho resolver conflito de morador, dá trabalho patrulhar, dá trabalho recuperar (objetos roubos de roubo e furto, como) bicicleta. E governar esses espaços não dá lucro em si. Mas eles fazem isso para que a polícia não entre ou, quando entrar, para que o morador fique mais ao lado do tráfico. Em São Paulo, fica evidente que só tem uma facção que dominou todo o mundo do crime em São Paulo e mandou não matar. E colocou tribunais e uma série de normas não violentas pelo mundo do crime. Hoje em dia se resolve conflito de forma não violenta, em geral.

Isso, no curto prazo, até facilita o trabalho policial. A taxa de homicídio hoje é muito baixa. Mas minha conclusão é que mesmo esse segundo aspecto hoje é uma faca de dois gumes: no Rio, o tráfico governa as favelas. Isso ajuda a polícia a fazer seu trabalho – e a reduzir a insegurança para população –, de alguma forma. Mas as facções empurram o Estado para fora porque fazem o trabalho por ele. É a mesma lógica dentro do sistema carcerário: se o Comando Vermelho governa o pavilhão, a guarda pode ficar do lado de fora. Facilita a vida do guarda, do diretor da prisão, mas o Estado vai perdendo cada vez mais o controle.

Como retomar esse controle? Há modelos adotados em outros países da América Latina que podem funcionar por aqui?

Desconheço exemplos robustos, o que vejo são trade offs (trocas), decisões difíceis. Você quer que as facções fiquem em paz umas com as outras ou em guerra? Você quer que o PCC continue dominando a periferia de São Paulo ou quer arriscar que volte para o cenário de 2001, com muitos homicídios e ciclos de violência? São perguntas muito difíceis de responder. O que acho que talvez está começando a ter é que os Estados estão começando a ser mais estratégicos no sentido de incentivar grupos criminosos a serem menos violentos.

Em vez de o Estado falar que vai acabar com o crime organizado ou que vai acabar com todos, que são propostas irreais, dizer que vai punir as facções por guerrear entre si. É possível que esteja se movendo nessa direção. Não formalmente, mas na prática eu tenho a impressão que os Estados estão entendendo que não vão acabar com essas estruturas, não vão acabar com tráfico de drogas.

E onde entraria a milícia nesse processo de faccionalização? São grupos absorvidos por esse processo ou que ficam à margem?

Considero à parte, por alguns motivos. Primeiro porque a faccionalização obviamente tomou o Brasil por inteiro, ainda que com variações. Comando Vermelho e PCC são diferentes, o que resultou em faccionalizações diferentes. Em São Paulo há um monopólio que nunca existiu no Rio ou, se existiu, acabou muito rápido. Quase tão logo nasce o Comando Vermelho, nasce o Terceiro Comando. E facções se parecem estruturalmente e simbolicamente, ainda que com estatutos diferentes. Da mesma forma que torcidas se parecem, ainda que com hinos e camisas diferentes.

As milícias já são algo diferente, tanto no funcionamento quanto em amplitude. Não houve, até agora, uma “milicialização” do Brasil da mesma forma que houve uma faccionalização. Há milícias no Rio que têm evoluído e estão mudando. É um fenômeno até difícil de se definir: antes, por exemplo, dizia-se que a milícia não deixava o tráfico entrar (em determinada região), mas agora já há narcomilícias. E mesmo milícias que se aliam a facções. Ainda assim, há algumas coisas que definem milícia, como principalmente a conexão com a polícia e com agentes do Estado. Muitas vezes, há ex-policiais ou PMs da ativa envolvidos, além de depender mais de extorsão do que de tráfico de drogas. Também é comum que se apresentem como defensores da comunidade contra o tráfico.

Uma outra característica que constitui o que é uma milícia é essa inserção maior no Estado, mesmo sendo objeto de repressão e investigação pelo Estado. A milícia tem contatos dentro do Estado, uma permeabilidade, que as facções não têm geralmente. Até agora, ainda com relatos de milícia em cidades como Belém ou outros locais, por exemplo, não tenho notícias da expansão do modelo milícia fora do Rio, em escala maior. É bem possível que a milícia se espalhe da mesma forma que as facções se espalharam, é factível, mas até agora não temos notícia disso. De todo modo, é preciso estar alerta do que pode vir a acontecer.

Em São Paulo, houve investigações recentes indicando que guardas e policiais poderiam estar atuando como milícia na região da Cracolândia, no centro. Eles são suspeitos de vender proteção privada para comerciantes da região. Na sua avaliação, portanto, mesmo um caso como esse seria algo mais pontual?

A ideia de vender proteção privada é muito antiga, existe de várias formas ao longo da história. No caso da milícia do Rio, vários fatores favorecem a aparição de um grupo tão robusto. Alguns fatores explicam porque foi só no Rio que esse modelo miliciano prosperou. Primeiro que as facções e o tráfico no Rio já eram tão demonizados, com enfrentamento do Comando Vermelho ao Estado com tiroteios, que isso já abriu espaço para o miliciano se justificar como proteção. Com a alegação de que iria proteger contra o Comando Vermelho e o tráfico. É mais difícil surgir um grupo miliciano em São Paulo porque o PCC hoje não tem um caráter tirânico, violento e cheio de tiroteio. Não é tão fácil demonizar o PCC para justificar uma proteção.

Um segundo fator é que, no Rio, a própria polícia é muito violenta. A polícia mata muito. Também era assim em São Paulo, mas agora já não tanto. E a polícia é muito truculenta, sempre foi muito truculenta com as comunidades. Diante disso, a milícia também protege a comunidade da polícia. Quando tem milícia, não tem tiroteio. Isso porque a polícia não entra em zona de milícia. Então a milícia vende uma proteção do próprio Estado, e esse potencial de proteger comunidades da violência do próprio Estado depende de um Estado muito violento, como o Rio de Janeiro é. Não que outros lugares não sejam, mas tem que ter esse nível de uma polícia muito violenta e níveis de corrupção enraizados.

Um terceiro ingrediente é que no Rio a milícia atua principalmente na zona oeste. Onde tem tráfico de drogas forte tem o Comando Vermelho, como em toda a zona sul do Rio de Janeiro, com Rocinha, Cantagalo, Santa Marta. A milícia só conseguiu dominar áreas com menor densidade populacional. Minha leitura disso é que a milícia só vai funcionar à base de cobrar taxa de segurança em vez de traficar drogas onde o mercado de drogas não é tão forte, onde o potencial de lucro não é tão grande. Talvez seja um pouco dessa conjuntura de coisas que faz com que o modelo milícia tenha crescido, mas não ao ponto de tomar conta de tudo, como eu e outros pesquisadores achávamos que poderia acontecer. Não se enraizou tanto.

Pensando em contexto global, investigações indicam que o PCC tem relações bem estabelecidas com máfias internacionais, como a ‘Ndrangheta, da Calábria. Em 2021, por exemplo, o mafioso Rocco Morabito foi preso em um hotel na Paraíba. No mesmo ano, o PCC entrou na lista de sanções do Tesouro americano. Qual o peso do Brasil e de outras facções brasileiras no mapa global do crime organizado atualmente?

É óbvio que estão tomando cada vez mais espaço e atenção. Isso está virado mais para o PCC, mas também para o Comando Vermelho. Estão entendendo que esses grupos estão chegando a ser transnacionais, com potencial de tráfico internacional de drogas através de fronteiras. Há envios de cocaína do PCC para Europa, que ocorre também por meio da África, e isso está crescendo.

Mas há também outras preocupações. Nos Estados Unidos, fala-se muito do Trem de Aragua, que é um grupo venezuelano que estaria avançando também pelos Estados Unidos. Antes, era o MS-13, de El Salvador. Só que há muita fantasia, o que faz ser um pouco difícil dar uma dimensão real do problema. O que sempre enfatizo é que as facções brasileiras são líderes mundiais em inovação operacional. O PCC é uma organização muito inovadora, e é muito mais extensa em números de membros. São mais de 40 mil batizados. São organizações com estruturas e mecanismos de coesão interna que são extremamente resilientes e adaptáveis. O Comando Vermelho também tem muita gente.

Para mim, muito além de focar se estão traficando drogas para a Europa, se o PCC passou a ser um importante exportador de cocaína, é importante entender estrutura e o funcionamento dessas organizações. Elas são resilientes e com capacidade de sobreviver décadas sem guerras internas, sem rachar no meio, mesmo com todos os líderes em prisão federal. Essa resiliência interna é muito mais interessante, muito mais uma coisa a se ajustar e a estudar. Sua expansão nesses mercados globais é importante, mas não necessariamente é o fato mais importante a ser levado em conta.

Autoridades brasileiras têm sido cada vez mais cobradas por conta do avanço do crime organizado, em meio a investigações sobre o avanço do PCC no financiamento de campanhas e o envolvimento em contratos públicos de empresas de ônibus. Essa tentativa de inserção no Estado também ocorreu em outros países?

É interessante pegar os casos de El Salvador, Medellín e São Paulo, porque eles têm algumas semelhanças e algumas diferenças extremas. Nos três casos, há um grau de organização muito alto nos grupos locais. No caso das maras (gangues criminosas) em El Salvador, entre 2000 e 2010, houve o Plano Mano Dura, jogaram um monte de gente presa. El Salvador, então, passou a ter a maior taxa de encarceramento do mundo e, nesse mesmo tempo, as maras se consolidaram. Isso fortaleceu as lideranças encarceradas, que construíram sistemas de extorsão nas ruas ligados à Mara Salvatrucha e ao M-18 (facção salvadorenha). Era um cenário de guerra entre três ou quatro maras.

Em Medellín, há uma outra história: grupos locais foram mobilizados por organizações mafiosas maiores. Cada uma delas controlava uma série desses grupos locais de cada bairro. Essas máfias entraram em guerra por volta de 2012 e a violência subiu de novo. Houve então uma guerra, que depois se estabilizou. No caso de São Paulo, até 2001 houve um pico de homicídios e um ciclo de violência forte, até que o PCC dominou a periferia e mandou não mais matar.

Nos três casos, houve uma mobilização de grupos locais, um momento de muita violência, mas, depois, há uma espécie de “pacificação”. Em Medellin, praticamente de 2013 para cá é uma diminuição constante de homicídios. Em São Paulo, de 2001 para cá. E, em El Salvador, de 2015 para cá. Por mais que falem que essa pacificação esteja atrelada ao Bukele, que colocou todo mundo preso e teria pacificado o país, a queda não começou em 2022, quando ele fez isso.

Quando se olha os dados, até 2022, os homicídios já haviam caído drasticamente. A maioria da redução ocorreu antes do crackdown. Com o estado de exceção, ele conseguiu reduzir ainda mais, até pela alta de prisões, mas é muito importante levar em conta que, de 2015 a 2022, foram as próprias maras que pacificaram El Salvador. Elas conseguiram fazer pactos entre si e vender essas tréguas aos políticos em troca de benefícios dentro do sistema carcerário. Tinha um sistema de pactos e segredos entre políticos e maras, que começou em 2015. Quando se olha a questão de El Salvador hoje em dia, com o discurso de que Bukele acabou com as maras, é possível dizer que acabou, mesmo. Mas isso é ignorar a parte da história que é chave: antes de fazer o que ele fez, em 2022, as próprias maras conseguiram baixar a violência, em negociação com o governo nos bastidores.

Quais efeitos que essa política mais repressora, permeada de denúncias de abusos, pode ter no longo prazo, quando eventualmente esses grupos se reorganizarem?

Por um lado, todos nós que estudamos segurança pública temos que ser honestos e admitir a possibilidade que esse nível de força repressora realmente consolida-se como uma golpe determinante às maras. E é evidente que as forças do Exército de El Salvador ocuparam as periferias de El Salvador de uma forma que trouxe uma grande melhoria para a população, pelo menos parece. Isso parece que acabou com fronteiras invisíveis, com guerras internas das maras.

Porém, tem que se levar em consideração três pontos fundamentais: primeiro, a redução de violência antecede esse crackdown, com a grande maioria disso ocorrendo através de um regime de pactos celebrados com as maras. Segundo ponto: é muito cedo para saber se realmente funcionou para acabar com as maras. Colocar tanta gente presa, se for olhar a história da América Latina, pode ser um tiro pela culatra. Pode ser que cinco anos depois as facções fiquem mais fortes do que nunca, ocorram ataques nas ruas. Repetidamente se vê que o crackdown, jogar todo mundo preso, faz ressurgir grupos mais fortes que nunca. Só se pode avaliar o crackdown com mais precisão daqui a alguns anos.

E o terceiro ponto: é possível que esse nível de repressão realmente possa ter acabado com esse tipo de grupo criminoso, mas é importante ressaltar que o nível de força que foi usado é fora do Estado democrático de direito. Suspendeu os direitos civis, com o estado de exceção há dois anos. É uma suspensão do Estado democrático de direito. Mesmo se tiver funcionado – e não se tem certeza disso ainda – o custo foram direitos civis: levar gente presa durante dois anos sem avisar a família, sem ter advogado ou direito de receber visitas.

*Repórter viajou ao Recife a convite do Fórum Brasileiro de Segurança Pública

RECIFE* - A hegemonia do Primeiro Comando da Capital (PCC) em São Paulo dificulta o avanço de milícias pelo Estado nos moldes do que ocorre no Rio de Janeiro, onde a atuação mais beligerante do Comando Vermelho (CV) e de facções menores abriu espaço para que outros grupos avançassem pelo território carioca, inclusive sob a justificativa de prestar proteção à população.

Essa é a avaliação de Benjamin Lessing, professor de Ciência Política da Universidade de Chicago que há pelo menos uma década acompanha o avanço das facções no Brasil e fenômenos criminais em outros países da América Latina, como México, Colômbia e El Salvador.

“É mais difícil surgir um grupo miliciano em São Paulo, porque o PCC hoje não tem um caráter tirânico, violento e cheio de tiroteios”, afirma ao Estadão. Criada há pouco mais de três décadas por um grupo de oito presos em uma penitenciária de Taubaté, no Vale do Paraíba, a facção parece ter deixado para trás episódios de ataques urbanos, como os ocorridos em 2006 e em 2012 em São Paulo.

Movimentação do fluxo da Cracolândia, no centro de SP; região tem forte influência do PCC. Foto: WERTHER SANTANA/ESTADÃO

Com o tráfico internacional como carro-chefe, o PCC hoje soma mais de 40 mil soldados espalhados por diferentes regiões e é apontado por pesquisadores e autoridades como uma força hegemônica do crime organizado em São Paulo. A facção, considerada ainda a maior do País, investe em uma cadeia sofisticada de envio de cocaína para continentes como a Europa.

Os lucros chegam a R$ 1 bilhão ao ano, segundo o Ministério Público do Estado de São Paulo (MP-SP). A expressão da facção é tamanha que, como mostrou o Estadão, a Polícia Civil investiga inclusive se antigos aliados do presidente nacional do Partido Renovador Trabalhista Brasileiro (PRTB) e articuladores informais da legenda de Pablo Marçal, candidato à prefeito em São Paulo, trocaram carros de luxo por cocaína para o PCC.

Em paralelo, o Grupo de Atuação Especial de Combate ao Crime Organizado (Gaeco) do MP-SP também deflagrou no começo deste mês uma ação contra agentes da Guarda Civil Metropolitana e da Polícia Militar suspeitos de montar uma milícia para oferecer proteção a comerciantes na Cracolândia, no centro da capital paulista. As corporações dizem colaborar com as investigações.

Na avaliação de Lessing, trata-se de uma atuação que, a princípio, é pontual. “É bem possível que a milícia se espalhe da mesma forma que as facções se espalharam, é factível, mas até agora não temos notícia disso. De todo modo, é preciso estar alerta do que pode vir a acontecer”, alerta o pesquisador.

Para ele, além da hegemonia do PCC no território paulista, outros fatores dificultam, até o presente momento, o avanço de milícias em São Paulo, como a redução sistemática da letalidade policial. Apesar de altas nos primeiros anos do governo Tarcísio de Freitas (Republicanos), o índice hoje é um dos menores do Brasil, segundo dados reunidos pelo Fórum Brasileiro de Segurança Pública.

Recente operação do Ministério Público e da Polícia Civil buscou enfraquecer o tráfico de drogas na região da Cracolândia. Foto: Tiago Queiroz/Estadão

Lessing afirma ainda que o Brasil tem passado por um processo de “faccionalização”. Gangues menores, normalmente surgidas nos próprios bairros em que os criminosos atuam, têm perdido cada vez mais espaço ou têm sido absorvidos por organizações criminosas de base prisional, como o PCC, o Comando Vermelho e até grupos considerados menores, como o Terceiro Comando Puro (TCP).

Na entrevista, o pesquisador comenta também sobre o avanço do crime organizado em países como Colômbia e em El Salvador, onde medidas repressivas foram adotadas em larga escala – reportagens recentes do Estadão abordaram os efeitos da adoção por lá do regime de exceção pelo presidente Nayib Bukele. Leia abaixo os principais trechos da entrevista com o pesquisador Benjamin Lessing.

O PCC hoje movimenta R$ 1 bi ao ano, segundo o MP-SP. Já o Comando Vermelho protagoniza cenas de violência não só no Rio, onde disputa territórios, como tem forte presença em regiões como a Norte. Isso sem citar a atuação de facções menores. É o momento mais crítico do crime organizado no Brasil?

Não sei se dizer se é um momento mais crítico que outros momentos que também se deram nessa história do crime organizado no Brasil. Há momentos decisivos que, muitas vezes, a gente só vai ter dimensão depois. Eu vejo muito mais como um momento em que estamos vendo as consequências de tantos anos de políticas de repressão, que acabaram fortalecendo o crime e que ajudaram a espalhar as facções por todo o Brasil.

O crime organizado está muito enraizado. O Comando Vermelho deu essa ressurgência, que era muito inesperada até por especialistas, e tem se reafirmado de forma muito marcada. Já o PCC tomou outro rumo, mas segue por seus caminhos de crescimento. Movimenta uma “grana” enorme, com tráfico internacional cada vez mais forte. Ainda assim, segue sendo uma facção criminosa no molde brasileiro, centrada no sistema carcerário.

As taxas de homicídio estão em tendência de queda desde 2017, quando ocorreram rebeliões em penitenciárias. Ao mesmo tempo, ataques generalizados, como os ocorridos em São Paulo em 2006 e 2012, ficaram menos frequentes. Ainda com denúncias de infiltração no poder público e de esquemas mais sofisticados de lavagem de dinheiro, há uma espécie de estabilização do crime organizado no Brasil?

A redução de ataques coordenados de dentro do sistema penitenciário, a exemplo dos ataques de maio de 2006, é uma verdade para o Sudeste. Mas, ao ver uma evolução desse tipo de ataque, fica muito evidente que se espalhou (para outras regiões do Brasil). Enquanto São Paulo foi sendo “pacificado” entre 2010 e 2020, o resto do País foi começando a ter esse tipo de ataque. Primeiro se espalhou para o Sul. Depois, para Norte e Nordeste.

Quase todos os Estados já tiveram esse tipo de ataque e, até pouco tempo, só faltava o Estado do Amazonas, que em 2021 também teve seus ataques coordenados. Hoje em dia quase não existe Estado brasileiro em que não houve episódios parecidos com os ataques de maio (de 2006, em São Paulo). Até fiz um mapeamento, em que criei uma base de dados de 2003 até 2019. Deve sair em um livro que estou para lançar (provavelmente em 2026).

Houve, portanto, uma regionalização do crime no Brasil?

Gosto de distinguir dois movimentos analiticamente. Um primeiro é o que eu chamaria de faccionalização. Antes, o mundo do crime e as periferias eram caracterizadas pela atuação de gangues, bondes ou grupos bem pequenos, com as comunidades periféricas caracterizadas por fronteiras invisíveis e territórios muito pequenos de gangues bem predatórias. Fracas, mas ao mesmo tempo violentas. Gangues que praticam crimes dentro do próprio bairro, que disputam entre si. São criminosas, mas que não têm uma lógica empresarial e muito menos um controle territorial para “governar” uma população civil. No máximo, são predatórios. Em muitas cidades do Nordeste e do Norte, até por volta dos anos 2015, 2016 e 2017, essa era a realidade.

A faccionalização ocorre quando grupos criminosos, quase sempre no Brasil surgidos dentro do sistema carcerário, vão organizando esses grupos locais nas ruas em agrupações maiores. Geralmente, cada comunidade passa a ser dominada por uma facção. E os grupos locais são integrados em um sistema que funciona como uma governança interna da facção. Se for faccionalizado dentro do Comando Vermelho, por exemplo, o “dono” de um local pode até manter sua autonomia relativa, mas ele passa a ser do Comando Vermelho.

A comunidade em si começa a pertencer a uma facção só. Ou, se for um lugar muito grande, como a Maré, há uma divisão. Mas cada parte da Maré pertence a uma facção. Nova Holanda pertence ao Comando Vermelho, por exemplo. Há uma aglutinação. Onde antes havia um monte de gangues, grupos muito pequenos, com identidades locais e atuando em poucos quarteirões, isso passa a ser extinto à força. E a facção “pacifica” internamente a comunidade, manda todo mundo parar de brigar e aquilo tudo vira uma coisa só. O produto final é uma periferia que é dividida entre duas, três ou quatro facções, geralmente.

É um caminho sem volta?

Para mim, essa realidade de faccionalização é uma “rua de mão única”. Não conheço casos de “desfaccionalização”, de voltar para aquele esquema anterior, com um monte de gangues pequenas sem nenhuma organização ou coordenação a partir do sistema carcerário. Isso não existe no Brasil. O Rio começou a ser faccionalizado nos anos 80, São Paulo, a partir dos anos 90, com a chegada do PCC, e daí em frente cada Estado tem a sua história. Alguns antes dos outros, mas agora todos os Estados estão faccionalizados. É um movimento que até agora ninguém conseguiu reverter.

Mesmo em outros países da América Latina?

Geralmente tem sido (um caminho sem volta), porque, uma vez que esses grupos locais estão organizados nesse outro nível, isso potencializa mercados ilícitos. Esses grupos pequenos que antes eram só uma gangue agora fazem parte do tráfico. Tornam-se parte de um sistema de “boca de fumo” que já é mais empresarial, que já gera mais lucro, que já tem sua própria lógica. Ou, em outros casos, são integrados em sistemas de extorsão, com cobranças de taxas de segurança, como no caso de El Salvador, que não tem muito mercado para drogas. E isso ocorre já em uma lógica empresarial também. O que antes era um grupo de cinco ou dez moradores do bairro, roubadores de celular, depois virou um grupo dentro da Mara Salvatrucha (gangue internacional), por exemplo.

Essa faccionalização causa uma série de consequências: unifica o território da favela – com cada comunidade com uma só organização – e pacifica internamente o território e governa aquela área – no intuito de ganhar a lealdade dos moradores para proteger-se da polícia e também para que a polícia não tenha motivo para entrar. Em alguns casos, o que era uma zona hiper violenta passa a ser muito menos violenta.

Isso não ocorreu só em São Paulo. Em João Pessoa, Natal e Fortaleza, por exemplo, há favelas que eram internamente muito violentas e depois passaram a não ter mais homicídios, porque uma facção só domina e manda ninguém mais roubar dentro da favela. A facção, em meio a isso, potencializa a atividade ilícita dentro daquela comunidade. Não vejo muitos casos de reversão desse processo, talvez só em El Salvador, com esse crackdown (repressão) de Bukele, mas é muito cedo para chegar a uma conclusão e também são vários “poréns” na história de El Salvador. Mas talvez ele tenha conseguido quebrar o poder dos faccionados sobre quem está na rua, até porque colocou “todo mundo” preso. Cerca de 2% da população está presa, cerca de três ou quatro vezes a mais que a taxa de encarceramento por aqui (no Brasil), que já é muito alta.

Só para fechar o raciocínio anterior, qual é o segundo movimento que gostaria de distinguir?

A faccionalização é uma coisa, mas outra questão é entender quantas facções há e se estão em guerra ou não. São Paulo tem uma facção basicamente, é um monopólio. O Rio de Janeiro, no momento, tem três ou quatro facções, que geralmente ficam em guerra. Já o Ceará tinha três facções que estavam em guerra e, depois, no início de 2019, fizeram um pacto entre elas, o que gerou uma queda de homicídios. Agora dizem que são sete facções e que estão todas em guerra. E o Ceará teve um nível recorde de homicídios.

A faccionalização em si é uma rua de mão única. Agora, se vão ter três ou cinco facções, além de cisões, fusões e outros movimentos, isso é muito mais variável e imprevisível. São muitas variações de um Estado para o outro, então não dá muito para dizer que estamos caminhando para um mundo em que só há três facções em cada cidade. Em um momento, aparenta que só vão ter duas ou três, mas depois surgem mais. Agora parece que os Amigos dos Amigos (ADA) estão se acabando e que vai ter só Terceiro Comando Puro (TCP) e Comando Vermelho, mas isso pode mudar amanhã. Essas trajetórias de facções individuais e esse contexto se vão ter uma, duas ou mais são muito imprevisíveis. No México, que também estudo, vejo que é muito fácil se perder nessas histórias, que são interessantes, e esquecer que há um movimento mais contínuo, que só tende a ficar mais forte.

Esse processo mais contínuo dificulta o trabalho das forças policiais, até pelo maior nível de inserção que as facções hoje têm em relação a mercados ilícitos e no poder público? Como combater o crime organizado de forma mais eficiente?

Se a faccionalização dificulta o trabalho policial é uma pergunta que tem que ser feita com mais frequência. A maioria de representantes das forças policiais, sejam delegados ou comandantes de batalhões, geralmente adota uma postura de combate ao crime organizado, de embate, enfrentamento. E quando se pergunta qual é a estratégia frente às facções, muitas vezes a resposta é que se pretende acabar com as facções. É uma mentalidade muito focada em combate, em “vencer a guerra”.

Ocorre que a faccionalização dificulta esse tipo de visão. As facções são muito resilientes. Todos os principais líderes de facções estão presos, só o Comando Vermelho tem mais de 200 pessoas no sistema penitenciário federal. O PCC também tem uma série de integrantes encarcerados. Ou seja, são alvo do máximo de isolamento possível e a organização está maior do que nunca, está crescendo e numa nova onda de expansão. Então realmente a faccionalização dificulta o trabalho policial, principalmente se o trabalho policial tentar acabar com a facção. Não estão acabando, e não tem sinal de que vão acabar com facção.

Agora, tem uma dimensão até mais oculta: por que o Comando Vermelho governa favelas do Rio de Janeiro? Por que uma organização que está dedicada ao tráfico de drogas, a gerar lucros ilícitos, vai tomar o trabalho de prover ordem pública para milhões de pessoas e moradores de comunidades no Brasil? As facções governam periferias porque governam sistemas carcerários. Dá muito trabalho, dá trabalho resolver conflito de morador, dá trabalho patrulhar, dá trabalho recuperar (objetos roubos de roubo e furto, como) bicicleta. E governar esses espaços não dá lucro em si. Mas eles fazem isso para que a polícia não entre ou, quando entrar, para que o morador fique mais ao lado do tráfico. Em São Paulo, fica evidente que só tem uma facção que dominou todo o mundo do crime em São Paulo e mandou não matar. E colocou tribunais e uma série de normas não violentas pelo mundo do crime. Hoje em dia se resolve conflito de forma não violenta, em geral.

Isso, no curto prazo, até facilita o trabalho policial. A taxa de homicídio hoje é muito baixa. Mas minha conclusão é que mesmo esse segundo aspecto hoje é uma faca de dois gumes: no Rio, o tráfico governa as favelas. Isso ajuda a polícia a fazer seu trabalho – e a reduzir a insegurança para população –, de alguma forma. Mas as facções empurram o Estado para fora porque fazem o trabalho por ele. É a mesma lógica dentro do sistema carcerário: se o Comando Vermelho governa o pavilhão, a guarda pode ficar do lado de fora. Facilita a vida do guarda, do diretor da prisão, mas o Estado vai perdendo cada vez mais o controle.

Como retomar esse controle? Há modelos adotados em outros países da América Latina que podem funcionar por aqui?

Desconheço exemplos robustos, o que vejo são trade offs (trocas), decisões difíceis. Você quer que as facções fiquem em paz umas com as outras ou em guerra? Você quer que o PCC continue dominando a periferia de São Paulo ou quer arriscar que volte para o cenário de 2001, com muitos homicídios e ciclos de violência? São perguntas muito difíceis de responder. O que acho que talvez está começando a ter é que os Estados estão começando a ser mais estratégicos no sentido de incentivar grupos criminosos a serem menos violentos.

Em vez de o Estado falar que vai acabar com o crime organizado ou que vai acabar com todos, que são propostas irreais, dizer que vai punir as facções por guerrear entre si. É possível que esteja se movendo nessa direção. Não formalmente, mas na prática eu tenho a impressão que os Estados estão entendendo que não vão acabar com essas estruturas, não vão acabar com tráfico de drogas.

E onde entraria a milícia nesse processo de faccionalização? São grupos absorvidos por esse processo ou que ficam à margem?

Considero à parte, por alguns motivos. Primeiro porque a faccionalização obviamente tomou o Brasil por inteiro, ainda que com variações. Comando Vermelho e PCC são diferentes, o que resultou em faccionalizações diferentes. Em São Paulo há um monopólio que nunca existiu no Rio ou, se existiu, acabou muito rápido. Quase tão logo nasce o Comando Vermelho, nasce o Terceiro Comando. E facções se parecem estruturalmente e simbolicamente, ainda que com estatutos diferentes. Da mesma forma que torcidas se parecem, ainda que com hinos e camisas diferentes.

As milícias já são algo diferente, tanto no funcionamento quanto em amplitude. Não houve, até agora, uma “milicialização” do Brasil da mesma forma que houve uma faccionalização. Há milícias no Rio que têm evoluído e estão mudando. É um fenômeno até difícil de se definir: antes, por exemplo, dizia-se que a milícia não deixava o tráfico entrar (em determinada região), mas agora já há narcomilícias. E mesmo milícias que se aliam a facções. Ainda assim, há algumas coisas que definem milícia, como principalmente a conexão com a polícia e com agentes do Estado. Muitas vezes, há ex-policiais ou PMs da ativa envolvidos, além de depender mais de extorsão do que de tráfico de drogas. Também é comum que se apresentem como defensores da comunidade contra o tráfico.

Uma outra característica que constitui o que é uma milícia é essa inserção maior no Estado, mesmo sendo objeto de repressão e investigação pelo Estado. A milícia tem contatos dentro do Estado, uma permeabilidade, que as facções não têm geralmente. Até agora, ainda com relatos de milícia em cidades como Belém ou outros locais, por exemplo, não tenho notícias da expansão do modelo milícia fora do Rio, em escala maior. É bem possível que a milícia se espalhe da mesma forma que as facções se espalharam, é factível, mas até agora não temos notícia disso. De todo modo, é preciso estar alerta do que pode vir a acontecer.

Em São Paulo, houve investigações recentes indicando que guardas e policiais poderiam estar atuando como milícia na região da Cracolândia, no centro. Eles são suspeitos de vender proteção privada para comerciantes da região. Na sua avaliação, portanto, mesmo um caso como esse seria algo mais pontual?

A ideia de vender proteção privada é muito antiga, existe de várias formas ao longo da história. No caso da milícia do Rio, vários fatores favorecem a aparição de um grupo tão robusto. Alguns fatores explicam porque foi só no Rio que esse modelo miliciano prosperou. Primeiro que as facções e o tráfico no Rio já eram tão demonizados, com enfrentamento do Comando Vermelho ao Estado com tiroteios, que isso já abriu espaço para o miliciano se justificar como proteção. Com a alegação de que iria proteger contra o Comando Vermelho e o tráfico. É mais difícil surgir um grupo miliciano em São Paulo porque o PCC hoje não tem um caráter tirânico, violento e cheio de tiroteio. Não é tão fácil demonizar o PCC para justificar uma proteção.

Um segundo fator é que, no Rio, a própria polícia é muito violenta. A polícia mata muito. Também era assim em São Paulo, mas agora já não tanto. E a polícia é muito truculenta, sempre foi muito truculenta com as comunidades. Diante disso, a milícia também protege a comunidade da polícia. Quando tem milícia, não tem tiroteio. Isso porque a polícia não entra em zona de milícia. Então a milícia vende uma proteção do próprio Estado, e esse potencial de proteger comunidades da violência do próprio Estado depende de um Estado muito violento, como o Rio de Janeiro é. Não que outros lugares não sejam, mas tem que ter esse nível de uma polícia muito violenta e níveis de corrupção enraizados.

Um terceiro ingrediente é que no Rio a milícia atua principalmente na zona oeste. Onde tem tráfico de drogas forte tem o Comando Vermelho, como em toda a zona sul do Rio de Janeiro, com Rocinha, Cantagalo, Santa Marta. A milícia só conseguiu dominar áreas com menor densidade populacional. Minha leitura disso é que a milícia só vai funcionar à base de cobrar taxa de segurança em vez de traficar drogas onde o mercado de drogas não é tão forte, onde o potencial de lucro não é tão grande. Talvez seja um pouco dessa conjuntura de coisas que faz com que o modelo milícia tenha crescido, mas não ao ponto de tomar conta de tudo, como eu e outros pesquisadores achávamos que poderia acontecer. Não se enraizou tanto.

Pensando em contexto global, investigações indicam que o PCC tem relações bem estabelecidas com máfias internacionais, como a ‘Ndrangheta, da Calábria. Em 2021, por exemplo, o mafioso Rocco Morabito foi preso em um hotel na Paraíba. No mesmo ano, o PCC entrou na lista de sanções do Tesouro americano. Qual o peso do Brasil e de outras facções brasileiras no mapa global do crime organizado atualmente?

É óbvio que estão tomando cada vez mais espaço e atenção. Isso está virado mais para o PCC, mas também para o Comando Vermelho. Estão entendendo que esses grupos estão chegando a ser transnacionais, com potencial de tráfico internacional de drogas através de fronteiras. Há envios de cocaína do PCC para Europa, que ocorre também por meio da África, e isso está crescendo.

Mas há também outras preocupações. Nos Estados Unidos, fala-se muito do Trem de Aragua, que é um grupo venezuelano que estaria avançando também pelos Estados Unidos. Antes, era o MS-13, de El Salvador. Só que há muita fantasia, o que faz ser um pouco difícil dar uma dimensão real do problema. O que sempre enfatizo é que as facções brasileiras são líderes mundiais em inovação operacional. O PCC é uma organização muito inovadora, e é muito mais extensa em números de membros. São mais de 40 mil batizados. São organizações com estruturas e mecanismos de coesão interna que são extremamente resilientes e adaptáveis. O Comando Vermelho também tem muita gente.

Para mim, muito além de focar se estão traficando drogas para a Europa, se o PCC passou a ser um importante exportador de cocaína, é importante entender estrutura e o funcionamento dessas organizações. Elas são resilientes e com capacidade de sobreviver décadas sem guerras internas, sem rachar no meio, mesmo com todos os líderes em prisão federal. Essa resiliência interna é muito mais interessante, muito mais uma coisa a se ajustar e a estudar. Sua expansão nesses mercados globais é importante, mas não necessariamente é o fato mais importante a ser levado em conta.

Autoridades brasileiras têm sido cada vez mais cobradas por conta do avanço do crime organizado, em meio a investigações sobre o avanço do PCC no financiamento de campanhas e o envolvimento em contratos públicos de empresas de ônibus. Essa tentativa de inserção no Estado também ocorreu em outros países?

É interessante pegar os casos de El Salvador, Medellín e São Paulo, porque eles têm algumas semelhanças e algumas diferenças extremas. Nos três casos, há um grau de organização muito alto nos grupos locais. No caso das maras (gangues criminosas) em El Salvador, entre 2000 e 2010, houve o Plano Mano Dura, jogaram um monte de gente presa. El Salvador, então, passou a ter a maior taxa de encarceramento do mundo e, nesse mesmo tempo, as maras se consolidaram. Isso fortaleceu as lideranças encarceradas, que construíram sistemas de extorsão nas ruas ligados à Mara Salvatrucha e ao M-18 (facção salvadorenha). Era um cenário de guerra entre três ou quatro maras.

Em Medellín, há uma outra história: grupos locais foram mobilizados por organizações mafiosas maiores. Cada uma delas controlava uma série desses grupos locais de cada bairro. Essas máfias entraram em guerra por volta de 2012 e a violência subiu de novo. Houve então uma guerra, que depois se estabilizou. No caso de São Paulo, até 2001 houve um pico de homicídios e um ciclo de violência forte, até que o PCC dominou a periferia e mandou não mais matar.

Nos três casos, houve uma mobilização de grupos locais, um momento de muita violência, mas, depois, há uma espécie de “pacificação”. Em Medellin, praticamente de 2013 para cá é uma diminuição constante de homicídios. Em São Paulo, de 2001 para cá. E, em El Salvador, de 2015 para cá. Por mais que falem que essa pacificação esteja atrelada ao Bukele, que colocou todo mundo preso e teria pacificado o país, a queda não começou em 2022, quando ele fez isso.

Quando se olha os dados, até 2022, os homicídios já haviam caído drasticamente. A maioria da redução ocorreu antes do crackdown. Com o estado de exceção, ele conseguiu reduzir ainda mais, até pela alta de prisões, mas é muito importante levar em conta que, de 2015 a 2022, foram as próprias maras que pacificaram El Salvador. Elas conseguiram fazer pactos entre si e vender essas tréguas aos políticos em troca de benefícios dentro do sistema carcerário. Tinha um sistema de pactos e segredos entre políticos e maras, que começou em 2015. Quando se olha a questão de El Salvador hoje em dia, com o discurso de que Bukele acabou com as maras, é possível dizer que acabou, mesmo. Mas isso é ignorar a parte da história que é chave: antes de fazer o que ele fez, em 2022, as próprias maras conseguiram baixar a violência, em negociação com o governo nos bastidores.

Quais efeitos que essa política mais repressora, permeada de denúncias de abusos, pode ter no longo prazo, quando eventualmente esses grupos se reorganizarem?

Por um lado, todos nós que estudamos segurança pública temos que ser honestos e admitir a possibilidade que esse nível de força repressora realmente consolida-se como uma golpe determinante às maras. E é evidente que as forças do Exército de El Salvador ocuparam as periferias de El Salvador de uma forma que trouxe uma grande melhoria para a população, pelo menos parece. Isso parece que acabou com fronteiras invisíveis, com guerras internas das maras.

Porém, tem que se levar em consideração três pontos fundamentais: primeiro, a redução de violência antecede esse crackdown, com a grande maioria disso ocorrendo através de um regime de pactos celebrados com as maras. Segundo ponto: é muito cedo para saber se realmente funcionou para acabar com as maras. Colocar tanta gente presa, se for olhar a história da América Latina, pode ser um tiro pela culatra. Pode ser que cinco anos depois as facções fiquem mais fortes do que nunca, ocorram ataques nas ruas. Repetidamente se vê que o crackdown, jogar todo mundo preso, faz ressurgir grupos mais fortes que nunca. Só se pode avaliar o crackdown com mais precisão daqui a alguns anos.

E o terceiro ponto: é possível que esse nível de repressão realmente possa ter acabado com esse tipo de grupo criminoso, mas é importante ressaltar que o nível de força que foi usado é fora do Estado democrático de direito. Suspendeu os direitos civis, com o estado de exceção há dois anos. É uma suspensão do Estado democrático de direito. Mesmo se tiver funcionado – e não se tem certeza disso ainda – o custo foram direitos civis: levar gente presa durante dois anos sem avisar a família, sem ter advogado ou direito de receber visitas.

*Repórter viajou ao Recife a convite do Fórum Brasileiro de Segurança Pública

RECIFE* - A hegemonia do Primeiro Comando da Capital (PCC) em São Paulo dificulta o avanço de milícias pelo Estado nos moldes do que ocorre no Rio de Janeiro, onde a atuação mais beligerante do Comando Vermelho (CV) e de facções menores abriu espaço para que outros grupos avançassem pelo território carioca, inclusive sob a justificativa de prestar proteção à população.

Essa é a avaliação de Benjamin Lessing, professor de Ciência Política da Universidade de Chicago que há pelo menos uma década acompanha o avanço das facções no Brasil e fenômenos criminais em outros países da América Latina, como México, Colômbia e El Salvador.

“É mais difícil surgir um grupo miliciano em São Paulo, porque o PCC hoje não tem um caráter tirânico, violento e cheio de tiroteios”, afirma ao Estadão. Criada há pouco mais de três décadas por um grupo de oito presos em uma penitenciária de Taubaté, no Vale do Paraíba, a facção parece ter deixado para trás episódios de ataques urbanos, como os ocorridos em 2006 e em 2012 em São Paulo.

Movimentação do fluxo da Cracolândia, no centro de SP; região tem forte influência do PCC. Foto: WERTHER SANTANA/ESTADÃO

Com o tráfico internacional como carro-chefe, o PCC hoje soma mais de 40 mil soldados espalhados por diferentes regiões e é apontado por pesquisadores e autoridades como uma força hegemônica do crime organizado em São Paulo. A facção, considerada ainda a maior do País, investe em uma cadeia sofisticada de envio de cocaína para continentes como a Europa.

Os lucros chegam a R$ 1 bilhão ao ano, segundo o Ministério Público do Estado de São Paulo (MP-SP). A expressão da facção é tamanha que, como mostrou o Estadão, a Polícia Civil investiga inclusive se antigos aliados do presidente nacional do Partido Renovador Trabalhista Brasileiro (PRTB) e articuladores informais da legenda de Pablo Marçal, candidato à prefeito em São Paulo, trocaram carros de luxo por cocaína para o PCC.

Em paralelo, o Grupo de Atuação Especial de Combate ao Crime Organizado (Gaeco) do MP-SP também deflagrou no começo deste mês uma ação contra agentes da Guarda Civil Metropolitana e da Polícia Militar suspeitos de montar uma milícia para oferecer proteção a comerciantes na Cracolândia, no centro da capital paulista. As corporações dizem colaborar com as investigações.

Na avaliação de Lessing, trata-se de uma atuação que, a princípio, é pontual. “É bem possível que a milícia se espalhe da mesma forma que as facções se espalharam, é factível, mas até agora não temos notícia disso. De todo modo, é preciso estar alerta do que pode vir a acontecer”, alerta o pesquisador.

Para ele, além da hegemonia do PCC no território paulista, outros fatores dificultam, até o presente momento, o avanço de milícias em São Paulo, como a redução sistemática da letalidade policial. Apesar de altas nos primeiros anos do governo Tarcísio de Freitas (Republicanos), o índice hoje é um dos menores do Brasil, segundo dados reunidos pelo Fórum Brasileiro de Segurança Pública.

Recente operação do Ministério Público e da Polícia Civil buscou enfraquecer o tráfico de drogas na região da Cracolândia. Foto: Tiago Queiroz/Estadão

Lessing afirma ainda que o Brasil tem passado por um processo de “faccionalização”. Gangues menores, normalmente surgidas nos próprios bairros em que os criminosos atuam, têm perdido cada vez mais espaço ou têm sido absorvidos por organizações criminosas de base prisional, como o PCC, o Comando Vermelho e até grupos considerados menores, como o Terceiro Comando Puro (TCP).

Na entrevista, o pesquisador comenta também sobre o avanço do crime organizado em países como Colômbia e em El Salvador, onde medidas repressivas foram adotadas em larga escala – reportagens recentes do Estadão abordaram os efeitos da adoção por lá do regime de exceção pelo presidente Nayib Bukele. Leia abaixo os principais trechos da entrevista com o pesquisador Benjamin Lessing.

O PCC hoje movimenta R$ 1 bi ao ano, segundo o MP-SP. Já o Comando Vermelho protagoniza cenas de violência não só no Rio, onde disputa territórios, como tem forte presença em regiões como a Norte. Isso sem citar a atuação de facções menores. É o momento mais crítico do crime organizado no Brasil?

Não sei se dizer se é um momento mais crítico que outros momentos que também se deram nessa história do crime organizado no Brasil. Há momentos decisivos que, muitas vezes, a gente só vai ter dimensão depois. Eu vejo muito mais como um momento em que estamos vendo as consequências de tantos anos de políticas de repressão, que acabaram fortalecendo o crime e que ajudaram a espalhar as facções por todo o Brasil.

O crime organizado está muito enraizado. O Comando Vermelho deu essa ressurgência, que era muito inesperada até por especialistas, e tem se reafirmado de forma muito marcada. Já o PCC tomou outro rumo, mas segue por seus caminhos de crescimento. Movimenta uma “grana” enorme, com tráfico internacional cada vez mais forte. Ainda assim, segue sendo uma facção criminosa no molde brasileiro, centrada no sistema carcerário.

As taxas de homicídio estão em tendência de queda desde 2017, quando ocorreram rebeliões em penitenciárias. Ao mesmo tempo, ataques generalizados, como os ocorridos em São Paulo em 2006 e 2012, ficaram menos frequentes. Ainda com denúncias de infiltração no poder público e de esquemas mais sofisticados de lavagem de dinheiro, há uma espécie de estabilização do crime organizado no Brasil?

A redução de ataques coordenados de dentro do sistema penitenciário, a exemplo dos ataques de maio de 2006, é uma verdade para o Sudeste. Mas, ao ver uma evolução desse tipo de ataque, fica muito evidente que se espalhou (para outras regiões do Brasil). Enquanto São Paulo foi sendo “pacificado” entre 2010 e 2020, o resto do País foi começando a ter esse tipo de ataque. Primeiro se espalhou para o Sul. Depois, para Norte e Nordeste.

Quase todos os Estados já tiveram esse tipo de ataque e, até pouco tempo, só faltava o Estado do Amazonas, que em 2021 também teve seus ataques coordenados. Hoje em dia quase não existe Estado brasileiro em que não houve episódios parecidos com os ataques de maio (de 2006, em São Paulo). Até fiz um mapeamento, em que criei uma base de dados de 2003 até 2019. Deve sair em um livro que estou para lançar (provavelmente em 2026).

Houve, portanto, uma regionalização do crime no Brasil?

Gosto de distinguir dois movimentos analiticamente. Um primeiro é o que eu chamaria de faccionalização. Antes, o mundo do crime e as periferias eram caracterizadas pela atuação de gangues, bondes ou grupos bem pequenos, com as comunidades periféricas caracterizadas por fronteiras invisíveis e territórios muito pequenos de gangues bem predatórias. Fracas, mas ao mesmo tempo violentas. Gangues que praticam crimes dentro do próprio bairro, que disputam entre si. São criminosas, mas que não têm uma lógica empresarial e muito menos um controle territorial para “governar” uma população civil. No máximo, são predatórios. Em muitas cidades do Nordeste e do Norte, até por volta dos anos 2015, 2016 e 2017, essa era a realidade.

A faccionalização ocorre quando grupos criminosos, quase sempre no Brasil surgidos dentro do sistema carcerário, vão organizando esses grupos locais nas ruas em agrupações maiores. Geralmente, cada comunidade passa a ser dominada por uma facção. E os grupos locais são integrados em um sistema que funciona como uma governança interna da facção. Se for faccionalizado dentro do Comando Vermelho, por exemplo, o “dono” de um local pode até manter sua autonomia relativa, mas ele passa a ser do Comando Vermelho.

A comunidade em si começa a pertencer a uma facção só. Ou, se for um lugar muito grande, como a Maré, há uma divisão. Mas cada parte da Maré pertence a uma facção. Nova Holanda pertence ao Comando Vermelho, por exemplo. Há uma aglutinação. Onde antes havia um monte de gangues, grupos muito pequenos, com identidades locais e atuando em poucos quarteirões, isso passa a ser extinto à força. E a facção “pacifica” internamente a comunidade, manda todo mundo parar de brigar e aquilo tudo vira uma coisa só. O produto final é uma periferia que é dividida entre duas, três ou quatro facções, geralmente.

É um caminho sem volta?

Para mim, essa realidade de faccionalização é uma “rua de mão única”. Não conheço casos de “desfaccionalização”, de voltar para aquele esquema anterior, com um monte de gangues pequenas sem nenhuma organização ou coordenação a partir do sistema carcerário. Isso não existe no Brasil. O Rio começou a ser faccionalizado nos anos 80, São Paulo, a partir dos anos 90, com a chegada do PCC, e daí em frente cada Estado tem a sua história. Alguns antes dos outros, mas agora todos os Estados estão faccionalizados. É um movimento que até agora ninguém conseguiu reverter.

Mesmo em outros países da América Latina?

Geralmente tem sido (um caminho sem volta), porque, uma vez que esses grupos locais estão organizados nesse outro nível, isso potencializa mercados ilícitos. Esses grupos pequenos que antes eram só uma gangue agora fazem parte do tráfico. Tornam-se parte de um sistema de “boca de fumo” que já é mais empresarial, que já gera mais lucro, que já tem sua própria lógica. Ou, em outros casos, são integrados em sistemas de extorsão, com cobranças de taxas de segurança, como no caso de El Salvador, que não tem muito mercado para drogas. E isso ocorre já em uma lógica empresarial também. O que antes era um grupo de cinco ou dez moradores do bairro, roubadores de celular, depois virou um grupo dentro da Mara Salvatrucha (gangue internacional), por exemplo.

Essa faccionalização causa uma série de consequências: unifica o território da favela – com cada comunidade com uma só organização – e pacifica internamente o território e governa aquela área – no intuito de ganhar a lealdade dos moradores para proteger-se da polícia e também para que a polícia não tenha motivo para entrar. Em alguns casos, o que era uma zona hiper violenta passa a ser muito menos violenta.

Isso não ocorreu só em São Paulo. Em João Pessoa, Natal e Fortaleza, por exemplo, há favelas que eram internamente muito violentas e depois passaram a não ter mais homicídios, porque uma facção só domina e manda ninguém mais roubar dentro da favela. A facção, em meio a isso, potencializa a atividade ilícita dentro daquela comunidade. Não vejo muitos casos de reversão desse processo, talvez só em El Salvador, com esse crackdown (repressão) de Bukele, mas é muito cedo para chegar a uma conclusão e também são vários “poréns” na história de El Salvador. Mas talvez ele tenha conseguido quebrar o poder dos faccionados sobre quem está na rua, até porque colocou “todo mundo” preso. Cerca de 2% da população está presa, cerca de três ou quatro vezes a mais que a taxa de encarceramento por aqui (no Brasil), que já é muito alta.

Só para fechar o raciocínio anterior, qual é o segundo movimento que gostaria de distinguir?

A faccionalização é uma coisa, mas outra questão é entender quantas facções há e se estão em guerra ou não. São Paulo tem uma facção basicamente, é um monopólio. O Rio de Janeiro, no momento, tem três ou quatro facções, que geralmente ficam em guerra. Já o Ceará tinha três facções que estavam em guerra e, depois, no início de 2019, fizeram um pacto entre elas, o que gerou uma queda de homicídios. Agora dizem que são sete facções e que estão todas em guerra. E o Ceará teve um nível recorde de homicídios.

A faccionalização em si é uma rua de mão única. Agora, se vão ter três ou cinco facções, além de cisões, fusões e outros movimentos, isso é muito mais variável e imprevisível. São muitas variações de um Estado para o outro, então não dá muito para dizer que estamos caminhando para um mundo em que só há três facções em cada cidade. Em um momento, aparenta que só vão ter duas ou três, mas depois surgem mais. Agora parece que os Amigos dos Amigos (ADA) estão se acabando e que vai ter só Terceiro Comando Puro (TCP) e Comando Vermelho, mas isso pode mudar amanhã. Essas trajetórias de facções individuais e esse contexto se vão ter uma, duas ou mais são muito imprevisíveis. No México, que também estudo, vejo que é muito fácil se perder nessas histórias, que são interessantes, e esquecer que há um movimento mais contínuo, que só tende a ficar mais forte.

Esse processo mais contínuo dificulta o trabalho das forças policiais, até pelo maior nível de inserção que as facções hoje têm em relação a mercados ilícitos e no poder público? Como combater o crime organizado de forma mais eficiente?

Se a faccionalização dificulta o trabalho policial é uma pergunta que tem que ser feita com mais frequência. A maioria de representantes das forças policiais, sejam delegados ou comandantes de batalhões, geralmente adota uma postura de combate ao crime organizado, de embate, enfrentamento. E quando se pergunta qual é a estratégia frente às facções, muitas vezes a resposta é que se pretende acabar com as facções. É uma mentalidade muito focada em combate, em “vencer a guerra”.

Ocorre que a faccionalização dificulta esse tipo de visão. As facções são muito resilientes. Todos os principais líderes de facções estão presos, só o Comando Vermelho tem mais de 200 pessoas no sistema penitenciário federal. O PCC também tem uma série de integrantes encarcerados. Ou seja, são alvo do máximo de isolamento possível e a organização está maior do que nunca, está crescendo e numa nova onda de expansão. Então realmente a faccionalização dificulta o trabalho policial, principalmente se o trabalho policial tentar acabar com a facção. Não estão acabando, e não tem sinal de que vão acabar com facção.

Agora, tem uma dimensão até mais oculta: por que o Comando Vermelho governa favelas do Rio de Janeiro? Por que uma organização que está dedicada ao tráfico de drogas, a gerar lucros ilícitos, vai tomar o trabalho de prover ordem pública para milhões de pessoas e moradores de comunidades no Brasil? As facções governam periferias porque governam sistemas carcerários. Dá muito trabalho, dá trabalho resolver conflito de morador, dá trabalho patrulhar, dá trabalho recuperar (objetos roubos de roubo e furto, como) bicicleta. E governar esses espaços não dá lucro em si. Mas eles fazem isso para que a polícia não entre ou, quando entrar, para que o morador fique mais ao lado do tráfico. Em São Paulo, fica evidente que só tem uma facção que dominou todo o mundo do crime em São Paulo e mandou não matar. E colocou tribunais e uma série de normas não violentas pelo mundo do crime. Hoje em dia se resolve conflito de forma não violenta, em geral.

Isso, no curto prazo, até facilita o trabalho policial. A taxa de homicídio hoje é muito baixa. Mas minha conclusão é que mesmo esse segundo aspecto hoje é uma faca de dois gumes: no Rio, o tráfico governa as favelas. Isso ajuda a polícia a fazer seu trabalho – e a reduzir a insegurança para população –, de alguma forma. Mas as facções empurram o Estado para fora porque fazem o trabalho por ele. É a mesma lógica dentro do sistema carcerário: se o Comando Vermelho governa o pavilhão, a guarda pode ficar do lado de fora. Facilita a vida do guarda, do diretor da prisão, mas o Estado vai perdendo cada vez mais o controle.

Como retomar esse controle? Há modelos adotados em outros países da América Latina que podem funcionar por aqui?

Desconheço exemplos robustos, o que vejo são trade offs (trocas), decisões difíceis. Você quer que as facções fiquem em paz umas com as outras ou em guerra? Você quer que o PCC continue dominando a periferia de São Paulo ou quer arriscar que volte para o cenário de 2001, com muitos homicídios e ciclos de violência? São perguntas muito difíceis de responder. O que acho que talvez está começando a ter é que os Estados estão começando a ser mais estratégicos no sentido de incentivar grupos criminosos a serem menos violentos.

Em vez de o Estado falar que vai acabar com o crime organizado ou que vai acabar com todos, que são propostas irreais, dizer que vai punir as facções por guerrear entre si. É possível que esteja se movendo nessa direção. Não formalmente, mas na prática eu tenho a impressão que os Estados estão entendendo que não vão acabar com essas estruturas, não vão acabar com tráfico de drogas.

E onde entraria a milícia nesse processo de faccionalização? São grupos absorvidos por esse processo ou que ficam à margem?

Considero à parte, por alguns motivos. Primeiro porque a faccionalização obviamente tomou o Brasil por inteiro, ainda que com variações. Comando Vermelho e PCC são diferentes, o que resultou em faccionalizações diferentes. Em São Paulo há um monopólio que nunca existiu no Rio ou, se existiu, acabou muito rápido. Quase tão logo nasce o Comando Vermelho, nasce o Terceiro Comando. E facções se parecem estruturalmente e simbolicamente, ainda que com estatutos diferentes. Da mesma forma que torcidas se parecem, ainda que com hinos e camisas diferentes.

As milícias já são algo diferente, tanto no funcionamento quanto em amplitude. Não houve, até agora, uma “milicialização” do Brasil da mesma forma que houve uma faccionalização. Há milícias no Rio que têm evoluído e estão mudando. É um fenômeno até difícil de se definir: antes, por exemplo, dizia-se que a milícia não deixava o tráfico entrar (em determinada região), mas agora já há narcomilícias. E mesmo milícias que se aliam a facções. Ainda assim, há algumas coisas que definem milícia, como principalmente a conexão com a polícia e com agentes do Estado. Muitas vezes, há ex-policiais ou PMs da ativa envolvidos, além de depender mais de extorsão do que de tráfico de drogas. Também é comum que se apresentem como defensores da comunidade contra o tráfico.

Uma outra característica que constitui o que é uma milícia é essa inserção maior no Estado, mesmo sendo objeto de repressão e investigação pelo Estado. A milícia tem contatos dentro do Estado, uma permeabilidade, que as facções não têm geralmente. Até agora, ainda com relatos de milícia em cidades como Belém ou outros locais, por exemplo, não tenho notícias da expansão do modelo milícia fora do Rio, em escala maior. É bem possível que a milícia se espalhe da mesma forma que as facções se espalharam, é factível, mas até agora não temos notícia disso. De todo modo, é preciso estar alerta do que pode vir a acontecer.

Em São Paulo, houve investigações recentes indicando que guardas e policiais poderiam estar atuando como milícia na região da Cracolândia, no centro. Eles são suspeitos de vender proteção privada para comerciantes da região. Na sua avaliação, portanto, mesmo um caso como esse seria algo mais pontual?

A ideia de vender proteção privada é muito antiga, existe de várias formas ao longo da história. No caso da milícia do Rio, vários fatores favorecem a aparição de um grupo tão robusto. Alguns fatores explicam porque foi só no Rio que esse modelo miliciano prosperou. Primeiro que as facções e o tráfico no Rio já eram tão demonizados, com enfrentamento do Comando Vermelho ao Estado com tiroteios, que isso já abriu espaço para o miliciano se justificar como proteção. Com a alegação de que iria proteger contra o Comando Vermelho e o tráfico. É mais difícil surgir um grupo miliciano em São Paulo porque o PCC hoje não tem um caráter tirânico, violento e cheio de tiroteio. Não é tão fácil demonizar o PCC para justificar uma proteção.

Um segundo fator é que, no Rio, a própria polícia é muito violenta. A polícia mata muito. Também era assim em São Paulo, mas agora já não tanto. E a polícia é muito truculenta, sempre foi muito truculenta com as comunidades. Diante disso, a milícia também protege a comunidade da polícia. Quando tem milícia, não tem tiroteio. Isso porque a polícia não entra em zona de milícia. Então a milícia vende uma proteção do próprio Estado, e esse potencial de proteger comunidades da violência do próprio Estado depende de um Estado muito violento, como o Rio de Janeiro é. Não que outros lugares não sejam, mas tem que ter esse nível de uma polícia muito violenta e níveis de corrupção enraizados.

Um terceiro ingrediente é que no Rio a milícia atua principalmente na zona oeste. Onde tem tráfico de drogas forte tem o Comando Vermelho, como em toda a zona sul do Rio de Janeiro, com Rocinha, Cantagalo, Santa Marta. A milícia só conseguiu dominar áreas com menor densidade populacional. Minha leitura disso é que a milícia só vai funcionar à base de cobrar taxa de segurança em vez de traficar drogas onde o mercado de drogas não é tão forte, onde o potencial de lucro não é tão grande. Talvez seja um pouco dessa conjuntura de coisas que faz com que o modelo milícia tenha crescido, mas não ao ponto de tomar conta de tudo, como eu e outros pesquisadores achávamos que poderia acontecer. Não se enraizou tanto.

Pensando em contexto global, investigações indicam que o PCC tem relações bem estabelecidas com máfias internacionais, como a ‘Ndrangheta, da Calábria. Em 2021, por exemplo, o mafioso Rocco Morabito foi preso em um hotel na Paraíba. No mesmo ano, o PCC entrou na lista de sanções do Tesouro americano. Qual o peso do Brasil e de outras facções brasileiras no mapa global do crime organizado atualmente?

É óbvio que estão tomando cada vez mais espaço e atenção. Isso está virado mais para o PCC, mas também para o Comando Vermelho. Estão entendendo que esses grupos estão chegando a ser transnacionais, com potencial de tráfico internacional de drogas através de fronteiras. Há envios de cocaína do PCC para Europa, que ocorre também por meio da África, e isso está crescendo.

Mas há também outras preocupações. Nos Estados Unidos, fala-se muito do Trem de Aragua, que é um grupo venezuelano que estaria avançando também pelos Estados Unidos. Antes, era o MS-13, de El Salvador. Só que há muita fantasia, o que faz ser um pouco difícil dar uma dimensão real do problema. O que sempre enfatizo é que as facções brasileiras são líderes mundiais em inovação operacional. O PCC é uma organização muito inovadora, e é muito mais extensa em números de membros. São mais de 40 mil batizados. São organizações com estruturas e mecanismos de coesão interna que são extremamente resilientes e adaptáveis. O Comando Vermelho também tem muita gente.

Para mim, muito além de focar se estão traficando drogas para a Europa, se o PCC passou a ser um importante exportador de cocaína, é importante entender estrutura e o funcionamento dessas organizações. Elas são resilientes e com capacidade de sobreviver décadas sem guerras internas, sem rachar no meio, mesmo com todos os líderes em prisão federal. Essa resiliência interna é muito mais interessante, muito mais uma coisa a se ajustar e a estudar. Sua expansão nesses mercados globais é importante, mas não necessariamente é o fato mais importante a ser levado em conta.

Autoridades brasileiras têm sido cada vez mais cobradas por conta do avanço do crime organizado, em meio a investigações sobre o avanço do PCC no financiamento de campanhas e o envolvimento em contratos públicos de empresas de ônibus. Essa tentativa de inserção no Estado também ocorreu em outros países?

É interessante pegar os casos de El Salvador, Medellín e São Paulo, porque eles têm algumas semelhanças e algumas diferenças extremas. Nos três casos, há um grau de organização muito alto nos grupos locais. No caso das maras (gangues criminosas) em El Salvador, entre 2000 e 2010, houve o Plano Mano Dura, jogaram um monte de gente presa. El Salvador, então, passou a ter a maior taxa de encarceramento do mundo e, nesse mesmo tempo, as maras se consolidaram. Isso fortaleceu as lideranças encarceradas, que construíram sistemas de extorsão nas ruas ligados à Mara Salvatrucha e ao M-18 (facção salvadorenha). Era um cenário de guerra entre três ou quatro maras.

Em Medellín, há uma outra história: grupos locais foram mobilizados por organizações mafiosas maiores. Cada uma delas controlava uma série desses grupos locais de cada bairro. Essas máfias entraram em guerra por volta de 2012 e a violência subiu de novo. Houve então uma guerra, que depois se estabilizou. No caso de São Paulo, até 2001 houve um pico de homicídios e um ciclo de violência forte, até que o PCC dominou a periferia e mandou não mais matar.

Nos três casos, houve uma mobilização de grupos locais, um momento de muita violência, mas, depois, há uma espécie de “pacificação”. Em Medellin, praticamente de 2013 para cá é uma diminuição constante de homicídios. Em São Paulo, de 2001 para cá. E, em El Salvador, de 2015 para cá. Por mais que falem que essa pacificação esteja atrelada ao Bukele, que colocou todo mundo preso e teria pacificado o país, a queda não começou em 2022, quando ele fez isso.

Quando se olha os dados, até 2022, os homicídios já haviam caído drasticamente. A maioria da redução ocorreu antes do crackdown. Com o estado de exceção, ele conseguiu reduzir ainda mais, até pela alta de prisões, mas é muito importante levar em conta que, de 2015 a 2022, foram as próprias maras que pacificaram El Salvador. Elas conseguiram fazer pactos entre si e vender essas tréguas aos políticos em troca de benefícios dentro do sistema carcerário. Tinha um sistema de pactos e segredos entre políticos e maras, que começou em 2015. Quando se olha a questão de El Salvador hoje em dia, com o discurso de que Bukele acabou com as maras, é possível dizer que acabou, mesmo. Mas isso é ignorar a parte da história que é chave: antes de fazer o que ele fez, em 2022, as próprias maras conseguiram baixar a violência, em negociação com o governo nos bastidores.

Quais efeitos que essa política mais repressora, permeada de denúncias de abusos, pode ter no longo prazo, quando eventualmente esses grupos se reorganizarem?

Por um lado, todos nós que estudamos segurança pública temos que ser honestos e admitir a possibilidade que esse nível de força repressora realmente consolida-se como uma golpe determinante às maras. E é evidente que as forças do Exército de El Salvador ocuparam as periferias de El Salvador de uma forma que trouxe uma grande melhoria para a população, pelo menos parece. Isso parece que acabou com fronteiras invisíveis, com guerras internas das maras.

Porém, tem que se levar em consideração três pontos fundamentais: primeiro, a redução de violência antecede esse crackdown, com a grande maioria disso ocorrendo através de um regime de pactos celebrados com as maras. Segundo ponto: é muito cedo para saber se realmente funcionou para acabar com as maras. Colocar tanta gente presa, se for olhar a história da América Latina, pode ser um tiro pela culatra. Pode ser que cinco anos depois as facções fiquem mais fortes do que nunca, ocorram ataques nas ruas. Repetidamente se vê que o crackdown, jogar todo mundo preso, faz ressurgir grupos mais fortes que nunca. Só se pode avaliar o crackdown com mais precisão daqui a alguns anos.

E o terceiro ponto: é possível que esse nível de repressão realmente possa ter acabado com esse tipo de grupo criminoso, mas é importante ressaltar que o nível de força que foi usado é fora do Estado democrático de direito. Suspendeu os direitos civis, com o estado de exceção há dois anos. É uma suspensão do Estado democrático de direito. Mesmo se tiver funcionado – e não se tem certeza disso ainda – o custo foram direitos civis: levar gente presa durante dois anos sem avisar a família, sem ter advogado ou direito de receber visitas.

*Repórter viajou ao Recife a convite do Fórum Brasileiro de Segurança Pública

Entrevista por Ítalo Lo Re

Repórter da editoria de Metrópole em São Paulo, escreve sobre segurança pública e cidades. É jornalista formado pela UFMG.

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