Era a chácara e mais nada. Há quase 100 anos, o casarão em que morou a família do inglês Aleck Martin Wellington ficava praticamente isolado ao norte da cidade de São Paulo, então bem menos urbanizado, sem os prédios, a rodovia e os milhares de habitantes de hoje. Como o entorno, a residência passou por transformações ao longo das décadas e até virou um clube holandês. Uma outra mudança ainda está por vir, com o resgate das características originais e a conversão em um dos principais atrativos do futuro Sesc Pirituba.
Wellington foi superintendente da São Paulo Railway. Em data entre o fim dos anos 1950 e 1962, segundo levantamento histórico do projeto de restauro, vendeu o imóvel para a Sociedade Holandesa de São Paulo, também conhecida como Clube Holandês e Casa de Nassau. Uma das referências visuais é a portaria, de 1996, na Avenida Raimundo Pereira de Magalhães, em formato de um moinho de vento holandês, que será mantido no projeto do Sesc.
O casarão e o “moinho” foram tombados em conjunto na esfera municipal em 2016. O pedido foi aberto cerca de 10 anos antes, após uma mobilização de vizinhos, que criticavam a possível venda a uma incorporadora e a construção de torres no local. À época, o clube estava em crise financeira e com acúmulo de dívidas.
A antiga residência será transformada em um espaço de convivência, que poderá receber exposições, oficinas e atividades culturais em geral. As características originais externas passarão por uma recuperação e restauro, enquanto os anexos (”puxadinhos”) feitos pelo clube e grande parte das paredes internas serão demolidos. O teto entre o primeiro e segundo pavimento também será derrubado, para permitir um pé direito alto. O entorno passará por modificações, como o enterramento da piscina para a criação de uma praça de convívio.
A ideia é que as características de bosque da área junto ao casarão sejam mantidas, até porque parte da vegetação é protegida. Ao Estadão, o Sesc não informou uma data para o início das obras, pois o projeto ainda está em processo de aprovações na Prefeitura. No Conselho Municipal de Preservação do Patrimônio Histórico, Cultural e Ambiental da Cidade de São Paulo (Conpresp), obteve parecer favorável há menos de um mês. O valor de implantação estimado é de R$ 200 milhões.
Cerca de metade da futura unidade estará na antiga área do clube, de 24,8 mil metros quadrados, comprada pelo Sesc em 2020. O restante é de um terreno concedido pela Prefeitura, com 22,9 mil metros quadrados, junto ao câmpus Pirituba do Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia de São Paulo (IFSP) e que receberá a maior parte das novas construções. Quando pronto, o Sesc Pirituba terá 37,3 mil metros quadrados de área construída, 30 mil com cobertura.
“Tem uma característica talvez inédita em um Sesc, de ter tanto um lado campestre quanto outro voltado a uma região muito urbana”, comenta a arquiteta Heloisa Herkenhoff, sócia da Bloch Arquitetos Associados, que integra o projeto há mais de dois anos. “Terá uma integração, não ficará uma dicotomia”, ressalta.
Também arquiteto e sócio do escritório, Luiz Bloch descreve a antiga residência como uma casa urbana em um sítio rural, devido às dimensões pequenas para a burguesia da época e por ser assobradada. Além disso, relata que algumas das árvores do bosque tem um porte que impressiona paisagistas, a exemplo de duas sapucaias, espécie que chama a atenção pelas flores coloridas. “É uma zona mista e um clube de campo, como se fosse uma casa com quintal que integra esses dois”, descreve.
O casarão era a antiga casa-sede da chamada Chácara Ibiapaba, na qual a família Wellington viveu de 1929 a 1962, segundo levantamento histórico que embasa o projeto do Sesc. No terreno, havia jardim, piscina e um haras. A construção se destacava também pela lareira, os dois terraços e as janelas de estilo “bay-window”, que se projetavam para fora da residência.
O terreno – na então denominada Estrada Velha de Campinas – pouco antes servia de pasto para um frigorífico norte-americano e foi parte da antiga Fazenda Anastácio Capuava, que remonta ao século 19. Junto à estação Pirituba, é um dos núcleos iniciais de povoamento daquela região após a colonização.
Em 1962, a residência passou ao Clube Holandês – fundado em 1927, então sem uma sede própria –, que realizou atividades sociais diversas no local, com a dissolução oficializada em 2007. Nesse período, a casa passou por alterações arquitetônicas, ganhando anexos, que serão demolidos.
Inicialmente, a agremiação destinava quartos no segundo pavimento para receber hóspedes holandeses de férias em São Paulo, enquanto o térreo contemplava restaurante e vestiário. O espaço era conhecido também pelas festas, quermesses e bazares beneficentes, além do restaurante panorâmico no casarão.
Em 1996, uma reportagem do Estadão descrevia a Sociedade Holandesa como “um clube familiar em meio à exuberância da natureza” e um “clube de campo dentro da cidade”. À época, a presidência já se preocupava em aumentar o quadro societário, de então 813 sócios e dependentes, grande parte brasileiros. Segundo o texto, o imóvel foi adquirido com a contribuição de empresas holandesas, como a Philips.
Na resolução de tombamento do Conpresp, de 2016, é destacado “o valor histórico e urbanístico desse conjunto, representativo do processo de ocupação decorrente da implantação da linha férrea da São Paulo Railway e da presença expressiva da imigração inglesa e holandesa, fundamentais no desenvolvimento da região de Pirituba”, assim como “o valor afetivo e cultural dessa área para a população do bairro”.
Além da antiga chácara, o distrito tem outros dois imóveis tombados: o Hospital Psiquiátrico Philipe Pinel, inaugurado também nos anos 1920, e o “Castelinho de Pirituba”, dos anos 1930, hoje parte de um condomínio. Além disso, há um estudo para o tombamento de um imóvel ligado à Fundação Casa Pirituba, na Rua Stéfano Mauser.
Um levantamento feito por encomenda do Sesc identificou que o casarão está em “razoável” conservação, com alguns problemas considerados superficiais, como manchas de umidade, trincas e pintura destacando. Ele é de alvenaria de tijolos e telhado de cerâmica.
No caso da pintura, uma prospecção identificou as cores originais da edificação, que serão recuperadas na obra, com o predomínio do bege (fachada), do verde e do cinza (em janelas, portas e aberturas em geral). Os pilares revestidos com granito também serão restaurados.
O projeto do Sesc contempla também novas edificações, concentradas principalmente no terreno municipal, com três blocos principais de até três pavimentos, com biblioteca, salas multiuso, clínica odontológica, comedoria, teatro, piscinas cobertas, salas de ginástica, quadra coberta e outros espaços. O térreo é aberto, com um vão livre abaixo dos pilotis (pilares), pelo qual o público poderá circular e passar o tempo.
O imóvel fica nas proximidades da Rodovia dos Bandeirantes e a cerca de 800 metros do Terminal Pirituba e da estação homônima da CPTM, da Linha 7-Rubi, que liga o centro paulistano a Jundiaí. O público-alvo principal é de moradores de distritos vizinhos, como Pirituba e Brasilândia.
Este será o segundo Sesc da zona norte paulistana, além do Santana. A autorização da concessão do terreno municipal está na lei 16.611/2017, a mesma que concedeu, por igualmente 99 anos, uma área municipal em São Miguel Paulista, na zona leste, para uma futura unidade do Sesc.
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