O tráfico de drogas para destinos como Austrália, Hong Kong e Cingapura entrou na mira da Alfândega da Receita Federal do Porto de Santos, o maior do hemisfério sul. Desde o início do mês, uma nova regra determina que contêineres embarcados em navios que vão para esses locais, além de Indonésia e Taiwan, devem obrigatoriamente passar por scanners antes de entrar nos terminais.
“Houve incremento nas apreensões de cocaína lá fora e aqui no Brasil com destino aos portos desses países”, disse ao Estadão Richard Neubarth, delegado da Alfândega da Receita Federal do Porto de Santos. Por isso, conta, o órgão de fiscalização decidiu testar a nova medida por dois meses. A ação foi possibilitada por um aumento recente no efetivo da Receita.
O escaneamento obrigatório começou a ser implementado em Santos no começo de 2016, mas, até o momento, tinha como foco apenas contêineres com destino a África e Europa, considerados os dois continentes para onde o Primeiro Comando da Capital (PCC) mais envia drogas. Com a adoção de scanners para fiscalizar navios com esses destinos, a hipótese é que Ásia e Oceania ganharam espaço.
Em um primeiro momento, o escaneamento obrigatório de cargas com destino a Austrália, Hong Kong, Cingapura, Indonésia e Taiwan terá obrigatoriedade temporária, mas há possibilidade de prorrogação. “Vai ficar março e abril escaneando para ter um diagnóstico”, diz Neubarth.
Com auxílio de cães farejadores, a Receita apreendeu nesta quarta-feira, 20, um total de 46 quilos de cocaína na estrutura de um contêiner refrigerado. O recipiente estava carregado de caixas de suco de laranja. O navio para onde ele estava sendo levado tinha como destino o Porto de Sydney.
Se chegasse até lá, a droga poderia ser vendida por um valor mais elevado. “Na Austrália, a cocaína vale de três até cinco vezes mais do que na Europa, que já representa ganho enorme em relação à cocaína aqui na América do Sul”, afirma Neubarth. “Se eles conseguem levar de um continente para outro uma carga ilícita que se tenha demanda, o lucro é muito grande.”
Investigações do Ministério Público de São Paulo indicam que o PCC paga de US$ 1,2 mil a US$ 1,4 mil (de R$ 6 mil eaR$ 7 mil) pelo quilo de cocaína para países vizinhos, como Colômbia, Peru e Bolívia. Na Europa, revende, em média, por € 35 mil, em envios que ocorrem sobretudo pelos portos brasileiros. Mas o lucro pode ser ainda maior: a estimativa é que, na Ásia, o quilo chega a US$ 150 mil.
No ano passado, a Receita apreendeu 7,1 toneladas de cocaína no Porto de Santos. Das 26 ações que resultaram em apreensões, a Europa aparece como destino ou ponto de baldeação ao menos 20 vezes, em predominância que se repete ano após ano.
A África aparece em sete casos; já a Ásia, em quatro. Ao mesmo tempo, o órgão de fiscalização não registrou ocorrências relacionadas à Oceania no último ano em Santos, mas um episódio recente em outro porto nacional chamou a atenção.
No fim do ano passado, a Receita, em ação conjunta com a Polícia Federal, apreendeu 600 quilos de cocaína localizados em uma carga para exportação no Porto do Pecém, na região metropolitana de Fortaleza. As remessas, que tinham Sydney como destino final, estavam escondidas em paredes e pisos de estruturas descritas como quiosques de praia. Dois suspeitos foram presos na Austrália.
Segundo relatório do Escritório das Nações Unidas sobre Drogas e Crime, de 2022, grupos criminosos no Brasil têm cada vez mais buscado portos menores no Nordeste e no Sul. O documento, que não cita quais terminais, aponta que a tendência era vista antes da covid-19, mas ganhou força na pandemia.
“Com a intensificação da fiscalização, entre outras medidas visando a combater o tráfico de drogas, nota-se que os traficantes têm diversificado o modo de operação e se valido de outros portos com menos fiscalização, bem como levado droga em barcos menores”, diz o chefe da Delegacia da Polícia Federal em Santos, Daniel Coraça Júnior.
“Todo canal utilizado pelo tráfico que começa a ter perdas, isto é, apreensões, é imediatamente inutilizado e passa-se a tentar outro. Esse dinamismo dificulta o trabalho policial, mas, ao mesmo tempo, é revelador de brechas de segurança que são rapidamente estancadas”, afirma.
O delegado cita o exemplo dos sea chests (tanques de mar), cujas apreensões caíram neste ano após o aumento dos mergulhos. Como mostrou o Estadão, cresceu nos últimos anos a modalidade de pacotes escondidos em casco de navio, até como resposta à obrigatoriedade de realizar o escaneamento de cargas com destino à Europa.
Ação conjunta de PF, Receita e Marinha no início de 2023, por exemplo, apreendeu cerca de 290 kg de cocaína achados no casco de navio carregado de celulose. Os traficantes usaram até anilhas de academia para fixar os pacotes no recipiente. O barco, que ia para o Porto de Martas, na Turquia, estava ancorado na área de fundeio do terminal de Santos quando foi vistoriado.
Na avaliação de Coraça Júnior, Ásia e Oceania, de fato, têm despontado como nova rota. “No âmbito da GLO, o efetivo do Nepom (Núcleo Especial de Polícia Marítima) da PF foi reforçado por policiais em missão, o que possibilitou incremento na frequência de fiscalizações”, afirma o delegado.
Em Santos, segundo dados da Receita, o número de apreensões de 2023 ficou em menos da metade do montante do ano anterior (16 toneladas), mas ainda assim é o mais expressivo entre os portos brasileiros. Quando se leva em conta a série histórica, o ápice foi em 2019, com a apreensão de 27 toneladas de cocaína. Os portos de Antuérpia, na Bélgica, e Roterdã, na Holanda, são os principais destinos das chamadas “remessas contaminadas”.
Neubarth reforça que as ações da Receita e dos outros órgãos têm contribuído no combate ao tráfico. Neste ano, afirma, ainda não foram notificadas apreensões de entorpecentes em portos internacionais em carregamentos que tenham partido da Baixada Santista.
PCC sofistica formas de enviar cocaína para outros continentes
Para usar cascos de navio no envio de remessas ilegais para o exterior, o crime organizado se utiliza desde pequenos barcos até mergulhadores para levar os carregamentos.
Neubarth, da Receita, afirma que, uma década atrás, o modus operandi mais comum era lançar malas com drogas no contêiner. Com o avanço do uso de cães farejadores e de scanners, principalmente em cargas com destino à Europa, essa modalidade foi substituída por esquemas que buscam cooptar tripulantes e outros profissionais que trabalhavam no porto.
Segundo ele, as alternativas “da moda” agora são o içamento de cargas na área de fundeio e o uso dos cascos de navio para esconder droga, molidade que bateu recorde no último ano. Foram mais de 1,6 toneladas apreendidas no período só pela Marinha. “A tendência dos últimos anos foi migrar para fora do terminal, depois do scanner”, disse o delegado.
No ano passado, houve desde casos de tabletes de droga escondidos em guindastes de navios a episódios em que a cocaína foi inserida em contêineres com carregamentos de açúcar e até de carne de frango congelada. O desafio da Receita hoje é atacar não só as novas estratégias, como continuar as fiscalizações já tradicionais.
Ampliar escaneamento pode ter efeito positivo, diz especialista
Para Gabriel Patriarca, pesquisador do Núcleo de Estudos da Violência da USP, a ampliação do escaneamento obrigatório no Porto de Santos é positiva. “Do ponto de vista da Alfândega, deve ser uma maneira de tentar ir cobrindo as tendências do tráfico, se adaptando”, afirma ele, que estuda medidas de segurança em portos há pelo menos seis anos.
Em Santos, os resultados têm se mostrado positivos desde o início da implementação da medida para fiscalizar remessas com destino a outros continentes, afirma o pesquisador. “(A Europa) é o maior mercado consumidor de cocaína, então o foco (do crime organizado) é lá. Posteriormente, vendo que a África havia se tornado entreposto para a Europa, resolveram ampliar pra lá também”, diz.
Ao mesmo tempo, Patriarca reforça que um dos maiores desafios de medidas preventivas é lidar com o que descreve como deslocamento (ou efeito balão): quando se aperta a fiscalização de um lado e isso, de certa forma, resvala em outro. “A princípio, tornar obrigatório o escaneamento pra outros lugares pode ajudar a controlar esses efeitos”, acrescenta o pesquisador.
Receita conta com 17 scanners e tem acesso a mais de 3 mil câmeras
Atualmente, a Alfândega conta com mais de 220 auditores-fiscais e analistas-tributários, sendo que 47 deles entraram neste ano, após concurso recente. Foi esse incremento que, segundo Neubarth, permitiu ampliar as ações, como a inclusão de novos destinos na lista de escaneamento obrigatório.
A Receita tem ainda 17 scanners de contêineres e acesso a mais de 3 mil câmeras de monitoramento, além de três cães de faro e duas lanchas blindadas. Ao todo, o órgão de fiscalização realiza em torno de mil verificações físicas por ano no Porto de Santos, além de 300 rondas marítimas e 50 buscas em navio.
A Receita não conta com mergulhadores, mas estuda formar profissionais desse tipo no futuro. Hoje, as ações de inspeção de casco são realizadas por quatro mergulhadores da Marinha. Desde novembro, o Porto de Santos recebe a operação de Garantia da Lei e da Ordem (GLO), que também se estende para outros portos e aeroportos de Rio e São Paulo, conforme decreto federal.
Cerca de 400 militares e um aparato de guerra foram deslocados para o Porto de Santos. Entre os equipamentos, estão uma lancha blindada conhecida como “Caveirão do mar”, um navio-patrulha considerado “tecnologia de ponta” na América Latina e até um tanque de guerra já usado durante a expedição brasileira no Haiti. A ação deve se estender até maio, mas há possibilidade de prorrogação.