A quantidade de armas em acervos particulares no Brasil (aqueles que não pertencem aos órgãos públicos) está próximo de 3 milhões, segundo dados obtidos pelos institutos Sou da Paz e Igarapé meio da Lei de Acesso à Informação. Esse acervo mais que dobrou nos últimos cinco anos – em 2018, o total era de 1,3 milhão de armas em coleções privadas. Em sua gestão, o ex-presidente Jair Bolsonaro (PL) facilitou as regras de acesso de civis a esse tipo de equipamento – o que o governo Luiz Inácio Lula da Silva (PT) promete rever.
Os acervos particulares incluem armas de caçadores, atiradores desportivos e colecionadores (CACs), de cidadãos com registro para defesa pessoal, caçadores de subsistência; servidores civis (como policiais e guardas civis) com prerrogativa de porte e que compraram armas para uso pessoal; membros de instituições militares (policiais militares, bombeiros militares) que compraram armas para uso pessoal.
Embora não existam dados segmentados, mês a mês, sobre a corrida às armas, a disputa eleitoral do ano passado pode ter impulsionado a busca pelos armamentos, considerando que a saída de Bolsonaro dificultaria o acesso de civis aos equipamentos. “Sim, é uma hipótese. Nos EUA, por exemplo, é muito comum identificar esse movimento nos anos eleitorais quando democratas têm mais chance de ganhar”, avalia Carolina Ricardo, diretora executiva do Instituto Sou da Paz.
Colecionadores e caçadores foram os maiores beneficiados
O aumento das armas em coleções particulares está alinhada à mudança do perfil dos registros. Caçadores, atiradores desportivos e colecionadores foram os maiores beneficiados pelas alterações na legislação, como decretos, portarias e instruções normativas publicadas entre 2019 e 2022. Em 2018, quase metade do acervo pertencia a membros de instituições militares (47%). O restante se dividia entre os registros na Polícia Federal (servidores civis, cidadãos comuns com registro para defesa pessoal e caçadores de subsistência, com 26%) e registros pertencentes a CACs (27%). Ao longo dos últimos quatro anos, essa proporção se inverteu com o crescimento dos CACs, que passou a ter 42,5% do total em 2022.
A categoria adquiriu 59 mil novas armas em 2018. As compras se intensificam rapidamente com 78 mil no ano seguinte e 125 mil em 2020. O ápice ocorreu em 2020 com mais de 430 mil novas armas compradas pelos CACs, volume maior do o adquirido entre 2018 e 2020.
As novas regras também facilitaram o acesso a armas mais potentes. No mesmo período, a parcela de fuzis subiu 50% em São Paulo e 16% no Rio de Janeiro no total de armas apreendidas, enquanto a de pistolas aumentou 31% e 32% nos dois estados, respectivamente.
Mais armas em circulação leva ao aumento da violência, dizem especialistas
Especialistas mostram preocupação, pois relacionam a maior disponibilidade de armas ao aumento da violência, em especial quando estão nas mãos de particulares e não são submetidas aos controles das Corregedorias e Ouvidorias.
Os feminicídios exemplificam esse alerta. Apesar da queda geral dos homicídios no País, as taxas de homicídios de mulheres aumentaram 2% em 2020 e 5% em se tratando apenas daqueles cometidos com armas de fogo a partir de 2017.
As mudanças na legislação de controle de armas, que também revogaram e reduziram mecanismos de fiscalização fundamentais para prevenir desvios, incentivaram um novo esquema criminoso de uso de laranjas (pessoas sem antecedentes criminais) para comprar armas legalmente e depois repassá-las para facções criminosas. “O aumento do volume e da potência das armas aliado à falta de mecanismos de controle por parte do Estado produzem vários casos em que as armas caem nas mãos da criminalidade”, analisa Melina Risso, diretora de pesquisa do Instituto Igarapé.
O desvio de armas compradas legalmente para o mundo do crime foi confirmado em uma operação no Rio de Janeiro. A polícia e o Ministério Público apreenderam 55 armas, entre elas 26 fuzis, comprados pelo colecionador. Segundo a investigação, ele vendia as armas que comprava para uma facção criminosa.
No início do mês, o governo Lula determinou que todas as armas sob poder de civis sejam cadastradas no sistema da PF no prazo de 60 dias. Isso reforça o poder da Polícia Federal na vigilância e monitoramento sobre esse arsenal – os CACs, por exemplo, estavam submetidos somente ao controle dos militares.